Percy Jackson e o processo vestibular (ou “Os heróis do ensino brasileiro”)
Marcha do vestibular
Compositor: Pinduca.
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Alô, alô, alô papai
Alô mamãe
Põe a vitrola prá tocar
Podem soltar foguetes
Que eu passei no vestibular
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Todo ano, após o resultado do vestibular da principal universidade pública no Estado, Universidade Federal do Pará – UFPA, a cidade assiste ao desfile dos candidatos que lograram êxito no certame. Passeiam em carros abertos como verdadeiros heróis após a realização da tarefa que lhes foi imposta. Depois de anos de estudo e da incerteza que normalmente envolve esse tipo de contenda, é compreensivo o êxtase dos jovens universitários. O cenário, guardadas as devidas proporções, se assemelha ao retorno glorioso de Percy Jackson ao centro de treinamento, após ter recuperado e devolvido o "raio" a Zeus e resgatado sua mãe que estava sob a tutela do poderoso Hades, deus do mundo subterrâneo.
Mas não é possível compreender as façanhas realizadas pelo semideus grego e vestibulandos paraenses sem retroceder às suas origens, as quais, por motivos distintos, possuem naturezas igualmente extraordinárias.
Percy Jackson é filho do deus olímpico Poseidon (deus dos mares) com uma mortal. Como semideus é detentor de poderes sobre-humanos. Foi capaz de superar os obstáculos que se apresentaram ao longo da sua “odisséia” utilizando somente as faculdades legadas por seu poderoso ascendente. Os universitários, por sua vez, principalmente os aprovados em medicina, direito, engenharia, etc., também, com raras exceções, são oriundos de uma linhagem superior. Nasceram em condições privilegiadas e tiveram, ao longo da existência, boa alimentação, bons colégios e acesso aos bens culturais, dentre outras coisas. Tornaram-se fortes e distintos para os combates acadêmicos convencionais.
Nas duas situações o sucesso é atribuido às CARACTERÍSTICAS INDIVIDUAIS, como se as habilidades pessoais demonstradas não possuíssem nexo com o contexto em que as personargens estavam inseridas. Percy herdou geneticamente os seus magníficos atributos, tornando-se capaz de grandes feitos. Como herói grego, as suas ações estavam submetidas aos ditames do destino. As Moiras (Cloto, Láquesis e Átropos), deusas responsáveis em determiná-lo, o tecia, para que ele, inexoravelmente, o cumprisse. Na mitologia não era demérito algum realizar o que estava pré-estabelecido, pois significava, sobretudo, que os heróis eram escolhidos por certos deuses, que os faziam seus protegidos, defendendo-os da ação malévola dos outros deuses.
No caso dos novos universitários, as habilidades foram adquiridas culturalmente, em ambiente sócio-econômico favorável. As condições adequadas para o aprendizado tornou o vestibular um jogo de cartas marcadas. O conflito final foi ilusório, pois o resultado já era, de certo modo, previsto. Os representantes da elite, pelo contexto em que vivem, chegam ao "campo de batalha" com inegável superioridade. Os seus desempenhos acadêmicos apenas confirmam o grande paradoxo do ensino público brasileiro: os alunos oriundos das escolas particulares, em nível médio, ocupam as vagas na rede pública superior; os das escolas públicas, migram para a rede privada (quando podem pagar).
O desempenho diferenciado no vestibular é apenas um sintoma das distorções existentes no processo educacional brasileiro. Todo o percurso está contaminado pelo vírus da profissionalização e especialização, às vezes precoce, dos nossos alunos . O pensar, agir, valorizar e sentir se subordinou a esse propósito. A educação se adéquou ao sistema produtivo, reproduzindo no campo acadêmico os desequilíbrios que também afetam outros setores da vida coletiva. Como consequência, coexistem, em nível médio e fundamental, uma escola pública de má qualidade e uma particular, com boa estrutra, destinada aos filhos da elite. Essa dualidade não é prerrogativa exclusiva da área educacional, os serviços de saúde, segurança pública, prestação jurisdicional, etc. também a experimentam
Isso ocorre porque a educação, como os demais serviços públicos, retrata uma sociedade individualista e segregatória por excelência, como se uns fossem filhos de Apolo e outros de Tânatos, onde os bens materiais e culturais são apropriados segundo os ditames das relações de poder existentes. É natural, pois, que em contextos diferentes, os resultados da atividade intelectual também o sejam. Porém, sem terem consciência do caráter ideológico dos discursos que os transformam em heróis, os vestibulandos, ao lograrem êxito no vestibular, comemoram como se tivessem vencido o mais poderoso dos inimigos, sem saberem que as suas vitórias possuem suas causas mais nas desigualdades sociais que em atributos próprios. Do outro lado, os derrotados, embotados pelo mesmo discurso, aceitam passivamente os resultados como se fosse a justa consequência da pouca aplicação aos estudos.
Se analisarmos radicalmente as histórias de Percy Jackson e dos jovens acadêmicos paraenses, perceberemos que a capacidade de superar obstáculos e destruir "vorazes" adversários é apanágio de poucos. Em que pese o mérito pessoal que demonstraram em suas sagas, a razão fundamental de suas vitórias está além de suas próprias faculdades. O filho de Poseidon segue o caminho traçado pelos deuses; os vestibulandos, o estabelecido por uma sociedade desigual. As ações objetivas do Estado evidenciam essa realidade. As cotas para alunos negros, índios, pobres ou oriundos da rede pública de ensino são mecanismos criados pelo Estado para contrabalançar essa distorção, mas, enquanto o cerne da questão não for devidamente atacado, o ensino brasileiro continuará a não produzir alunos, mas heróis.