Kant: Educação e Autonomia

Uma afirmação comum sobre as práticas científicas e do conhecimento em geral é a de que a ciência pode contribuir para a felicidade dos seres humanos e ajudá-los a resolver intelectual e praticamente os problemas da vida. Não há dúvida quanto ao fato de que, quando comparamos nossa qualidade de vida com a dos homens que viveram há menos de um século, essa afirmação parece verdadeira. No entanto, ao nos lembrarmos dos desequilíbrios ambientais que se acentuaram a partir da segunda metade do século XX, dos acidentes nucleares e de outros grandes problemas associados à ciência e à tecnologia, torna-se evidente o quanto esta afirmação requer reflexão.

Não podemos negar a importância da instrumentalização do conhecimento para se obter um desenvolvimento científico e tecnológico, que será benéfico para a sociedade, desde que acompanhado da correspondente formação do indivíduo. No entanto, observa-se que não há um equilíbrio entre a formação técnica e a formação humana. O que a nossa cultura tem feito, ao longo dos últimos anos, é privilegiar a formação técnica em detrimento da formação humana, o que tem trazido enormes problemas para a sociedade como um todo e exige uma melhor compreensão dos princípios da Filosofia da Educação.

Podemos enumerar três grandes correntes filosóficas empenhadas em explicar como se dá o desenvolvimento do conhecimento humano: o empirismo, o racionalismo e o criticismo kantiano.

O empirismo parte do princípio de que o desenvolvimento do conhecimento é determinado pelo objeto, pela experiência, pelo ambiente externo e não pelo sujeito, isto é, de fora para dentro. De acordo com esta concepção, o ser humano desenvolve o seu conhecimento passivamente, a partir de reações do sujeito a estímulos externos, propiciados pelo ambiente. Esta concepção tem sua origem na antiguidade, através dos filósofos materialistas. No entanto, é na modernidade que ela ganha força. Seus principais representantes são: Francis Bacon, para quem o homem deveria exercer um domínio total sobre a natureza e David Hume, que considera que a mente de todos nós, quando nascemos, é como um livro em branco, que será escrito a partir das experiências de cada um.

O racionalismo, por sua vez, parte da afirmação de que o desenvolvimento do conhecimento é definido pelo sujeito e não pelo objeto ou pelo meio, ou seja, o conhecimento é formado de dentro para fora. Desse ponto de vista, o sujeito traz consigo, desde o nascimento, as ideias verdadeiras que serão necessárias para a construção do conhecimento, o uso sábio destas ideias inatas impedirá que ele incorra nos erros comuns daqueles que se deixam levar apenas pela experiência. O homem já nasce com a inteligência “pré-moldada”. Assim como o empirismo, o racionalismo tem suas raízes na antiguidade, através de Platão e outros pensadores importantes. Na modernidade, o principal pensador racionalista é Descartes, que, através do “cogito” (penso, logo existo), postulou a supremacia total da razão.

Embora sejam distintos completamente na concepção do conhecimento, tanto o racionalismo e o empirismo cometem o mesmo erro, que é a separação total do sujeito que conhece do objeto que é conhecido, as consequências desta cisão para a humanidade são tão alarmantes que a ela é creditada a maioria dos males advindos do mau uso do entendimento desde a modernidade até os nossos dias.

Ao empirismo credita-se, por exemplo, a importância exagerada que é dada ao conhecimento técnico e científico. Como podemos observar em nossas escolas, já que a educação é o tema central do presente ensaio, há uma distribuição de carga horária que privilegia as chamadas disciplinas “exatas”, como a matemática, a física, a química, deixando de lado as chamadas “humanas”, como a história, a sociologia e a filosofia. Em alguns casos, a proporção chega a “quatro por um”. Qual é a razão para isto? Um grau de importância maior concedido ao conhecimento técnico, deixando em segundo plano a formação humana do indivíduo, sem a qual ele não poderá fazer um uso consciente do saber técnico.

Ao racionalismo, sobretudo o pensamento cartesiano, recai a crítica de ser o responsável por toda a fragmentação no campo do saber. Ao estabelecer uma total distinção entre sujeito e objeto, Descartes abriu as portas para uma visão fragmentada da realidade, muito criticada, talvez injustamente, por Capra, em seu livro “O ponto de mutação”, no qual o autor defende uma visão mais integral e “holística” da realidade. Esta fragmentação do saber pode ser evidenciada também na educação. A própria divisão em disciplinas “exatas”, “biomédicas” e “humanas” é um exemplo disto, assim como a “especialização”. Os médicos, por exemplo, não tratam da saúde do corpo como um todo. Há aquele que trata da enfermidade dos olhos, o que trata da enfermidade do coração e assim por diante.

