Violência, cotidiano e educação escolar
A instituição escolar, seus modelos de organização e funcionamento, antes de qualquer fim pedagógico deve ser visto como uma estrutura de poder e de controle social. De acordo com Ariès (1999) o aparecimento e a evolução das classes escolares se relacionam com uma crescente necessidade de controle sobre os mais jovens, que se estabelece a partir do século XV. Esse processo se relaciona com uma nova concepção de infância, marcada pela valorização das hierarquias e de uma certa moral sexual. O autor chama a atenção para a importância que os castigos físicos assumem neste contexto: “(...) todas as crianças e jovens, qualquer que fosse sua condição, eram submetidos a um regime comum e eram igualmente surradas”. Esse quadro perdurou até o século XVIII, quando o poder nas escolas assume uma dinâmica menos explícita e os castigos físicos são substituídos pela poder disciplinar.
Segundo Foucault (2003), os processos disciplinares já existiam nos conventos, nos exércitos, nas oficinas, mas no decorrer dos séculos XVII e XVIII as disciplinas se tornam fórmulas gerais de dominação.
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento das suas habilidades, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil é. Forma-se então, uma política de coerções que consiste num trabalho sobre o corpo, numa manipulação calculada dos seus elementos, dos seus gestos, dos seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, os chamados "corpos dóceis". (2003, p.119).
As sociedades disciplinares constituem formas de organização pautadas pelos grandes meios de vigilância e confinamento dos indivíduos. Neste sentido, segundo Foucault (2003, p.157), “a vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem especifica do poder disciplinar” Nestes tipos de sociedades o espaço é o fator determinante, pois elas são antes de tudo espaços de confinamento: “O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola [...], depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência” (DELEUZE, 1992, p.219).
A disciplina utiliza dois mecanismos básicos para se fazer valer: a arte das distribuições e a do controle das atividades. A primeira vai esquadrinhar os espaços, distribuindo os corpos em lugares individualizados, organizando séries, filas, etc. No segundo vai regulamentar o tempo, estabelecendo rotinas, horários e atividades. O tempo e o espaço se articulam de maneira contínua, possibilitando, ao mesmo tempo, maior produtividade e controle.
Foucault afirma que o corpo, até o século XVIII, era fundamentalmente uma inscrição de suplícios e de penas. A partir do século XIX terá um estatuto diferente, quando se torna alvo de um conjunto de intervenções que visam reformá-lo, corrigi-lo, adaptá-lo a receber qualidades para se tornar um corpo adestrado para o trabalho. Dentro deste contexto, as escolas deixam de se constituir como lugares de suplício, tipo castigos corporais, para se tornarem locais de produção de corpos dóceis e produtivos. O poder se desloca do campo da coerção, para o da produção. Deixa de ser basicamente punitivo para se tornar fundamentalmente normativo.
Embora as pesquisas acadêmicas sobre violência na escola sejam recentes, tendo se intensificada a partir do início deste século, as escolas, portanto, sempre foram palco da violência, particularmente da física. Nos cenários contemporâneos as pesquisas e discussões sobre o tema podem ser avaliadas a partir de três tendências básicas. A primeira, muito difundida no Brasil e no mundo, particularmente nos Estados Unidos, centra seu olhar no indivíduo, sua personalidade e contexto familiar. Um exemplo conhecido deste olhar foi batizado de bullying. Esse conceito define a prática repetida de agressões físicas ou humilhações, perpetradas por algum indivíduo ou grupo, sem motivos aparentes e sempre envolvendo um desequilíbrio de forças. Blaya e Derbarbieux (2002) afirmam que restringir a violência na escola ao bullying não leva em conta, por exemplo, a violência dos adultos para com os alunos ou a violência anti institucional ou na agressão (principalmente verbal) contra os professores. Além do mais, bullying é um conceito psicologizante, que não considera o contexto e tende a individualizar o problema, responsabilizando apenas o perpetrador e a vítima, ou, às vezes, a família.
