"... E quando estiveres perto, arrancar-te-ei os olhos e colocá-los-ei no lugar dos meus; e arrancarei meus olhos para colocá-los no lugar dos teus; então ver-te-ei com os teus olhos e tu ver-me-ás com os meus."
                              (J.L.Moreno)

 
     Livrarias constituem lugar muito agradável em todo centro comercial. Visito-as sempre. Só não o faço com mais freqüência porque os afazeres não permitem. Entrementes, nas minhas incursões pelas maravilhosas livrarias, tenho visto, e até compro e leio, muitos livros sobre guerras. É guerra no Afeganistão, guerra aqui, guerra acolá. Guerra real, guerra fictícia. A literatura, hoje, se ocupa das guerras. O ser humano tem atração por tragédia e valoriza tudo que está relacionado a ela. E guerra é e sempre foi tragédia.
     Jacob Levy Moreno, o criador do Psicodrama, disse que o indivíduo deve ser concebido e estudado a partir de suas relações interpessoais. Ao nascer, a criança é inserida num conjunto de relações, primeiramente com a mãe - seu primeiro ego auxiliar -, o pai, irmãos, avós, tios, etc.. Enfim, a família, que ele, Moreno, chamou de “Matriz de Identidade”.
     E eu vivo a me perguntar: onde está a gênese do comportamento daqueles que são capazes de promover, ao invés de ações que consolidem a paz, as guerras. Só consigo encontrar uma resposta: a gênese está na educação familiar ou na falta dela.
     Tenho convicção de que as guerras são feitas por homens que não são capazes de ser felizes. São homens que não receberam da família o amor e o respeito necessários para desenvolver em si a arte de ser feliz. Felicidade é um estado de espírito que se manifesta nos seres humanos felizes. Ela não pressupõe alegria constante, sorriso contínuo nos lábios ou viver saltígrado. Não, não é isso ser feliz.
     Ser feliz subentende chorar por dor sentida – dor de amor ou dor física -, andar de vez em quando com uma carranca de preocupação ou de desassossego. Ter de acordar cedo com sono e ter de levantar para ir trabalhar ou estudar é duro, mas faz parte da vida. É ir trabalhar, mesmo pedindo a Deus que Ele nos apresente um outro emprego porque não suportamos mais o chefe grosseiro e injusto. É não ter dinheiro para viajar a Paris ou mesmo à cidade vizinha. É não poder comprar um carro ou uma roupa nova. Ser feliz é um mistério. É suportar as dores, as tristezas momentâneas, os revezes da vida sem guardar rancor.
     Ser feliz é ser tomado de ternura pela pessoa que um dia fez parte dos nossos momentos de amor, mas que nos magoou, e nos fez sofrer, e nos fez chorar, e nos impingiu uma dor fulgurante, profunda, terrível. Embora tenha nos feito sentir aquela aflição imensa, sem tamanho, que parecia que ia nos matar de tanto que doía, ainda sentimos por ela uma doce ternura e nos recordamos dos bons momentos, da alegria passada, dos arroubos, dos risos. E sentir essa ternura, que vem assim, de repente, sem explicação, é sinal de que não somos capazes de guardar rancor. E isso é ser feliz. É, sobretudo, ser capaz de se amar e ter a certeza de que tudo passa e que a vida vale a pena, especialmente “se a alma não é pequena”, como repetiu o grande poeta português Fernando Pessoa. Ser feliz é saber que o rancor é fera de má catadura, é veneno letal e mata quem o guarda; e que o ódio macula quem o sente.
     Ser feliz é saber que a dor, com o tempo, deixa uma marquinha, uma cicatriz, aquele sinal de que ali pisou a ingratidão - porque o rasto da ingratidão é nódoa difícil de apagar -, mas é só para não esquecer, para servir de exemplo, para não se cometer os mesmos enganos. É assim ser feliz. É mesmo um mistério porque o ódio, a mágoa, o rancor não têm lugar no peito de quem nasceu para ser feliz. Quem nasceu para ser feliz trabalha com paixão, mesmo sabendo que ali está apenas construindo um degrau para o futuro.
     Ser feliz é amar o próximo, apesar de nem sempre poder ajudar. É amar até as broncas que recebemos das mães, dos pais, dos professores... É lembrar com ternura desses episódios. Ser feliz é um mistério só desvendado por quem é capaz amar.


Referência:
MORENO, J. L. Psicodrama, São Paulo: Cultrix ,1993.

Texto fui publicado na Revista Brasília em Dia de 15 a 23/09/2007
Sena Siqueira
Enviado por Sena Siqueira em 07/11/2011
Reeditado em 07/11/2011
Código do texto: T3322435
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