DA PLURIVERSIDADE...
O reencantamento da universidade pode ser uma das vias de simbolizar o futuro.
Boaventura dos Santos
Poucos lugares exprimem tanto a sociedade como a Universidade. Nela, encontramos efervescências de conflitos demarcados por intencionalidades, silêncios e complexidades. A Universidade é um bólido de significações.
Defendo a tese de que o “espírito absoluto” acadêmico brasileiro, expresso no signo Universidade, mutila, sim, nossa compreensão libertadora, posto arruinar três dimensões basilares: a política, a democracia e a ética. Nessa perspectiva (Universidade), as coisas se dão de tal forma que nos enredamos na ideologia de que ela não passa de “organização social”, de modo que predomina, nos termos de Marilena Chauí, uma prática social determinada por sua instrumentalidade. O essencial, destarte, é seu caráter administrativo, gerenciando os fazeres pela gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Sem dúvida, é a semideusa: onisciente, onipresente e onipotente. Não é à toa que ela se universaliza na fragmentação, na disjunção e, recorrendo a Morin, numa própria esoterização do saber científico. Em todos os ramos, mesmo aqueles nos quais circulam retóricas libertárias, os jogos controladores organizam lógicas paradigmáticas, instituindo marchas, quase inexoráveis, de pura alienação competitivo-reprodutivista. Em síntese, essa é a Universidade sem consciência. Na terminologia chauiana, é a “Universidade Operacional”, segundo a mestra, definida e estruturada por normas e padrões inteiramente alheios ao conhecimento e a formação intelectual, está pulverizada em micro organizações que ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho intelectual. Pesquisa, aqui, não é outra coisa senão posse de instrumentos para intervir e controlar algo.
Entre outras razões, eis por que prefiro o termo “Pluriversidade”. Antes de tudo, ela é verdadeiramente democrática, sobretudo, no sentido de “produtividade da diversidade”. Nela, o desvio é a marca crucial de seu avançar. As fímbrias de realidades atestam que os fenômenos são complexos e que nenhum caminho, nenhum método dão conta dos limites do conhecimento. Ela se recusa engessar-se nas garras “organizacionais”, pois não é prestadora de serviços, para prosseguir firme e constante no ideal de Instituição Social. Naquele modelo (Organizacional) floresce, ensina Chauí, uma ordem biológica da plasticidade, do comportamento adaptativo. Neste, as regras, digamos, passam pela compreensão crítica de que educação é investimento social e político. De maneira que sem essa de serviço; se trata de um direito irrefragável. Na Pluriversidade, a autonomia nada tem a ver com os chamados “contratos de gestão”. Interessam, na verdade, o direito e o poder de trabalhar diretrizes de formação, docência e pesquisa. Nela, condições para a leitura, o estudo e a verdadeira pesquisa, gerando, assim, ambientes de formação autêntica e de exercícios críticos são ações corriqueiras. Sem demérito de outras áreas, na Pluriversidade, a docência é valorizada. A genuína pesquisa é regida pelo tripé qualidade, relevância social e relevância cultural. Outra dimensão deveras importante é a articulação do ensino superior a outros níveis do setor público. Professor “Pluriversitário” estuda e se recusa entupir seus alunos de vadiagem intelectualoide e, no dizer de Pedro Demo, de matéria curricular, da maneira mais reprodutivista imaginável, a peso de memorização forçada e controlada futilmente em provas. Na Pluriversidade, não há lugar para instrucionismos, afinal, voltando a Demo, há uma potencialidade disruptiva que se abre no duplo impacto epistemológico (desconstrói e reconstrói saberes) e político (desconstrói e reconstrói práticas históricas). Enfim, na Pluriversidade, um diploma não é algo vazio, objeto formal; mas representação de uma longa jornada de estudos na qual o saber pensar, o aprender para a vida e o aprender a aprender estão muito além desse desvario mercadológico. Ele é símbolo de emancipação política.
Esse modelo de Universidade em voga Brasil adentro, reafirmo, é impotente para fecundar novos horizontes. Afinal, que futuro libertador pode existir sem incertezas, conflitos e jogos? Certo está Morin: “correlativo ao progresso dos conhecimentos, há o progresso da incerteza e, diria mesmo, da ignorância”. Sem maniqueísmo, não vejo alternativa: precisamos romper com essa nefasta visão de Universidade-organização, que nos aferra a falsos avanços, nos mantém num círculo de debiloidismo cognitivo, cruzamento dos braços e aceitação do estabelecido e partamos para a construção da Pluriversidade (Instituição Social), reconstruindo o necessário e forjando “inéditos viáveis”. Na Pluriversidade, estudamos o mundo, a cultura. Ela não se fecha, não se ritualiza. Ela é “Democracia Cognitiva”.