Cultura escolar e (des)encontro com a diversidade

A palavra cultura é de origem latina. O radical da palavra, o verbo colo, tem como sentido original “cultivar”. O vocábulo latino cultus, portanto, possui, inicialmente, o sentido de cultura da terra. Na língua francesa, a palavra cultura (culture) aparece em fins do século XIII para designar uma parcela de terra cultivada. No início do século XVI, esse termo figura não mais como um produto (terra cultivada), mas como uma ação, ou seja, o fato de cultivar a terra. O sentido figurado aparece somente no meio século XVI, quando cultura passa a significar também o produto de outras ações, como, por exemplo, a cultura de uma Universidade. Contudo, este sentido só ganha força a partir do século XVIII, quando aparece no Dicionário da Academia Francesa (edição de 1718).

Nos cenários atuais o conceito de cultura é interpretado de diferentes maneiras, por diferentes disciplinas e campos de estudo. De acordo com a orientação teórica adotada, optamos por uma compreensão hermenêutica de cultura. Desta forma, transcrevendo as palavras de Geertz (1989) inspirando em Max Weber, que define o homem como um animal amarrado às teias de significados que ele mesmo teceu: “[...] assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado” (p.15)

Seguindo esta direção, Da Matta (1999, p. 2) considera a cultura como “um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas”. A cultura fornece normas que dizem respeito aos modos, mais (ou menos) apropriados de comportamento diante de certas situações. Não é um código que se escolhe, mas é algo que está dentro e fora de cada um de nós, como as regras de um jogo de futebol, que permitem o entendimento do jogo, assim como a ação de cada jogador, juiz, bandeirinha, como também as torcidas.

Os estudos sobre cultura escolar se iniciaram na década de oitenta do século passado, mas somente se intensificaram a partir da década de noventa. O caminho trilhado pelo sociólogo francês Jean Claude Forquin (1992), ao caracterizar a escola, situa as relações e implicações da cultura mais precisamente no currículo escolar. O autor se reporta ao papel social que a escola desempenha na sociedade ocidental, desde que educação deixou de ser uma tarefa doméstica e passou a ser uma atividade em que a sociedade delega a alguns/as professores/as. Ele reconhece o caráter conservador da escola, mas anuncia a possibilidade desta reinterpretar e criar a partir da herança cultural.

Segundo Forquin (1992, p. 25-27), o currículo enquanto herança cultural é um conjunto de conhecimentos selecionados culturalmente, estratificados hierarquicamente, dividido em disciplinas escolares para fins didáticos e ideológicos. Ao discernir "cultura escolar" e "cultura da escola", ele enfatiza que o currículo é a peça central quando se trata de cultura escolar, que é definida como o "conjunto de conteúdos cognitivos e simbólicos que, selecionados, organizados, "normatizados" e "rotinizados", sob o efeito dos imperativos da didatização, constituem habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escolas" (transposição didática). A cultura da escola é a produção e a gestão de símbolos, ritos e linguagens específicos de uma unidade escolar.

De acordo com o autor, ensinar é colocar alguém em presença de certos elementos da cultura, elementos estes que foram selecionados e discriminados a partir de critérios geralmente denominados "universais". Enfim, para este autor, o objetivo da educação é transmitir algo da cultura, elementos da cultura que podem ter origem em fontes ou épocas diferentes para a socialização das novas gerações.

O conceito de transposição didática foi elaborado, originalmente, pelo sociólogo Michel Verret, em 1975. Porém, em 1980, o matemático Yves Chevallard retoma essa idéia, fazendo dela uma teoria e com isso analisando questões importantes no domínio da Didática da Matemática. Chevallard (1991) analisou como o conceito de “distância” nasce no campo da pesquisa em matemática pura e reaparece modificado no contexto do ensino de Matemática. Ele define a “transposição didática” como um instrumento eficiente para analisar o processo através do qual o saber produzido pelos cientistas se transforma naquele que está contido nos programas e livros didáticos e, principalmente, naquele que realmente aparece nas salas de aula, BROCKINGTON (2006).

Segundo essa formulação, o autor afirma que um conceito, ao ser transferido de um contexto ao outro passa por profundas modificações. Ao ser ensinado, todo conceito mantém semelhanças com a idéia originalmente presente em seu contexto da pesquisa, porém adquire outros significados próprios do ambiente escolar para o qual será transposto. De maneira geral, Chevallard pretende que os conhecimentos (saberes) presentes no ensino não sejam meras simplificações de objetos tirados do contexto de pesquisas com o objetivo de permitir sua apreensão pelos jovens. Trata-se, pois, de “novos” conhecimentos capazes de responder a dois domínios epistemológicos diferentes: ciência e sala de aula.

O historiador Dominique Julia (2001, p. 10) compreende a cultura escolar como “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos”. O conceito de cultura escolar, dentro desta perspectiva, anuncia um olhar para o interior da escola, ou seja, para seu funcionamento interno. Um olhar para as relações que os professores entabulam com as regras instituídas, quais as formas de resistência e de luta, quais aos os usos dos dispositivos pedagógicos postos a circular.

Sem querer em nenhum momento negar as contribuições fornecidas pelas problemáticas da história do ensino, estas têm-se revelado demasiado "externalistas": a história das idéias pedagógicas é a via mais praticada e a mais conhecida; ela limitou-se, por demasiado tempo, a uma história das idéias, na busca, por definição interminável, de origens e influências, - a his¬tória das instituições (quer se trate de instituições militares, judiciais etc.). A história das populações escolares, que emprestou métodos e conceitos da sociologia, interessou-se mais pelos mecanismos de seleção e exclusão social praticados na escola que pelos trabalhos escolares, a partir dos quais se estabeleceu a discriminação.

