CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO

Quem visita o setor de “História Natural” do Museu Britânico em Londres sai de lá, certamente, um pouco mais convencido de que o desenvolvimento dos seres vivos segue um processo de evolução. Apesar de haver ainda muitos saltos, não esclarecidos, na teoria da evolução, contudo, praticamente, hoje em dia, ninguém mais nega uma evolução continuada do desenvolvimento das espécies de seres vivos. Outra questão é o surgimento de novas espécies, ou o despertar do espírito humano. A paleontologia não contribui muito para esclarecer este fato, pois o modo popular de narrar a passagem direta do macaco ao homem não é científica. Por isto, aquele pai teve razão ao dizer ao filho – que lhe repetiu a lição de aula em que o professor ensinara que o homem vinha do macaco – “Meu filho, está certo, você pode descender de um macaco, mas saiba que o mesmo não aconteceu com seu pai e sua mãe!” Em contraposição a esta compreensão popular de evolução, as galerias do Museu Britânico nos dão provas suficientes duma grande linha evolutiva existente na natureza. Surge assim o problema de como harmonizar esta realidade científica com o pensamento da criação do mundo. Será que o reconhecimento duma evolução universal nega a criação dos seres? Será que os enunciados bíblicos e religiosos, em geral, sobre a formação do mundo possuem valor perene, ou surgiram eles à base duma concepção mitológica do mundo?

Os mitos da criação.

No mundo cultural dos antigos israelitas existiam tradições que não falavam apenas na criação, mas havia também histórias que narravam o surgimento do mundo de outra forma. Finalmente predominou a ideia do Deus Criador. Na verdade, não há oposição radical entre a ideia da criação e do surgimento do mundo. Por isto, mesmo para uma mente religiosa, baseada na Bíblia, não deveria ser difícil compreender que, propriamente, não existe contradição entre criação e evolução dos seres. Os elementos primigênios, donde teria surgido o mundo, poderiam tanto ser criados como eternos. Mas, os escritores bíblicos não sentiram a necessidade de distinguir entre estes dois aspectos. Em sua compreensão mítica da origem do mundo, falando da criação, sua intenção era demonstrar que a firmeza e a subsistência do universo dependiam da divindade criadora. Por isto, a obrigação humana de cultuar o Deus Criador. Já os babilônios, mais antigos do que o povo bíblico, comemorando anualmente a renovação de todos os seres, recitavam, por ocasião destes festejos, um relato épico sobre a criação do mundo. Fundamentalmente, os mitos da origem do mundo de elementos primigênios, e da criação a partir do nada, tinham a mesma função: cultuar e louvar a Deus, ou as forças conservadoras do mundo. Constituía-se, assim, uma relação direta entre o mito e a realidade presente, entre a origem dos seres e sua situação atual. A mesma função que encontramos nos mitos, encontramos também nos relatos bíblicos sobre a origem do mundo e do homem. A constância da ordem no desenvolvimento deste mundo é apresentada ali como uma obra criadora da bondade divina. O escritor sacro manifesta esta sua ideia com a intenção de acentuar que o Deus Javé, que está na origem de todas as coisas, por isto cuidará também no presente de sua obra, merecendo assim o culto do povo israelita. Interessante é que as narrações bíblicas distingam sempre claramente entre Deus e sua criação. Em outros mitos isto nem sempre acontece, pois, confundem, não poucas vezes, o Criador com as criaturas, tendendo ao panteísmo. Em parte, para superar este panteísmo, o livro bíblico do Gênesis, ensina que todo homem que crê num Deus pessoal deve considerar o mundo como criado. Isto, porém, não significa que o Gênesis queira explicar em todos os seus detalhes como se efetuou esta criação. O autor bíblico fala na linguagem de sua época e com os conhecimentos que lhe eram acessíveis, sem a preocupação científica de nosso tempo. O único ensinamento perene que nos quer transmitir é a afirmação de que o universo, a terra com suas plantas e os seres animais, e tudo o mais existente surgiu sob o comando de um Criador e Ordenador Supremo. Não se diz que este comando não se possa cumprir através dum processo evolutivo. O surgimento do mundo, e seu posterior desenvolvimento, portanto, podem ser entendidos como a evolução daquilo que inicialmente foi criado.

Criação e evolução.

Evidentemente seria um absurdo supor que as antigas narrações da Bíblia sobre a criação do mundo e dos homens tivessem conhecido a problemática atual da evolução das espécies, e quisessem solucioná-la. A questão da evolução apenas se tornou aguda com o desenvolvimento das ciências naturais. E as dificuldades com os textos bíblicos surgiram porque se interpretava estes textos literalmente. Já no século XVII o filósofo judeu Baruch Spinoza advertia de que os textos bíblicos deveriam ser interpretados histórico-criticamente. Isto é, a partir do contexto histórico e cultural em que surgiram. Mas muitos insistem em considerar os textos bíblicos como atemporais e com representações de valor perene. Naturalmente, uma tal concepção não resiste aos conhecimentos linguísticos e científicos dos nossos dias.