Finalmente, chegamos ao criticismo kantiano. A grande contribuição que podemos atribuir a Kant foi a iniciativa de superar a dicotomia sujeito/objeto, característica do pensamento anterior ao seu, embora os seus críticos afirmem que o que ele conseguiu foi ampliá-la ou, na melhor das hipóteses, apresentá-la de uma nova maneira, através do que ele mesmo chamou de “revolução copernicana”. Para Kant, o desenvolvimento do conhecimento está totalmente ligado à interação entre o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido. O sujeito fornece a “forma” para o conhecimento e o objeto, a “matéria”, estando esta intrinsecamente ligada àquela. O ponto de partida de Kant é uma crítica à capacidade da razão, a razão não pode conhecer tudo, pois nem tudo se apresenta para ela. Desta forma, podemos ver em Kant uma primeira tentativa de conciliação entre o homem e o mundo, principalmente através do apelo para uma formação crítica do indivíduo. O homem deve construir o seu conhecimento através da realidade que lhe é apresentada. Ele não é o senhor pleno da natureza, como quiseram dar a entender tanto o empirismo, quanto o racionalismo. Ele é parte importante da construção do saber, cabe a ele, através dos dados fornecidos pela experiência, transformá-los em conhecimento, através da interação entre os dados fornecidos pelos sentidos e a capacidade inata da razão.

No que se refere à educação, o pensamento kantiano tem implicações decisivas, pois, em última instância, é o indivíduo que constrói o seu saber. É necessário que o homem, sobretudo os jovens estudantes, compreendam que a educação é a construção de toda uma vida, não se aprende um ensinamento acabado, pronto, pois o aprendizado é um processo contínuo. Para que isto seja possível, é necessário que os educadores também tenham uma mudança de postura em relação ao ensinar. O professor já não é mais aquele que detém o conhecimento, ele deve ser um estimulador, deve incentivar os alunos, levá-los a compreender que existe todo um mundo esperando que eles cooperem de alguma forma, levá-los a compreender que se não fosse pela abnegação e sacrifício de inúmeras pessoas que dedicaram sua vida à pesquisa, científica e filosófica, a humanidade não teria saído de seus primórdios e viveríamos ainda como viviam nossos ancestrais. É importante também que o educador estimule os seus alunos a formarem uma conduta ética, que saibam usar dos recursos naturais de forma consciente, de forma que sua utilização não apresente um perigo para eles próprios e para as gerações futuras.

A autonomia da razão é o bem mais precioso que a pessoa pode aspirar, no entanto, o que se observa nas escolas é o oposto, formam-se, a cada dia, dezenas e dezenas de “autômatos” humanos, que, levados por um anseio de “se dar bem na vida”, preocupam-se apenas com “o terreno da própria casa”, pensando que podem viver como parte isolada do todo e procurando levar vantagem em tudo. São indivíduos “práticos”, querem tudo de forma instantânea, pronta, nunca se perguntam como surgiu o carro ou o computador que usam diariamente, querem apenas usá-los. Felizmente, existe uma pequena gama de indivíduos para os quais tais preocupações consomem os dias, fazendo-os dedicarem-se ao bem estar humano, em detrimento do seu próprio bem estar. Um indivíduo destes é aquele que, mesmo não estando afetado por uma doença grave, dedica seus dias à cura deste mal, cura esta que será empregada em auxílio de inúmeras pessoas. Se não houvesse homens desta natureza, o mundo ainda seria o mesmo de milhares de anos atrás. Por outro lado, muitos têm empregado os mesmos esforços em sentido contrário, por exemplo, visando a destruição da natureza e a própria destruição humana, através de artefatos como a bomba atômica e outros tantos. São pessoas que, embora tenham obtido um nível muito grande de conhecimento, lhes falta o correspondente saber humano e ético, fruto do desequilíbrio do qual já falamos no presente ensaio.

Ao abordar o “esclarecimento”, Kant apela para a necessidade do homem superar a menoridade da razão (da qual ele é o próprio responsável), através do abandono da preguiça e da covardia e do uso público da razão. O que é isto senão o exercício da autonomia da razão? Voltando à nossa questão inicial, que era abordar a necessidade de um uso consciente das capacidades humanas, concluímos que é necessário que haja um equilíbrio entre o saber técnico e a formação humana e ética, pois só a partir deste equilíbrio é que poderemos nos tornar conscientes de que cabe a nós a responsabilidade pelos nossos atos. Não devemos creditar a terceiros a responsabilidade das decisões que tomamos, nem tomá-las sujeitando-as à aprovação de outros em detrimento da nossa própria aprovação. Este é o papel que cabe à educação a aos educadores, para que se possa reverter este quadro caótico que se encontra diante de nossos olhos, mudando assim o rumo dos acontecimentos, para que possamos andar em direção à formação de uma nova humanidade.

Citação de Immanuel Kant:

“A razão é, sem dúvida, um princípio ativo que não deve tomar nada emprestado da autoridade alheia e, em se tratando de seu uso puro, nem sequer da experiência. A indolência faz, porém, que um número muito grande de homens prefira seguir as pegadas de outrem ao invés de empenhar as forças da própria inteligência. Homens desse jaez só podem se tornar sempre cópias de outros, e se todos fossem dessa espécie, o mundo permaneceria eternamente em um só e mesmo lugar. É, por isso, de alta necessidade e importância que a juventude não se mantenha, como costuma ocorrer, a imitar pura e simplesmente.”

(Kant, I. Manual dos cursos de lógica em geral)

Paulo Irineu Barreto
Enviado por Paulo Irineu Barreto em 07/11/2010
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