A segunda tendência situa as violências que acontecem nas escolas como consequência das violências perpetradas fora desta, sejam pelo Estado, pela família, na comunidade ou por criminosos. A escola é concebida como mais uma vítima da violência estrutural. Esta tendência se baseia em estudos onde fica estabelecido que exista uma predominância de situações de violência nas escolas localizadas nas periferias degradadas: “quanto mais os estabelecimentos abrigam populações socialmente desfavorecidas, mais frequentes são os delitos e infrações, mais o clima é degradado, mais o sentimento de insegurança predomina” (DEBARBIEUX, 2000, p. 180).
A terceira tendência, que corresponde à abordagem deste artigo, compreende as violências nas escolas como fenômenos híbridos, relacionados, ao mesmo tempo, com o contexto social maior de onde a escola é parte, e com a dinâmica das relações locais tecidas no interior das instituições. Esta tendência enfatiza a exclusão interna provocada pelos estabelecimentos de ensino, mediante seus mecanismos de seleção e avaliação, seus modelos de relação e autoridade. Dentro desta perspectiva, torna-se importante ressaltar as análises em torno da teoria da reprodução social de Bourdieu e Passeron (1975). Os autores analisam a violência praticada pela escola na forma de violência simbólica, ou seja, da imposição de arbitrários culturais que reproduziria a ordem social dominante.
Dentro desta perspectiva, Charlot (2002) propõe um sistema de classificação dos episódios de violência na escola em que identificam três tipos de manifestação: a violência dentro da escola, a violência na escola e a violência da escola. A violência dentro da escola é aquela que se produz dentro do espaço escolar, sem estar ligada às atividades da instituição escolar, quando a escola é invadida para acertos de contas, por exemplo. A escola torna-se o lugar de uma violência que poderia ter acontecido em qualquer outra parte. A violência na escola relaciona-se a processos que se desdobram no interior da escola. Os atores são alunos e o alvo podem ser alunos, professores, funcionários ou o patrimônio da escola. Por fim, a violência da escola: a violência institucional ou simbólica, a qual se manifesta por meio do modo como a escola se organiza, funciona e trata os alunos.
Diferentes autores europeus seguem esta direção, que privilegia a escola como lócus de análise, mas sem perder de vista o contexto maior do qual ela é parte. Peralva (1997) com base nos estudos de Nobert Elias (1990) argumenta que é preciso pensar a violência na escola francesa nos termos de uma reversão do processo civilizatório. Nesta perspectiva, as condições históricas que incidiram para consolidação do processo civilizatório, no sentido de contenção da agressividade estariam ausentes ou em crise, quando referidas à realidade escolar francesa. A escola atual não mais atuaria como um micro Estado, garantindo um padrão de ordem. Primeiro porque o padrão se debilitou diante das mudanças atuais, quando a liberdade de escolha individual se torna cada dia mais valorizada entre as pessoas e o poder das regras de comportamento instituídas enfraquecem; segundo, porque a massificação escolar, ocorrida na França no contexto de modernização, competitividade e desemprego, enfraqueceu os ganhos provenientes da adesão a esta ordem, especialmente, para o público popular, que tem dificuldades em enfrentar a competição escolar. Por fim, devido à interiorização de um novo valor cultural pelo indivíduo: o de se constituir enquanto sujeito autônomo. Este valor “pode induzir a condutas violentas o sujeito cuja personalidade e autonomia pareçam ameaçadas” (PERALVA, 1997, p.15).
Importante lembrar o estudo realizado Catherine Blaya (2004), no âmbito das atividades do Observatório Europeu de Violência Escolar, em escolas francesas, inglesas. Foram entrevistadas 1.679 estudantes ingleses e 3.136 estudantes franceses, de idades entre 11 e 18 anos, e por 191 adultos ingleses e 252 adultos franceses, de 12 e 15 escolas, respectivamente (totalizando 5.067 entrevistados). Os resultados evidenciaram que as escolas onde acontecem o menor número de agressões eram aquelas em que o papel dos educadores não ficava limitado apenas à sala de aula, mas incluía atividades extraclasse com os estudantes. Destacam-se aqui as escolas inglesas, onde os professores passam cerca de 30 horas por semana na escola e desenvolvem tarefas de tutoria e de coordenação de atividades extracurriculares. Segundo a Blaya, quando os professores realizam essas atividades são percebidos como pessoas e não como especialistas.
