Educação, escola, polícia e violência
São inadmissíveis “operações especiais” próximas às instituições escolares. Não é possível que ainda existam pessoas que pensam que escolas não são lugares onde se encontram pessoas (crianças, jovens e adultos) para estudar e, se possível, agregar conhecimento. É bem verdade que ela anda falhando nesta maravilhosa e doce função. Também já não agrega a boniteza da vida como dizia Paulo Freire, tampouco está cumprindo a função de controle social. Contudo, quando as escolas começam a receber tiros e seus membros começam a cair é sinal que a coisa está mais feia do que se pensa.
O último episódio que recebeu um grande amparo da mídia foi o do belo garoto Wesley Guilber de Andrade, de apenas 11 anos de idade. Ele morreu atingido por um tiro dentro da sala de aula no Ciep Rubens Gomes na manhã de sexta-feira. O tiro saiu de um fuzil 762 utilizado pelo exército e hodiernamente pela polícia militar, notadamente aquela que hoje diz estar assentada na filosofia das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), mas que – na verdade – há muito se encontra em tempos de guerra. Para evitar muitas linhas vou direto ao assunto.
Em primeiro, é forçoso salientar o absurdo do “acontecimento” que deve receber mais tintas da mídia conivente e sensacionalista. Talvez, neste caso, vale até à pena acompanhar os desdobramentos. O discurso que não cansamos de ouvir é que o lugar de criança é na escola. Qual escola? Esta na qual as crianças podem ser baleadas em plena manhã? Convenhamos, a situação é crítica e preocupante. Em entrevista ao Jornal O DIA, o ex-comandante do 9º BPM (Rocha Miranda), coronel Fernando Príncipe, afirmou que “O Ciep é irrelevante. Se não houver Ciep, haverá uma casa, uma fábrica. Mas o pior é não realizar operações”. Talvez ele tenha lá suas razões em comparar instituições tão diferentes em conteúdo, cor e função, afinal o coronel é treinado para isso e seguia ordens do governo. Todavia, suas palavras são fortes porque uma escola não é uma casa qualquer, tampouco uma fábrica que, por sinal, deveria estar lotada de trabalhadores. O espaço escolar - por pior que ele seja - ainda é divino, belo, local, libertador e, teimo a afirmar que é um “lugar” mais importante do que as igrejas, batalhões, hospitais, manicômios e bordeis. A despeito do discurso enviesado do estruturalismo francês, as escolas estão muito distantes das fábricas e iguala-las a outros lugares já é equivocado por princípio e definição. Até porque a bala “perdida”, por estar nesta condição pode atingir qualquer coisa e o problema parece mais do que óbvio: (a) não deveria estar perdida e (b) por precaução não deveria ser encontrada ou muito menos chamada.
Em segundo, apesar de todo discurso da polícia comunitária, paz nos morros, cultura da paz, programas sociais, é notório que o governo assumiu de vez a perigosa metáfora da guerra. Explico melhor: a pedagogia policial é matar o “inimigo”, ir atrás dos alienígenas e dos suspeitos que devem estar cheios de drogas e armas. As informações veiculadas pela mídia não deixam dúvida: “A Delegacia de Homicídios recolheu 35 fuzis de PMs dos batalhões de Rocha Miranda, Barra da Tijuca, Bangu e Santa Cruz, que participaram da ação. As armas serão confrontadas com o projétil calibre 762 encontrado no corpo do menino, compatível com o tipo de fuzil usado por PMs. Policiais civis fizeram perícia ontem no Ciep para calcular de que ponto partiu o tiro”. Armados e treinados para o combate, os policiais soltos nos morros e vielas – na esteira da cultura da guerra – são incontroláveis e, por tarefa e treinamento, avançam no território em busca do alvo. Nas palavras do ex-comandante que não me deixa mentir: “Tínhamos como alvos a comunidade de Final Feliz e os morros da Pedreira, Lagartixa e Quitanda. O bandido é inconsequente, faz disparos em qualquer direção. Tivemos que trocar tiros. Não há outro jeito de se fazer operação. Ou é assim ou, então, não faz. A Inteligência diz que o bandido ele está lá dentro (da favela). Temos que ir lá. O que a polícia deve fazer? Não fazer nada é prevaricação”. Em outra passagem: “Um batalhão de guerra não pode ter dois blindados baixados (fora de condições de uso), 40 fuzis inservíveis. Começamos a entrar em território em que a PM não ia. Claro que, nesses locais iríamos encontrar delinquentes bem armados. Mas era preciso fazer. Na semana passada, delinquentes da região atacaram uma cabine da PM e mataram um taxista.”
