Ser negro no Brasil: (lei 10.639/03)
UMA IDENTIDADE CARICATA?
* Arsênia Rodrigues
Onze de agosto, auditório da Fundação Dois de Julho, viu-se o nascedouro de momento histórico ímpar: Professores e movimentos sociais reunidos em debate sobre a aplicabilidade da Lei N. º10.639, que determina a inclusão no currículo escolar básico de História e Cultura Africanas, em perspectiva trans-disciplinar.
Conhecimento imprescindível a um país que se orgulha de ter maior número de negros, depois do continente africano, entretanto pouco se sabe sobre o berço da Humanidade, a não ser o que é deflagrado pela mídia deformando-o em cemitério humano, haja vista a falência de quase todos os setores e serviços além de altas taxas de mortalidade infantil pelo vírus da Aids ou abusos fortalecidos pelo descaso das Nações Unidas ao extermínio e genocídio.
A natureza única do evento fixa-se no fato de ser realizada em Salvador, localidade onde a exclusão é significativamente negra. Paradoxalmente, a cidade é celeiro da maior festa de rua do mundo, conquanto seus concidadãos habitam sorridentes funções de cordeiros, militares, ambulantes, motoristas de trio, rodoviários, seguranças, garis, ou foliões-pipoca, assistindo “felizes” à constatação global de que somos bons anfitriões, como se realmente a casa fosse nossa... .
Iniciada a sessão abrilhantada por palestrantes do quilate intelectual de Professores Doutores como o pesquisador da USP, africano naturalizado brasileiro, o catedrático, escritor, antropólogo e etnólogo, Kabengelê Munanga; da Universidade do Zaire, a conferencista, escritora e afro-lingüista Yeda Pessoa de Castro, além de autoridades pedagógicas locais da envergadura de Alda Muniz Pepe, Djalma F. dos Santos e Marli G. Teixeira, essa última coordenadora do evento.
Escutamos extasiados à explanação do tema de reconhecida polemicidade, debatido pelos mais diversos vieses científicos e formais, denunciando nosso real despreparo para trazê-lo à rotina das salas de aula. Questões relativas à religiosidade, intolerância, contribuição lingüística (diversamente da mera influência dialetal), cuja sábia sugestão foi por um recorte transversal para que não trouxéssemos à baila conflitos ainda maiores, como por exemplo, com a população evangélica.
Coincidência ou não, a defesa do direito à informação sobre quem somos ou, pelo menos, de onde viemos, foi promovida na sede de uma fundação que leva o nome da batalha pela nossa libertação e no dia do advogado.
Após a explanação dos aspectos mais impactantes e intervalo para almoço, a tarde foi curta para os temas propostos nos grupos em discussão. Nunca é demais registrar a perfeita organização do evento mesmo durante as inscrições para os diretórios.
Os grupos dividiram-se em salas e por temas: identidade étnica e sua construção; aspectos cognato-afetivos de aplicação da lei; a imagem do negro no espelho da discriminação. Além disso, tivemos os palestrantes visitando cada sala para defender seus posicionamentos frente aos nossos questionamentos. E ao final o levantamento das idéias para exposição na plenária.
A conclusão a que se chega é novamente a Ordem Vigente surpreende ao normatizar o ensino de uma história escamoteada até os dias presentes. Professores, perplexos, tentam aprender estratégias para abordagem do assunto enquanto ouvimos denúncias da necessidade de haver publicações didáticas que tratem tema do qual desconhecemos. Necessário se faz especializações para aglutinar esse novo filão.
Estranhamente diverge-se do procedimento adotado com as licenciaturas em Normal Superior para professores das séries iniciais quando se deliberou um prazo para formar a consciência coletiva. Mexe-se no Sistema de Aprendizado de uma nação sem dar o respectivo tempo para que ganhe coro na sociedade.