O DEBATE NO BRASIL
As primeiras pesquisas sobre o tema no Brasil concentram sua atenção na violência institucional e suas repercussões na dinâmica da escola. Guimarães (1996), baseando-se nas considerações de Maffesoli, conclui que as escolas ao tentarem homogeneizar os comportamentos dos alunos, incitam um movimento contrário por parte destes, que tentam expressar sua vontade de “querer viver” contra o “dever ser” instituído pela escola.
Outro estudo considerado marco foi o realizado por Spósito (1998) sobre a relação entre a violência em meio escolar e a crise da capacidade socializadora da escola pública, realizado na região da grande São Paulo. A autora argumenta que, no Brasil, o significado da escolarização sempre esteve vinculado à possibilidade de mobilidade social ascendente. Atualmente a escola não se revela mais como condição suficiente para inserção no mercado de trabalho, embora necessária, imprimindo uma ambiguidade na relação dos alunos com a instituição. Dentro desta visada: “A violência seria apenas a conduta mais visível de recusa ao conjunto de valores transmitidos pelo mundo adulto, representados simbólica e materialmente na instituição escolar, que não mais respondem ao seu universo de necessidades. Outra modalidade de resposta, talvez a mais frequente, se exprime no retraimento e na indiferença: os alunos estão na escola, mas pouco permeáveis a sua ação” (SPÓSITO, 1998, p.75)
Aquino (2006) acredita que é necessário uma compreensão das relações e práticas sociais específicas da escola, posto que as relações escolares não implicam um espelhamento imediato daquelas extra escolares. Aquino rejeita as abordagens feitas da violência escolar enquanto determinação macroestrutural (efeito das condições políticas, econômicas e culturais dos tempos atuais) ou diagnóstico pautado nas características individuais da clientela (na sua estrutura psíquica). Baseado na análise de Hannah Arendt (1992) sobre a crise da educação, Aquino ressalta que os atos de violência no cotidiano escolar estariam relacionados à crise da autoridade docente – dispositivo essencial para a eficácia da intervenção institucional.
Neves (2009), a partir de uma leitura de Simmel (1983) considera que o convívio, enquanto forma social, pode propiciar momentos de construções e destruições, quer sob as instituições, estruturas, arranjos, processos, relações e interações sociais. Nesta perspectiva, os conflitos sociais são destacados como socialmente importantes e não um mal a ser extirpado. Segundo a autora, a escola pública não sabe como mediá-los e esta incapacidade constitui um fator decisivo para a proliferação de violências no contexto escolar. Mediação entendida como uma forma conciliatória de resolução de conflitos, onde os próprios envolvidos chegam a uma solução para suas demandas. O papel do mediador é de facilitar o diálogo, proporcionando condições favoráveis para um consenso.
Lima (2011), no estudo etnográfico realizado em uma escola da rede municipal de Salvador, apresenta as conexões entre a proliferação das violências e a falta de legitimidade das regras de convívio estabelecidas. Isto se deve a uma cultura institucional tradicional e intolerante, onde são frágeis os espaços de negociação e de diálogo. As regras de convívio são impostas de forma unilateral, sem qualquer participação dos alunos nas instâncias decisórias; o sistema de controle local é baseado nas punições e inexistiam maiores esforços no sentido conciliatório nas situações de conflito.
