Dimensão mental e material de um problema

Reflexão sobre o ensino baseada numa avaliação diagnóstica de alunos da E.S. D. Filipa de Vilhena (Porto) e entregue à então responsável pelo agrupamento disciplinar de Físico – Químicas. Desde a data que se indica os problemas apontados não deixaram de se agudizar.

A apresentação dos alunos do 8º ano ao seu professor de Físico Químicas em 2004/05 foi feita através do preenchimento de uma ficha onde escreviam nome número e turma, o que consideravam o seu pior defeito e a sua maior virtude, o que mais gostavam na escola e o que mais detestavam e finalmente a resposta a cinco questões, para a última das quais o professor não só considerava improvável qualquer resposta como também a fez variar de umas turmas para outras, pelo que não lhe fará qualquer referência.

Duas particularidades levaram o professor a considerar, no final do ano lectivo, esse conjunto de respostas como merecedoras da presente reflexão e eventualmente úteis à própria escola: (i) ter tido a seu cargo todas as turmas de um mesmo ano (o 8º) de escolaridade na disciplina de Ciências Físico - Químicas, o que lhe acontece pela primeira vez e (ii) os seus ex-alunos acabarem de ultrapassar a escolaridade média dos empresários portugueses (7,7 anos).

A pressuposta utilidade para a escola assenta na convicção de que os alunos a que o registo alude constituirão o grosso do contingente que terminará (?) no próximo ano o 3º ciclo do ensino básico na mesma escola e de que se registam dados que ajudarão a caracterizar o tipo de sucesso que o nosso sistema educativo tem vindo a construir e no qual insiste. Pressupõe ainda o professor que o anonimato das respostas, seu indeclinável dever, não desvaloriza o conjunto.

A 1ª questão da ficha referida pedia o endereço da escola: 16 dos 64 alunos não conheciam nem sequer o nome da rua e apenas 8 sabiam nome da rua e número de polícia.

A 2ª questão perguntava quem era e em que século viveu D. Filipa de Vilhena. Responderam 19 dos 64 alunos: 2 identificaram-na como professora sem a situar no tempo, 3 não a identificaram situando-a, dois deles no séc.18 (sic) e um num suposto séc.VXI (?), 6 responderam que era escritora, dois deles situando-a no séc.XIX, um no séc.XVIII e outros três não a situando temporalmente; dos outros 8 transcrevem-se as respostas

- Foi a primeira professora desta escola e viveu no séc.XV

- Posso estar a dizer uma grande asneira mas penso que fez parte da direcção da Escola

- D. Filipa de Vilhena fez parte da realeza, penso. Há uma imagem dela perto de dois soldados, onde um deles está ferido. Penso que essa fotografia é do tempo de D.Carlos, no início da revolução.

- Penso que foi uma escritora famosa que viveu no séc.XX

- Foi uma dama que viveu no séc.XVIII

- Era uma dama brasileira que viveu no séc.XIX

- Eu acho que D. Filipa viveu no séc.XVI e que foi uma benfeitora

- Deve ter sido uma Srª notável para ter deixado o nome dela a uma escola

Destas respostas não retirou o professor de CFQ senão uma ideia do que os alunos consideravam como atributos justificativos da escolha de um nome para uma escola e a impressão de que a última das respostas transcritas revela uma grande vocação para a diplomacia. Em defesa dos alunos (necessidade nem sentida nem expressa pelos próprios) tem de considerar-se que os “leves” entorses à realidade histórica continuam a não ter qualquer relevância social.

Num recente programa de propaganda televisiva, disfarçado de debate entre gurus do empresariado sentados em dois balcões entre os quais a moderadora (?) ensaiava uma imitação tosca e singela do movimento vibratório simples, lembrou-se esta de citar Galileu Galilei (o Galilei para evidenciar erudição) como tendo dito qualquer coisa do género “dêem-me um ponto de apoio e deslocarei o mundo”. Alguns livros fáceis de encontrar (precisarão agora de ser revistos?) atribuem, como é sabido, a frase a um senhor um bocadinho mais velho (não chega a 1900 anos) de nome Arquimedes e residência predominantemente em Siracusa. Pelo menos dois dos gurus (Henrique Neto e Belmiro de Azevedo) tinham obrigação de o saber mas não disseram nada; quer soubessem quer não, estarão ambos certos de que o seu silêncio nem lhes diminui o volume de negócios nem lhes belisca o estatuto de gurus. E a moderadora continuará a palrar simpaticamente sobre o que não sabe. O que coloca os meus estimados ex-alunos na mais actual das modernidades c.q.d.

