A Universidade Católica no Mundo de Hoje, (2ª parte)

(continuação).

Não serão teorias econômicas e sociais, leis, sistemas jurídicos, que possibilitarão a construção de um patamar mais humano de convivência que supere o atual mundo conturbado e violento. Haverá de ser uma variável externa ao sistema conflagrado, a densidade ética do pensamento da maioria das populações, que irá aglutinar as aspirações de milhões de homens e mulheres, em todo o planeta, para esta obra de salvação da humanidade. Sem uma crença na Transcendência é impossível pensar na ética. Ética como um ramo da Filosofia que trata de apontar os caminhos que permitam a distinção entre o bem o mal em relação à pessoa humana e a vida. Não crer na Transcendência, considerar que todo o mistério da vida e da pessoa humana possa ser reduzido à compreensão das interações físicas e químicas de um organismo complexo é simplificar a questão e permitir que o individualismo egoísta possa até propor, como já surgem os primeiros sinais, a categoria dos homens e mulheres descartáveis. Homens e mulheres, marginalizados, que não produzem, que enfeiam a paisagem, que perturbam com sua presença e reivindicações o mundo moderno bem ordenado pelo eficiente mercado e a vida feliz e tranqüila da classe dominante, devem e podem ser eliminados já que são meros objetos, pura matéria.

As universidades pertencem a este mundo trepidante e complexo, a esta realidade em processo de rápidas transformações e para servir a uma humanidade sofrida e desorientada é que existem.

Este é o desafio lançado às universidades de todo o mundo, mormente às universidades confessionais, principalmente às católicas. Estão elas prontas, conscientes e capacitadas para atender a este angustiado pedido, a responder a esta expectativa da Igreja e dos povos?

Creio que não.

Ressalta, de imediato, o fato concreto de ser a Universidade Católica considerada, por muitos, como um anacronismo aceito, com elegante bonomia, por expressiva parcela da academia contemporânea que, na sua competente arrogância, dispensa a hipótese de Deus para dar curso às suas investigações e ao ensino dos jovens. Ouvi, certa vez, de um conceituado físico católico a afirmativa, sobre cursos de doutorado em Teologia como sendo doutorados menores... Nossos professores, aqueles que são católicos, cristãos, geralmente se acovardam perante o ambiente hostil à crença na Transcendência e se calam, não respondendo as criticas aos valores do cristianismo e às conclusões dos trabalhos acadêmicos apresentados nas várias áreas do conhecimento que se opõem à fé católica. Crer em Deus e na ação evangelizadora da Igreja parece ser, cada vez mais, no meio acadêmico, uma atitude intelectualmente inferior, desabonadora, uma fragilidade metodológica.

A Igreja, quando necessita de, publicamente, defender seus pontos de vista sobre temas discutidos de forma superficial e emocional pela mídia, tais como o aborto, as experiências genéticas, as hipóteses cosmológicas em curso, as propostas de ação sobre o social, as experiências históricas do cristianismo, raras vezes encontra respaldo nos seus intelectuais leigos, precisando recorrer, quase sempre, aos religiosos e religiosas que abordam a questão sob a ótica da filosofia e da teologia, que aprenderam nos seminários e casas de formação. Onde estão os nossos cientistas, insignes nas suas várias especialidades, fortes na fé, professores das nossas universidades, capacitados a levantar suas vozes abalizadas na defesa da Igreja e dos seus ensinamentos frente a enxurrada de atentados à dignidade da pessoa humana, à verdade das Escrituras, à história da Igreja Romana, ao papel fundamental do cristianismo na formação da Civilização Ocidental?

Muitas vezes sou levado a crer que os professores das nossas Instituições optam em ali trabalharem por conta de salários razoáveis pagos em dia, da boa organização nas rotinas diárias, do convívio agradável, da ainda alguma disciplina do corpo discente e da liberdade para exercerem com dignidade suas atribuições de mestres. Alguns professores, face à liberdade de trabalho que desfrutam, mesmo sendo remunerados por carga horária plena exercem funções em outras instituições de tal forma que seus rendimentos sejam maiores. Não percebo participação expressiva de fé na doutrina católica ou respeito pelos pronunciamentos da Igreja. Quaisquer outras instituições que oferecerem condições de trabalho semelhantes serão consideradas como alternativas para suas vidas profissionais. No início dos anos de 1960, na maioria das Universidades Católicas, alunos, professores e religiosos que ali conviviam, dedicavam tempo para discutir estes temas esclarecedores sobre a missão da Universidade Católica. Eram debates acalorados que muito ajudaram na transformação dessas entidades de ensino superior no que hoje são – não esta pasmaceira que hoje impera nos campi aonde, assim parece, cada um está apenas preocupado em cumprir suas tarefas, publicar suas pesquisas e desaparecer, sem se preocupar em participar dos debates sobre temas de superior interesse para Igreja e para o Povo de Deus.