E a questão já seria polêmica de per si, não contássemos também com divergências contundentes entre etnólogos e ativistas do próprio Movimento (MNU). Não há consenso entre qual identidade é a nossa: neo-africana, baiana, brasileira ou uma mistura de todas essas? Iremos seguir ensinando que descendemos exclusivamente ou majoritariamente de um só povo?
Há uma tendência muito forte em abolir a palavra – mestiço - por compreender que a mestiçagem nos enfraquece, descredencia e confunde enquanto identidade. É controverso esse posicionamento quando notória a mestiçagem originada prioritariamente das alcovas engajadas, a exemplo de Abdias do Nascimento, Sueli Carneiro, Gilberto Gil, Milton Santos, entre outros.
Parece que o posicionamento afirmativo, em determinados momentos ou para algumas situações, perde a veemência. Quer-se cônscio, visível socialmente, mas nega-se esse mesmo direito quanto ao gênero. Sabemos que a construção de identidade é um conceito resultante de várias nuances, sobretudo a social. Aliás, como disse sabiamente Dr. Marli Teixeira: “há conotações diversas entre a união inter-racial de um negro com uma mulher branca para o de uma negra com um homem branco”. E mesmo em tempos de ações e políticas afirmativas tão amplas, debates e cursos que norteiam o país, essas discussões ainda são proibidas, como o que ocorreu durante o evento. Colegas arvoraram em defender que “essas questões” não influenciam o engajamento e são meramente de foro íntimo.
O que falar então da imagem do negro frente à sociedade brasileira. Até hoje é cultivada a figura iconicizada de Zumbi dos Palmares como guerreiro e símbolo de resistência e do ideal libertário dos negros, mesmo presentemente. Início do século passado, personalidades negras figuravam na elite intelectual, a exemplo de Machado de Assis, José do Patrocínio, Aloísio de Azevedo, Pixinguinha, Cartola, Lupicínio, até o presidente Rodrigues Alves. A crítica é que essas inteligências não honraram o ideal de Zumbi e preferiram embranquecer-se, ofuscando uma possível visibilidade social. Década de setenta e nasce o Movimento Negro Unificado e com ele uma série de metas para afirmar essa faixa social enquanto grupo étnico. E muito se fez até agora, mas o que se vê é uma atrofia de figuras afro-descendentes no cenário de primeira grandeza quer política, científica ou das letras.
Pelo muito que tenho lido, o sofrimento dos negros expatriados para o Brasil não começou com o tráfico, mas bem antes, ainda em terra natal. Era costume em África a escravidão doméstica como pagamento de dívidas e respectiva submissão religiosa como forma de humilhar e diminuir o devedor. A economia era fundamentada na agricultura de subsistência e de forte traço familiar. Havia longas faixas de terras não povoadas e a necessidade de procriação, portanto era lícito o concubinato e a perfilhação. Cenário que não divergiu muito quando chegaram ao Brasil. Portanto, acredito que a nossa identidade não inicia em África, porque berço de toda a Humanidade, mas ao desembarcarmos aqui e termos de “refazer laços, linguagens, ritos, família” conforme afirma o nosso Ministro da Cultura, no livro A Grande Refazenda (Brasília/DF, 2006), publicado pela Fundação Cultural Palmares.
Durante breve período morando no Rio de Janeiro, tive contato com a comunidade africana, principalmente de Angola, Moçambique e Costa do Marfim. Eram mestrandos e doutorandos da UFRJ, em programa de intercâmbio por tratados de cooperação mútua. Convivi com a fina flor da intelectualidade africana, aristocratas, alguns com vínculo empregatício com a ONU. A única coisa que essas pessoas queriam era esquecer das mazelas e horrores das guerras de seus países. Não raro, naturalizam-se e preferem conviver na NeoÁfrica.
Então, pergunto, por que os nascidos e criados aqui, cerca de trezentos anos, estão sendo africanizados conquanto os nativos quando expostos à cultura e conhecimento diversos prescindem desta identificação?
(*)Arsênia Rodrigues é agente penitenciária, especialista em Estudos Linguísticos e Literários, articulista e professora de Linguagens e Códigos.