A 3ª questão posta era a de saber quantos copos de 25 cL se podiam encher com (um garrafão com) 5 L de líquido

34 alunos (incluindo 5 que copiaram, a resposta que não a conta) não resolveram este problema: 8 de cada uma das turmas A e B e 18 da C (onde estavam os 5 que copiaram), descriminação que se faz admitindo que possa ser útil à análise das turmas do próximo 9º ano.

“Quanto toca a cada um se dividir 5 bolos por 8 amigos? “ era a 4ª questão.

40 alunos não deram qualquer resposta; 23 (14 na A, 5 na B e 4 na C) deram a resposta sob a forma de nº decimal, resolvendo o problema apenas na sua dimensão mental, sem qualquer comentário à inutilidade do resultado para a resolução na prática, isto é, sem ligação à realidade, e apenas um aluno (acentue-se que dos mais fracos em termos escolares) evidenciou ter em conta a dimensão real do problema ao representar os bolos por rectângulos que dividiu, sem todavia apresentar a resposta certa, provavelmente por não saber o nome das fracções. As crescentes dificuldades com fracções e operações com elas parecem indiciar uma próxima revisão curricular destinando esse estudo ao ensino superior na área da matemática pura.

Considera-se suficiente o que fica dito, como súmula do esboço de diagnóstico levado a cabo no início do ano lectivo.

A utilidade da comparação dos resultados com a experiência, em escolas e meios diferentes, do mesmo professor (numa análise obviamente subjectiva) pode ser duvidosa mas nem por isso deixa de se apresentar por temor de que o sistema educativo português ganhe, muito em breve e em termos internacionais, um carácter tão jocoso como a demonstração, pelo presidente da Junta de Energia Nuclear, da inexistência do satélite artificial soviético ou o ataque ao desarmamento, pelo nosso representante na ONU, baseado no risco de invasão de marcianos.

Os resultados de diagnósticos semelhantes levados a cabo nas quatro outras escolas do Porto em que o mesmo professor deu aulas depois da profissionalização (em 1997) não são muito melhores; ter-se-ão notado (ao longo dos anos e independentemente das escolas e dos anos de escolaridade observados) pequenos acréscimos na dificuldade de fazer contas, em especial com fracções e de redigir ou interpretar frases um nadinha mais compridas do que uma linha de texto. Também parecem esses acréscimos representar uma aceleração maior do que nos 10 ou 15 anos anteriores já que as diferenças se notam de ano para ano.

Noutros meios as comparações são mais desfavoráveis. Na relação diária com centenas (e menos frequente com milhares) de trabalhadores analfabetos ou com o máximo de 4 anos de escolaridade que manteve durante mais de 30 anos na indústria, muito raramente se encontrou quem não fosse capaz de responder a questões tão simples (ou mesmo mais difíceis). Mais difícil ainda seria encontrar quem não tivesse em conta a dimensão material de um problema: podiam ser muitas as respostas do tipo – parto cada bolo em 8 fatias iguais, dou uma a cada um e depois faço o mesmo aos outros cinco bolos – sem nomear os cinco oitavos, mas é quase certo que ninguém (mesmo os que sabiam dividir) responderia que cabiam 0,625 a cada um, isto é, não seria fácil desligá-los do real. O que 7 anos de escolaridade plenamente conseguem.

Nesta perspectiva (que se sabe minoritária mas tem crescido) é impossível não se colocar uma interrogação – não será o abandono escolar precoce uma medida de auto defesa, ainda que mal consciencializada, da ligação ao real e da integridade da própria inteligência? – com a inerente angústia pela parcela de responsabilidade que cabe mesmo (talvez sobretudo) a quem a coloca.

Outro abandono precoce, a reforma de professores antes da idade limite tem mais claramente como objectivo a defesa da mesma integridade perante a agressão com programas, orientações curriculares, definições de competências, instruções para avaliação, projectos curriculares de escola e de turma (e por este andar tê-los-emos de sexo, de religião, de cor política ou da pele….), mas relaciona-se de forma menos directa com os dados recolhidos e por isso não se tecem aqui e sobre isso, mais considerações.

Com o presente registo deixa os melhores desejos de um bom trabalho, o que parece cada vez mais difícil sobretudo nas áreas em que (ainda) é preciso saber fazer contas, o colega ao dispor

JHVJ