Não podemos, aqui, expor todas as teorias sobre a evolução dos seres, mas uma linha fundamental, constatável em todas elas, parece ser a seguinte: “Do já existente se desenvolvem formas novas, as quais evoluem de estágios inferiores para estágios superiores, portanto, do menos perfeito para o mais perfeito”. O patos da fé evolucionista baseia-se, justamente, sobre o fato de que o desenvolvimento dos seres se processa do menos desenvolvido para o mais desenvolvido. Toda evolução supõe, porém, a já existência do ser a evoluir. Uma evolução do nada seria impensável.

As ciências naturais admitem hoje unanimemente, como conhecimento certo, que o mundo e os seres nele existentes de fato evoluem a partir de um estágio primitivo de existência. Nesta evolução, de tempos em tempos, se tornam ativas leis já existentes nos estágios evolutivos anteriores, as quais agem durante um período mais ou menos longo.

Não é absolutamente certo, mas muito provável, que nosso sistema solar tenha uma idade limitada de apenas 4-5 bilhões de anos, e o cosmos como um todo cerca de 18 bilhões de anos. As ciências astronômicas, em todo caso, não conseguem recuar para além desta data. Com isto também não se consegue demonstrar a origem eterna da matéria, nem a existência de um mundo anterior ao nosso, pois as leis naturais conhecidas são imanentes ao nosso mundo. Por outro lado, a origem da vida na terra continua uma incógnita para a ciência. Apesar disto, é certo que os elementos orgânicos, portadores imediatos da vida, os aminoácidos, comportam a capacidade de se formarem num longo processo evolutivo. E desde o período geológico do cambriano (que se iniciou há cerca de 600 milhões de anos) até aos nossos dias há uma relativa constância na transformação das formas de vida. Esta é uma observação real e objetiva. Nós, porém, por causa da brevidade de nossa existência, só conhecemos os seres vivos como descendentes de outros seres semelhantes a eles. Daí a nossa conclusão lógica de que a continuidade da vida deva ser continuidade por descendência. Realmente é fato pacífico que dentro das mesmas espécies houve evoluções. Mas, mesmo dentro das mesmas espécies, há uma gama imensa de bifurcações, e no recuo biológico se formam correntes imensas de estágios evolutivos. E em alguma destas correntes evolutivas está também engajada a evolução do homem, mesmo que o despertar do espírito humano não possa ser simplesmente consequência de evoluções anteriores.

Evolução e Bíblia.

Os conhecimentos das ciências naturais sobre a evolução somente causam problemas àqueles que tomam as narrações bíblicas, sobre a criação do mundo e do homem, ao pé da letra, considerando-as como reportagens históricas sobre a origem do mundo. Estes são os fundamentalistas, com fixação mental mítica e linguagem teológica inadequada. A exegese bíblica, há muito, ensina que as narrações do Gênesis sobre a criação do mundo não têm a intenção de enriquecer nossos conhecimentos de história natural. Não existe base para comparar a “história bíblica da criação” com os resultados das pesquisas das ciências naturais sobre a evolução. Se o fizéssemos, procederíamos como quem compara uma poesia sobre o céu estrelado com uma fórmula astronômica. Também para aquele que crê num Deus criador não deveriam surgir dificuldades em admitir que o mesmo Ser que estabeleceu o início do mundo também pode ter colocado nele as sementes para a sua evolução. E até se poderia dizer que um Deus, capaz de inserir a energia evolutiva na natureza, para que ela de uma ou poucas formas de vida iniciais evolua para a multiplicidade de formas hoje existentes, é muito mais maravilhoso do que um Deus que criou um mundo estático.

Seria errôneo supor que todo aparecimento dum ser novo como, por exemplo, o surgimento de uma nova espécie, ou a formação de um novo corpo celeste, exija a intervenção direta dum ser criador. Deus não se reduz a um “deus ex machina” que intervém lá onde os nossos conhecimentos encontram seus limites. A questão não se resolve se prendermos a Deus na corrente das causas intramundanas. Muito mais certo é considerá-lo apenas como o fundamento dos seres existentes. Assim, nada se oporá a uma evolução do mundo. E falar em criação do mundo não excluirá a evolução biológica das espécies vivas. A energia evolutiva também seria um sinal vivo deste mesmo Deus na natureza. Talvez, de fato, Deus somente criou aquilo que a evolução não podia produzir, como, por exemplo, o espírito humano.

Quem quer que visite o setor de história natural do Museu Britânico em Londres se confrontará necessariamente com uma realidade muito profunda da espécie humana: a limitada história da humanidade. Milhões de anos antes que o homem demonstrasse sua presença na terra dinossauros, répteis, aves, peixes e mamíferos de aspectos estranhos, e muitas vezes terríveis, já habitavam nosso planeta. Destas muitas espécies desapareceram, com ou sem a intervenção do homem. E, desde que o homem, esta nova espécie de mamífero estranho, apareceu, ele começou a povoar a terra, mostrando-se o rei e o tirano da criação, podendo ser considerado o ápice da evolução.

Inácio Strieder é Professor de Filosofia – Recife/PE