O que as escolas e as Universidades Católicas devem ser, qual a relação que devem manter com a Hierarquia, quais os princípios norteadores de sua organização, estão disponíveis, há muito tempo, na ampla bibliografia sobre a matéria que existe nos documentos pontifícios, nas publicações conciliares, nos documentos das conferências episcopais. A questão é indagar, para ser respondida no recôndito dos corações de cada um, dos Reitores, dos Vice-Reitores, dos Decanos, dos Diretores de Departamento e dos Professores: - quantos leram estes documentos principais sobre a missão e a organização das universidades católicas? Com certeza muito poucos. E os nossos alunos que saem com seus diplomas, para enfrentar o mundo, sem nada saberem de sólido sobre a fé que anima as Instituições que os acolheram e os formaram? As cadeiras de cultura religiosa, (matérias “chatas” e menores...), na maioria das vezes, se dedicam a exposição de tópicos filosóficos, ignorando que os alunos não têm a menor noção da estrutura e da história da fé católica, pois, no ensino básico também foram mal atendidos nesta questão. Seus conhecimentos se restringem ao catecismo que foram obrigados a ouvir no momento em que se preparavam para a primeira eucaristia, muitas vezes apenas um ritual social a ser cumprido pelas famílias, num determinado momento da vida de seus filhos.

O Catecismo da Igreja Católica, preparado com esmero, por anos, por Comissão Pontifícia de alto nível, que deveria ser o texto básico para a cultura religiosa de quem faz um curso numa Instituição de ensino superior católica é desconhecido, como algo de excessivamente dogmático que não deve ser imposto ao corpo docente. Mesmo que não sejam católicos os nossos alunos, como pessoas portadoras de diploma de ensino superior, como cidadãos diferenciados por conta do título que receberão, deveriam conhecer a história e os pressupostos do cristianismo, como parte integrante dos conhecimentos básicos de um cidadão ou cidadã bem formados, independente da fé ou das carreiras pela qual optaram. Se não interessar por seu conteúdo de fé o fenômeno histórico do cristianismo, por sua importância na formação da civilização Ocidental, deveria ser exposto como enriquecimento cultural de importância para a criação de uma forte razão critica a ser exercido pela cidadania. Já não espero adesão à nossa fé por parte da totalidade das nossas comunidades universitárias, mas pelo menos posso esperar respeito aos propósitos maiores das nossas instituições educacionais, tal como é definido pelo Magistério Eclesial e o esforço da Igreja em criá-las e sustentá-las. Os religiosos e religiosas, que se dedicam ao ensino superior, são cada vez em menor numero. Aqueles que lá trabalham, geralmente na administração das casas, não são identificados como tal, pois nenhuma distinção, inclusive de suas vestes, (o colarinho eclesiástico, por exemplo), permite que alunos e professores visualizem que ainda existem religiosos no convívio diário da instituição, nesta iniciativa e obra da Igreja. As capelas universitárias, em relação ao numero total de alunos e docentes, tem uma procura baixíssima e a freqüência aos sacramentos é muito diminuta em relação ao total da população universitária.

O Cardeal Newmam, conhecido como o “grande convertido do séc. XIX”, (era um religioso anglicano antes de sua conversão à fé católica), baseado na sua experiência na criação da Universidade Católica da Irlanda, experiência que vivenciou com intensidade, escreveu o livro “The Idea of University”. Num dos trechos afirma que o que caracterizaria uma Universidade Católica seria a existência de um forte Departamento de Teologia, (ousaria complementar o eminente Cardeal afirmando que, nos dias atuais, não só um Departamento de Teologia, mas também um de Filosofia). Esta é uma verdade que permanece válida nos nossos dias, inclusive enfatizada na Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiae. Quantos “fortes” e expressivos, Departamentos de Teologia ou de Filosofia temos nas nossas Universidades, capazes de estabelecerem um diálogo permanente, de alto nível, com os demais Departamentos das áreas humanas, sociais e das ciências físicas e biológicas? As universidades católicas, em todo o mundo, sempre se distinguiram na Teologia, na Filosofia e nas Ciências Humanas e Sociais. Agora que enveredaram pelo ensino nas Ciências Físicas e Biológicas, que pelo menos tratem de formar alunos que possam testemunhar a fé católica nestes ambientes tão refratários ao pensamento fundado na crença da Transcendência. Só assim as Universidades Católicas estariam justificando suas existências.