Este cenário gera um clima bastante favorável para alimentar entre os alunos uma cultura de oposição à escola. As regras de convívio não são respeitadas, imperando a lei do mais forte. Uma questão considerada central para transformar esta dinâmica consiste em substituir a lógica punitiva pela conciliatória e instituir mecanismos mediadores legítimos, que se tornem opções válidas na forma dos conflitos serem resolvidos. Não apenas dos conflitos entre os alunos, mas também aqueles que envolvem a instituição. A escola enquanto espaço de convívio reúne diferentes culturas, interesses e perspectivas. O seu grande desafio no século XXI será aprender como mediar essas relações. Um processo que dificilmente se conseguirá de forma violenta, através de imposições e castigos. Isso não significa afirmar que seja desnecessário desenvolver mecanismos de coerção, mas focar nos ideais de democracia, de justiça e, principalmente, igualdade os principais meios para enfrentamento das violências.
Consta no relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, que constitui papel básico das escolas ensinarem seus alunos a serem cidadãos. Dito de outra forma, ensinar a agir com respeito, solidariedade, responsabilidade, justiça, não violência; ensinar a usar o diálogo nas mais diferentes situações e comprometer-se com o que acontece na vida coletiva da comunidade e do País. Cortez (1999) afirma que o convívio escolar é um elemento chave na formação ética dos estudantes e, ao mesmo tempo, é o instrumento mais poderoso que a escola tem para cumprir sua tarefa educativa nesse aspecto. Daí a necessidade de os adultos reverem o ambiente escolar e o convívio social que ali se expressa, a partir das relações que estabelecem entre si e com os estudantes, buscando a construção de ambientes mais democráticos.
Atualmente no Brasil, contudo, a principal forma que os poderes públicos encontraram para intervir nas escolas é o uso da Polícia Militar e de Guardas Municipais como dispositivos de poder para combater as violências. A eficiência deste método é alvo de controvérsias. Assim como a ação das polícias no Brasil contra marginais é atravessada por situações de abuso do poder, ocasionando extorsões e violências, nada faz pensar que com os estudantes seja muito diferente, como confirma estudo de Sallas et al (2001) em estudo realizado em Curitiba.
Por outro lado, a utilização da polícia dentro da escola como instrumento de poder revela uma atitude cômoda da instituição. Enquanto tecnologia de combate, a polícia se revela inoperante no que tange às causas do seu objeto de intervenção. A violência é visada como uma característica de determinados grupos ou indivíduos considerados problemáticos. As relações entre a dinâmica da violência e o cotidiano da instituição ficam desconectadas. Neste caso, a escola não se implica diretamente na produção das violências, apenas na tentativa de seu combate.
Pensar o contexto escolar como um espaço ativo e não meramente reprodutor de valores e práticas dominantes, implica em situar a violência sob o ponto de vista da dinâmica
das relações e das redes de significação que aí se estabelecem. A violência é situada como um estado, que pode variar de acordo com contingências específicas como gestão, relações entre os professores e alunos, diretores, coordenadores, funcionários, familiares ou a comunidade local. As polícias podem e devem ser importantes parceiros em determinados casos considerados extremos (homicídios ou tráfico de drogas), nunca uma opção geral e básica, como, tudo leva a crer, vem sendo feito em diversas escolas brasileiras.
REFERÊNCIAS
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BLAYA, Catherine. Elementos de reflexão a partir do comparativismo europeu. In: DERBABIERUX, E. Et al. Desafios e alternativas: violências nas escolas. Brasília: UNESCO, 2003.
BOURDIEU, P; PASSERON, J. C. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
CORTEZ, P. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. São Paulo: Brasília: MEC, UNESCO, 1999.
DEBARBIEUX, BLAYA, E.C. Violências nas escolas: Dez abordagens européias. Brasília: UNESCO, 2002.
LIMA, A.J.T. Um estudo etnográfico sobre as violências em uma escola pública da rede municipal de Salvador. Dissertação (mestrado): Universidade do Estado da Bahia. Salvador, 2011.
SPÓSITO, Marília P. A instituição escolar e a violência. Cadernos de Pesquisa: Revista de Estudos e Pesquisas em educação, São Paulo, n. 104, 1998.
ZALUAR, A. & LEAL, M. C. Violência Extra e Intramuros. In: Revista Brasileira de Ciências sócias. São Paulo: Vol. 16, n. 45, 1-4, fev. 2001.