Como se vê, não é difícil verificar nas palavras da autoridade policial o discurso próprio da guerra: o “alvo”, a “troca de tiros”, os “blindados”, os “territórios” e os inimigos “bem armados”. Um leitor desatento pensaria que perto dessa escola poderia estar o Agefanistão ou mesmo o estado hobbesiano do Iraque. Como “guerra é guerra” (na guerra procura-se a aniquilação do inimigo), o uso da prevaricação como justificativa não é uma boa, até porque se o tiro não tivesse encontrado Wesley, certamente, o policial não estaria se referindo a tal procedimento. O fato é que a metáfora da guerra entrou no linguajar e no fazer policiamento. Nesta direção, perde a polícia, a escola e os alicerces da possibilidade de paz em regiões nas quais a droga anda solta e o Estado se faz presente ou na precária educação ou na polícia pronta para atirar.
Um terceiro ponto não deixa de ser curioso e merecedor de maiores atenções. Uma das justificativas do ex-comandante ao anunciar a ação é que "a operação foi necessária. Empresários da Fazenda Botafogo já haviam falado comigo que não aguentavam mais. A ação começou às 8h20, havia 100 homens comandados por um major.” Não é preciso ser criança para não entender que a polícia estava, de uma forma ou de outra, atendendo também aos pedidos dos “Empresários da Fazenda Botafogo”. Apelos matutinos que resultaram na morte de Wesley Guilber de Andrade. Valeu à pena? O próprio ex-comandante afirma que não foi a primeira vez que os tiros acertaram o CIEP e que havia solicitado ao governo a blindagem da escola. De duas uma: (1) ou a polícia é ingênua e desconhece as condições das escolas e os reais interesses governamentais ou (2) não faz a mínima diferença se as operações são feitas próximas às escolas, fábricas ou casas.
Por último, parecem louváveis as desculpas do governador Sérgio Cabral (PMDB) que teceu fortes críticas a ação policial. No entanto não é primeira vez que o governador pediu desculpas pela ação desastrosa da polícia. Pedir desculpas alivia, mas não resolve o problema. Se existe um responsável maior pela morte do belo garoto, este é o Estado feioso e leviano que trata melhor o fuzil do que as crianças. O governo atira com a polícia repressiva e, ao mesmo tempo, posa de instituição educativa com a polícia comunitária e de proximidade. Um paradoxo em tempos de democracia. Com a palavra, o próprio ex-comandante: "Nunca houve orientação do comandante-geral para que eu não fizesse este tipo de operação. Ao me exonerar, me disse que sua política privilegiava as UPPs. Eu então afirmei que ele havia me induzido ao erro, não havia sido firme em sua orientação. Ao contrário: ao me empossar no 9º BPM, ele fez um discurso na linha do combate. Afinal, trata-se de uma área onde há 100 favelas. O comandante-geral não foi injusto comigo pessoa física, foi com os comandantes de batalhão.” Como se vê, o tiro “perdido” atingiu outros alvos (humanos e simbólicos). Cabeças começaram a rolar e outras, certamente, vão se fortalecer. O discurso, distante da prática, deve continuar a fazer parte das letras das elites, dos empresários, das autoridades e daqueles que acham bom o combate em tiros próximos das escolas. Afinal, naquelas escolas não estão os filhos deles. Infelizmente, estamos longe, longe mesmo de uma polícia pedagógica e de uma escola respeitada em toda sua boniteza (para lembrar novamente o ensinamento de Paulo Freire), como instituição não somente de controle social, mas - por definição - mais importante e potente que um batalhão, uma fábrica ou uma casa.