É certo que os Bispos têm pouca familiaridade e intimidade com o mundo acadêmico. Os saberes cada vez mais especializados muitas vezes os assustam. Há a necessidade dos leigos participarem da obra da Igreja, afirmando e anunciando, como católicos, como cristãos, aqueles aspectos centrais da nossa fé que, até hoje, praticamente, são proclamados e defendidos somente, ou quase que exclusivamente, por religiosos e religiosas.

É oportuno lembrar o que nos ensina, sobre este aspecto do testemunho religioso, o Catecismo da Igreja Católica:

“ ‘A economia cristã, portanto, como aliança nova e definitiva, jamais passará, e já não quer esperar nenhuma nova revelação publica antes da gloriosa manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo’. Todavia, embora a Revelação esteja terminada, não está explicitada por completo; caberá à fé cristã captar gradualmente todo o seu alcance ao longo dos séculos”, (Catecismo da Igreja Católica, nº 66, 1992).

É esta explicitação, é este debate qualificado e especializado, que se espera que comece, que se enriqueça, no âmbito das Universidades Católicas, de todo o mundo, de tal forma que o Magistério Eclesial se beneficie destas informações, destes enfoques e debates, desta perspectiva acadêmica e possivelmente os transformem, a seguir, em orientação formal da Igreja. Sem esta participação, sem esta colaboração universitária a Igreja continuará a chegar atrasada nos seus pronunciamentos sobre o que está ocorrendo neste mundo veloz e multifacetado. Continuará a reboque dos acontecimentos que abalam a fé dos povos, que desregulam o comportamento social que se quer solidário e fraterno entre os cidadãos de todo o planeta, que fragilizam a família, que abastardam a maravilha do dom da vida, que praticamente liquidam com a realidade do mistério de Deus e da pessoa humana, como aspectos decisivos para a compreensão da dinâmica do Cosmo.

Responder às perguntas, aos vazios de conhecimento que estão no caminho que todos devem percorrer, são desafios às nossas universidades. As universidades católicas, de todo o mundo, não podem mais se omitir se isolando nas assépticas ilhas de ensino e pesquisa, em que os seus campi estão se transformando. Não esperem que o Papa e os Bispos peçam mais do que já foi pedido e sugerido. Tratem, coerentes e conseqüentes com o nome e títulos que ostentam, de tomar iniciativas e comecem a oferecer suas reflexões sobre os males que atormentam a humanidade contemporânea, com coragem e sabedoria. Alertem seus irmãos e irmãs para questões que só eles, cientistas eminentes, podem perceber, na complexidade e interdisciplinaridade dos fatos em si e dos possíveis desdobramentos que poderão vir a ter no futuro próximo. Tomem iniciativas, pois católicos que são os professores e dirigentes universitários, também são Igreja, uma Igreja que, mais do que nunca, precisa deste apoio. Responder a este apelo, a estas indagações é atitude importante, urgente, honesta e responsável.

Creio que vivemos um instante histórico, como em alguns momentos do passado, quando indagações de cunho filosófico e teológico, devidamente respondidas e difundidas pelos nossos doutores, pelas nossas universidades, tornaram possível a Civilização Ocidental. Originada na Europa, esta Civilização Ocidental, hoje se espraia por todo o planeta com suas instituições, com sua forma de pensar e de organizar a vida coletiva. Recordo as palavras do grande historiador francês, Fernad Blodel, que disse com implacável correção:

“O cristianismo ocidental foi e permanece como o componente maior do pensamento europeu, até mesmo do pensamento racionalista que se constituiu contra e a partir dele. A cada passo da história do ocidente, ele fica no cerne da civilização que ele anima, mesmo quando se deixa levar ou se deformar por ela, e a engloba, mesmo que esta civilização se esforce para escapar do cristianismo. Porque pensar contra algo é permanecer dentro de sua órbita. Mesmo ateu um europeu é ainda prisioneiro de uma ética, de comportamento psíquicos fortemente enraizados em uma tradição cristã”, (Grammaire des Civilizations, 1987)

