Poucas palavras, muita polêmica
Já repararam como a língua nos estigmatiza? Os que tivemos o privilégio de frequentar os bancos escolares passamos anos e anos estudando a nossa língua e, não raras vezes, nos vemos diante de questões relativamente simples, para as quais não encontramos soluções. E ficamos com a autoestima baixa...
Há sempre um certo constrangimento quando somos submetidos a questões de linguagem e não temos uma saída razoável. E todos estamos sempre às voltas com esses problemas... Nas escolas, os professores de português são os mais solicitados. São as vírgulas do requerimento, a concordância, a adequação vocabular, a estruturação de períodos. Ufa! Haja paciência e conhecimento. E quando não sabemos? É pedir calma, tempo, gramática, dicionário...
Certa feita, uma colega – em plena sala de aula – trocou um g por um j, e os meninos notaram e foram ao diretor, que não foi ao dicionário, mas procurou a mim, aproveitando para testar dois ao mesmo tempo. Por sorte, eu sabia e saquei um g certeiro, não sem alertá-lo de que estávamos em um campo movediço no qual os professores caminham também sem total segurança e de que a mestra não tinha cometido um erro tão grave... Sob protestos, ele aceitou a ponderação, e a moça continuou no seu mister.
Somos assim mesmo. Preocupados com acentos, grafias, concordâncias, regências – tudo isso que constitui a tal norma culta e nos dá a pecha de incultos quando erramos. Não nos escandalizamos diante das ignorâncias científicas, mas crucificamos os que contrariam a gramática. Quantos sabem o seno zero? Quantos sabem a fórmula da resultante? Talvez poucos e nem por isso há escândalos. A língua, entretanto, nosso principal cartão de visitas, nos torna mais vigilantes com nós mesmos e com os outros.
Penso que devíamos ser mais condescendentes em todas essas delicadas questões. Por uma razão muito simples: a língua muda muito, sobretudo na modalidade oral, e muitas dessas mudanças serão um dia incorporadas pelas gramáticas. Não há dúvida: elas acabam se rendendo ao uso dominante e passam, por exemplo, a incorporar o namorar com (Paulinho namora com Lucinha) , o visar como transitivo direto (Viso a aprovação) e a não fazer cara feia para o prefiro do que. É só procurar que vamos encontrar essas abonações, ainda que com reservas, em alguma gramática atual da língua.
As línguas – já o dissemos – mudam, e a descrição gramatical precisa ficar atenta. Machado de Assis, num tempo em que não havia ciência linguística, já observava que as línguas “alteram com o tempo (...) Querer que a nossa pare no século de quinhentos é um erro igual ao de afirmar que a sua transplantação para a América não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito a influência do povo é decisiva”.
Chegará um dia em que se escreverá pela norma culta “Os menino” ou “Nós pega o peixe?” Não sei, mas não tenho dúvida de que não é adequado o escarcéu que se fez com o livro de Heloísa Ramos, recomendado pelo MEC, apenas porque a autora refere-se a essas concordâncias não privilegiadas, mas comuns em vários registros linguísticos.
Lendo o capítulo, fica claríssimo que a autora considera tais formas como realizações linguísticas contempladas pelo sistema da língua portuguesa, mas não aceitas pela ortodoxia. Quem usa as tais construções pode ser estigmatizado... Então, obviamente, cabe à escola propiciar que o aluno domine as estruturas prestigiadas, sem que para isso tenha de desprezar a modalidade linguística que lhe é intrínseca no momento da aprendizagem. Tudo tão claro, tão fácil, tão simples. Onde está o crime?
Não é nas escolas de hoje que estão os literatos de amanhã? Esses mesmos futuros artistas vão reproduzir a fala de seus personagens mais humildes e será melhor que eles falem como os doutores? Sob essa ótica, talvez seja interessante mesmo instigar o educando a observar os registros não privilegiados, pois é daí que tiram vantagem a literatura, o humor, as histórias em quadrinho... É preciso, sim, ensinar que essa língua falada por nós é muito mais que o português bem comportado do receituário culto.
Também é preciso que a escola desmistifique a imagem de policial linguístico de que muitos revestem o professor de língua materna: alguém que, sem meios-termos, diz o que é certo e o que é errado, em detrimento do é possível, é adequado, é inadequado... Essa postura pedagógica, sem demagogia, pode aproximar mais os alunos dos professores, e a nossa educação precisa tanto de que os alunos vão à escola, fiquem na escola e gostem da escola. Se eles se evadem, aí sim, estará havendo um enorme desperdício do tão sagrado dinheiro público...
Quando alguém escreve um livro, deixa nele estampada a sua experiência. Talvez fosse importante também dar voz à professora-autora, para que ela nos falasse de suas leituras, de sua prática pedagógica, das convicções que a levaram a escrever poucos parágrafos tão incrivelmente polêmicos. Não nos parece justo que se crie um estardalhaço midiático sem dar muita voz a quem, por certo, terá lutado pela aprovação do livro entre os indicados pelo MEC e deverá ter uma história respeitável, que não pode ser colocada em xeque por interpretações precipitadas.