André Chervel (1990), defende a capacidade da escola produzir uma cultura específica, singular e original. Questionava a perspectiva que situa a escola como simples agente de transmissão de saberes elaborados fora dela, lugar, portanto, do conservadorismo, da rotina e da inércia. Na sua concepção, a escola fornece à sociedade uma cultura constituída de duas partes: os programas oficiais, que explicitam sua finalidade educativa, e os resultados efetivos da ação da escola, os quais, no entanto, não estão inscritos nessa finalidade. A escola é capaz de produzir um saber específico cujos efeitos estendem-se sobre a sociedade e a cultura, e que emerge dos determinantes do próprio contexto institucional.

Viñao Frago (1995) apud Gonsalves (2005, p 147) afirma que “cultura escolar recobre a diferentes manifestações das práticas instauradas no interior das escolas, transitando de alunos a professores, de normas a teorias. Na sua interpretação englobava tudo que acontecia na escola”.

Verificamos, então, a escola como uma instituição singular, que se constitui sobre processos, normas, valores, significados, rituais, formas de pensamento, formatadores da cultura própria, que não é fechada, nem estática, nem replicável. A cultura atravessa todas as ações do cotidiano escolar, tanto na influência dos seus ritos como sobre a sua linguagem, tanto na determinação das suas formas de organização e de gestão, como na constituição dos sistemas curriculares. Segundo Silva (2006, p. 206):

Seja cultura escolar ou cultura da escola, esses conceitos acabam evidenciando praticamente a mesma coisa, isto é, a escola é uma instituição da sociedade, que possui suas próprias formas de ação e de razão, construídas no decorrer da sua história, tomando por base os confrontos e conflitos oriundos do choque entre as determinações externas a ela e as suas tradições, as quais se refletem na sua organização e gestão, nas suas práticas mais elementares e cotidianas, nas salas de aula e nos pátios e corredores, em todo e qualquer tempo, segmentado, fracionado ou não.

A escola, como já foi comentado, tem uma função social que vai além da dimensão especificamente instrucional. A dinâmica das relações que se estabelecem no seu interior não obedece apenas uma lógica. Como afirma Silva (2006, p.203), “a escola é uma totalidade mais ampla”. Ela extrapola os limites dos ordenamentos burocráticos e dos planejamentos pedagógicos, possibilitando a tessitura de uma rica rede de significações. Dito de outra forma, a escola “reelabora, segundo a sua dinâmica interna, as normas, valores, práticas comunitárias, dando-lhes uma coloração nova, mas nem por isso alheia ao encadeamento geral da sociedade” Cândido (1964), apud Silva (2006, p 203)

Dentro de uma perspectiva mais contemporânea, o conceito de cultura é pensado sempre como resultado, em níveis diversos, de processos de contatos com outras culturas. Não existem culturas puras. Elas se estruturam como processos permanentes de construção, desconstrução e reconstrução. O que varia é a importância de cada fase. Surge aqui a noção de culturação para sublinhar esta dimensão dinâmica da cultura.

Um exemplo interessante pode ser pensado com os negros que foram escravizados no Brasil por quatro séculos. Apesar deste processo de desestruturação social e cultural quase absoluta, criaram culturas originais e dinâmicas. Dentro desta perspectiva, Bastide (1995), apud Cuche (2002, p.137), se opõe a concepção de estrutura de Levi-Strauss, que ele considera demasiadamente estática. Ao invés de “estrutura”, ele anuncia “estruturação”, “desestruturação” e “reestruturação”. A cultura é uma construção “sincrônica” que se elabora a todo instante através deste tipo de movimento.

A noção de cultura escolar situa a escola não apenas como um espaço de reprodução, como marca, por exemplo, Bourdieu e Passeron (1975), mas também como um espaço de produção de cultura. Um percurso marcado pelo encontro de discursos hegemônicos, que imprimem formatos e ditam regras, mas que não silenciam as vozes de outras culturas. Vozes que nem sempre são ouvidas, mas que não cessam de falar nos corredores, nos pátios e portões, muros e cantinas. Essas narrativas produzem novos textos culturais híbridos, forjados a partir do choque de culturas, assim como a capoeira e o candomblé se constituíram a partir do choque entre os mundos branco e negro.

Dentro desta perspectiva, perceber a escola como uma grande encruzilhada, zona de mistura entre mundos diferentes, pressupõe aprender a mediar estes processos culturais. Processos carregados de emoção e marcados por oposições e conflitos diversos. Importante situar a complexidade destas mediações. Ao instituir a escola como uma zona de encontro da diversidade, fica implícita a impossibilidade de promover uma pretensa harmonia definitiva entre os atores envolvidos.

Considerar o conflito, dentro de suas múltiplas manifestações, como um processo intrínseco à educação, pressupõe a construção de um outro olhar. Um dos principais objetivos do poder disciplinar é docilizar os corpos dos alunos e mantê-los devidamente quietos, “bem comportados”. Qualquer tipo de conflito aqui é lido como indisciplina e passível de punição. As escolas sempre tentaram impor, frequentemente de forma violenta, a paz entre os alunos. Uma educação multicultural precisa abrir mão deste tipo de dispositivo e pensar outros princípios para legitimar sua autoridade. Reside aqui, talvez, o grande desafio deste novo olhar: instituir outros formatos para o poder. Outros padrões de autoridade, mais democráticos e dialógicos. Uma autoridade que não faça calar, mas que também faça ouvir. Uma autoridade que consiga mediar conflitos sem precisar sufocá-los. Uma autoridade que afirme as diferenças, mas consiga promover respeito.