Hoje o mundo que se delineia, atordoado, angustiado e sem rumo no meio dos embates com o crime organizado, com o consumo das drogas, com o terrorismo, com o mundo islâmico militante e expansivo, com a devastação ambiental, com o abastardamento da vida, com a desagregação do ideal familiar, com o desconhecimento egoísta das angustias do próximo, com a não existência de trabalho para todos devido a expansão da tecnologia, seduzido por religiões de ocasião, que com fraca reflexão teológica e máxima esperteza financeira, seduzem as pessoas simples atemorizadas, precisa das reflexões esclarecedoras, libertadoras e corajosas, das Universidades Católicas. Precisamos continuar a honrar nossa herança cultural sob pena de nos descaracterizarmos como cidadãos. Testemunhar a fé e mostrar sua compatibilidade com o trabalho acadêmico, de que nos fala a Encíclica Fides et Ratio – Fé e Razão categorias não antagônicas mas complementares - é o que se espera do comportamento dos intelectuais cristãos. Como tão bem nos ensinou João Paulo II, com bela imagem logo no inicio da citada Encíclica:

“A Fé e a Razão, (Fides et Ratio), constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”.

Encerro este artigo recordando, uma vez mais, este extraordinário Pontífice, João Paulo II, que, por mais de duas décadas, orientou a Igreja de Nosso Senhor, Redentor dos Homens, convicto de sua missão divina e de seu papel histórico. Preocupado com a secularização da Europa e do Ocidente, com o abandono dos princípios éticos divulgados pelo cristianismo sobre os quais se erigiu este notável monumento civilizacional que é o espírito e a perspectiva humanista da história – a prevalência da dignidade da pessoa humana em todos os momentos da vida em sociedade – não cessou de aconselhar e admoestar em notáveis documentos. Poucos foram os sucessores de Pedro que foram chamados a afirmar, em testemunhos pessoais e ações concretas, em escritos marcantes pela sua sabedoria e oportunidade, aquilo que outro Papa notável, Paulo VI, afirmou com serena certeza, no plenário da ONU, em outubro de 1965: “A Igreja é perita em humanidade...”. Logo após a sua eleição para a direção dos destinos da Igreja, em 1978, em discurso aos membros da UNESCO, antevendo os múltiplos desafios do futuro, percebendo os sofrimentos da humanidade órfã de orientação segura e perene para seus problemas, expectativas e indagações, verificando alguma falta de iniciativa da Igreja – Santa, Católica e Apostólica – que fora chamado pelo Espírito à conduzir, João Paulo II assim ensinou, repetindo as mesmas palavras em três diferentes ocasiões, com radical clareza e sabedoria:

“O diálogo da Igreja com as culturas do nosso tempo é o setor vital no qual se decide o destino da Igreja e do mundo, neste final de séc XX”, (João Paulo II, discurso aos Cardeais em 10/11/79; discurso na Unesco em 2/6/80; Constituição Pastoral Ex Corde Ecclesiae, sobre as Universidaes Católicas, nº 3, 15/8/90).

Dialogar de forma organizada e competente com as culturas do nosso tempo, como representantes da Igreja de Nosso Senhor no mundo acadêmico, é a principal missão das universidades católicas. O “povo de Deus”, homens e mulheres de boa vontade, esperam angustiados pelo fim do silêncio acadêmico que impera nos dias de hoje. Todos aguardam, com ansiedade, o resultado deste diálogo a ser conduzido pelas Universidades Católicas.

Como os mosteiros e universidades na Idade Média, que souberam preservar a cultura clássica e desenvolveram preciosas reflexões filosóficas e teológicas que sustentaram o esplendor da Renascença e o desenvolvimento observado na era moderna, por exemplo: Cassino, Bec, Cluny, Bolonha, Palermo, Salamanca, Oxford, Cambridge, Chartres, o mundo aguarda ansioso o contributo das atuais Universidades Católicas que, fieis a orientação do Romano Pontífice – o pontifex, o fazedor de pontes entre uma humanidade perplexa e as certezas perenes da Boa Nova, colaborem na construção deste caminho para a promoção integral da natureza humana, da justiça, da liberdade e da paz.

Estamos prontos para este diálogo? Estamos prontos para responder às expectativas que a Igreja, que “o povo de Deus”, tem e espera de nós? Estamos conscientes do papel fundamental que temos de desempenhar no mundo atual? Estamos dispostos a testemunhar, com coragem e determinação, nossa fé no campo intelectual?

Vamos tentar responder a estas indagações.

Fim.

Eurico de Andrade Neves Borba
Enviado por Eurico de Andrade Neves Borba em 28/08/2010
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