O assunto deste texto é a “paternidade”, e seguindo a direção de busca especulativa nas páginas do “Livro de Lei” (Bíblia), o momento que achei marcante neste sentido foi o pacto originário entre o homem, representado na figura de Abrão (depois Abraão), e o Deus único. Pois, como observarei, o que se tem ali é o pacto entre o único Pai Criador e aquele que haveria de ser o grande pai humano.
O tempo é em torno de 1800 a . C., o local é a terra de Ur, o homem é Abrão, homem rico e próspero, cujo maior problema, ao longo do que se segue na narrativa bíblica, parece ser o fato de não ter filhos, o que por seu lado é atribuído à infertilidade de sua mulher Sarai (depois Sara). O ambiente é politeísta; a ele, entretanto, manifesta-se Aquele que identifica-se como o Deus Único, o Criador de todas as coisas, e fala-lhe para abandonar sua terra e sua família e dirigir-se para um lugar por ele prometido : é que assim teria posse e uma descendência cujo número de indivíduos ultrapassaria o número de estrelas do céu.
Não é possível afirmar categoricamente qual a parte da promessa que mais interessou a Abrão, mas é fato que se a ocupação territorial vai acontecendo, o tema central do relato bíblico é no que se refere à descendência. Ora, é interessante observar que para aquele a quem caberia ser o pai de povos, no momento do pacto com o Divino, não tivesse um único filho, o que tornava-se um complicador levando-se em conta a sua idade e a de sua esposa.
Assim, creio poder afirmar que o grande impulso de Abrão era a promessa de descendência, embora não esteja aqui afirmando o seu desinteresse pela outra parte da promessa. Ao observar a narrativa percebemos que, conforme o tempo passa, Abrão e Sarai passam a duvidar da promessa. E é por esta razão que, já tendo passado o tempo, Sara, verificando a sua impossibilidade de gerar filhos para Abrão, oferece-lhe a serva egípcia Hagar para ter filho como o marido (o que parece ter sido costume na época para estes casos). E esta acaba por engravidar dele, gerando Ismael.
Entretanto, após este ocorrido a mesma passa a esnobar Sara, que acaba por expulsá-la, ainda grávida, para o deserto. E aqui começa novamente a intervenção de Deus que dirige-se a Hagar fazendo-a voltar e ter Ismael, mas também dirigindo-se a Abrão dizendo-lhe que se ele seria o pai do filho a partir do qual seria feito o pacto, Sara seria a mãe, no que, tanto ele como ela, duvidaram de Deus em razão da infertilidade já constada e da idade de Sara.
Mas eis que ocorreu a promessa e veio Isaque, quando Ismael já era um menino. É assim que Abrão tem seus dois filhos, e o evento marcante a seguir será quando Isaque desmamou e Abrão, para comemorar, deu um banquete. E neste dia Ismael zombou de Isaque, provocando a ira de Sara que, temendo por seu filho, exigiu que Abrão expulsasse Hagar e seu filho para o deserto. Nesse momento ele sente-se dividido, mas é visitado por Deus que fala-lhe para atender a Sara. Assim, ele deve rejeitar o seu primeiro filho.
Imaginemos que, por mais rústico que fosse este homem, ter que rejeitar um filho que tanto esperou, mesmo não sendo o da sua mulher, não deve ter sido algo que não envolvesse dor. No entanto, assim Deus havia interferido a favor disso.
Ismael e Hagar no deserto logo escasseiam suas provisões e esta, em desespero, já prepara-se para morrer quando é visitada por Deus que lhe afirma que isto não ocorreria e que de seu filho Ismael ele faria uma enorme descendência (de fato isto ocorre, pois será deste que haverão de nascer os povos árabes, enquanto de Isaque, os israelitas).
Mas, voltemos a Abrão, e o que se segue é um contato contínuo entre ele e Deus, de forma que não mais apenas ouve, mas também ousa discutir com Ele. É assim que, quando Deus informa-lhe sobre o destino de Sodoma e Gomorra ele as defende e pede para que não venha a punir os que ali fossem justos. E Deus, em resposta, diz-lhe que os salvaria, mas se Abraão encontrasse ali cinqüenta justos. Isto não ocorre, mas ele continua a orar pelas cidades. E sua medida passa a ser encontrar apenas dez justos. Mas isto também não ocorreu: só encontrou o próprio sobrinho Lot, que viera com ele de Ur, e agora lá vivia. E Deus permitiu que apenas ele e sua família se salvassem.
Creio que o importante nesta descrição é que o até então servo de Deus, Abrão, em razão da sua humanidade, apelava pelos homens, enquanto Deus parecia querer dar-lhe um senso de justiça superior. É talvez por esta razão que, para testar sua lealdade como servo, já que ainda não tinha a afinidade do filho (que somente séculos depois surgiria na figura de Jesus), leva Abraão à mais dura prova da sua existência: exige-lhe o sacrifício do filho Isaque em favor Dele. Imaginemos o que isto significava para este homem. Era como se matasse o que havia de maior desejo em si, a própria paternidade. Eis a prova: manter-se leal ao próprio ideal de vida, ou leal a Deus que acreditava como Criador e Único.
É muito importante avaliarmos isto. Não podemos simplesmente fingir não vermos aqui um ato de “crueldade” ou até mesmo de “insensatez” divina. É preciso entender: o que cabia a Abrão era renunciar à sua paternidade em prol de ser leal à paternidade divina. Fosse a sua “paternidade” humana superior à divina e ele se recusaria a fazer a vontade de Deus. Não seria, assim, o seu servo, mas o líder de uma rebelião humana contra Deus.
Como se sabe, Deus não quis o holocausto, e reconheceu em Abraão o homem que, em sendo homem, ainda que não sendo filho conseguia colocar a lealdade de servo acima de tudo, e dele fez o pai de muitos. E ele realizou-se como individualidade, sendo o pai humano de muitos. Mas antes de tudo, mesmo não apercebendo-se num primeiro instante, sendo filho daquele que é o único pai.
Sim, Deus é o único Pai. Todos nós somos apenas filhos. A paternidade humana é efêmera e dada por empréstimo, enquanto a divina é eterna e gerada na origem dos tempos.
É assim, como pais, que nós, maçons, devemos ter a noção de nosso dever em servir ao Pai, pois quando cumprimos esta função estamos cuidando dos filhos que não são nossos. Fazemos o papel de representantes do Pai, e este não nos pede o sacrifício de nossos filhos, mas sim que saibamos que somos apenas filhos a ajudar o Grande Pai na evolução daqueles que momentaneamente fazem o papel de nossos filhos, e que também serão os pais de amanhã.