TEORIA
Em busca das nascentes do capitalismo
Seria o sistema sob o quel vivemos uma consequência natural da propensão do ser humano a dividir trabalho e trocar? Para fugir deste conto de fadas, Alain Bihr sai em busca das origens do capital — e o identifica como algo que tem início e fim, como toda criação humana...
TEORIA
Em busca das nascentes do capitalismo
Seria o sistema sob o qual vivemos uma consequência natural da propensão do ser humano a dividir trabalho e trocar? Para fugir deste conto de fadas, Alain Bihr sai em busca das origens do capital — e o identifica como algo que tem início e fim, como toda criação humana.
Quando, onde, como e por que apareceu o capitalismo? Essas perguntas têm suscitado muita polêmica há mais de dois séculos. As razões incluem a dificuldade do problema, a diversidade dos pontos de vista e os ângulos de ataque. Quando se trata de questões sobre as origens, por definição sempre obscuras, as respostas renovam-se permanentemente, conforme a descoberta de novos materiais historiográficos e a criação de novas hipóteses. Mas tais divergências têm também a ver com maneiras específica e diferentes de colocar a questão.
A primeira explicação geral das origens do capitalismo é a que foi formulada durante a constituição do pensamento econômico clássico, a partir da segunda metade do século 18. É também a mais conhecida e continua a inspirar a maior parte das abordagens da história do capital e do capitalismo. Devido às suas origens, continua a ser marcada por pressupostos do pensamento liberal.
Sua principal característica é a atenção privilegiada ou mesmo exclusiva que dá ao mercado. Sob a perspectiva dessa tese, a formação do capital como relação de produção e o desenvolvimento do capitalismo como modo de produção reduzem-se essencialmente à extensão e à consolidação da esfera das relações comerciais. Ela examina, com cuidado, o aparecimento e o desenvolvimento dessas relações, as condições que as favoreceram, mas também os empecilhos que as obstruíram, as sinergias — ou, ao contrário, os conflitos — entre o desenvolvimento do comércio distante e as estruturas políticas que estão no coração desses processos, as formas comerciais do capital que se desenvolveram graças a eles etc. Os obstáculos encontrados, que freqüentemente travaram ou bloquearam os avanços, não são necessariamente ignorados ou negligenciados. Mas a idéia que surge do conjunto de estudos inspirados pelo paradigma liberal é a de que o capital e o capitalismo resultam da dinâmica irrepreensível das relações comerciais, vistas como a forma normal, ou de excelência, da relação social.
Capital: para Adam Smith, inclinação humana...
Uma das primeiras expressões sobre o tema encontra-se na obra de Adam Smith – "Estudo sobre a natureza e as causas da riqueza das nações" (1776) –, que fundou a economia política clássica [1]. Nas primeiras páginas, o autor aponta a existência, no ser humano, de uma "inclinação que o leva à comercializar, fazer escambos e trocas de uma coisa por outra", inclinação especificamente humana de que não se encontra vestígio em nenhuma espécie animal. Inclinação na qual Adam Smith vê o fundamento na mútua dependência dos homens que vivem em sociedade: a troca está diretamente ligada à vontade de satisfazer as exigências desta última: "(...) o homem tem quase continuamente necessidade da ajuda de seus semelhantes, e seria ilusório esperá-la apenas por sua benemerência. Será bem mais seguro obtê-lo se dirigindo-se ao interesse destes semelhantes, persuadindo-os de que, em nome de seus própriso interesses, devem fazer o que ele deseja deles. É o que faz aquele que propõe a outro uma compra qualquer. O sentido da proposta é: dê-me aquilo de que tenho necessidade, e você terá de mim o que necessita."
Dessa inclinação à troca resulta, de acordo com Adam Smith, a tendência ao desenvolvimento da divisão do trabalho, cada um tendo interesse em se especializar pelo tipo de atividade para o qual a natureza, a tradição ou a experiência pessoal o torna mais apto. "Assim, a certeza de poder trocar o produto do seu trabalho que excede o próprio consumo pelo produto do trabalho de outros que lhe seja necessário, incentiva cada homem a se devotar a uma ocupação específica e a cultivar e aperfeiçoar tudo o que ele pode ter de talento e inteligência para essa espécie de trabalho."
Para Adam Smith, a troca comercial e a divisão do trabalho que ela implica, como condição e resultado ao mesmo tempo, são consideradas como um estado natural (em todos os sentidos do termo) da sociedade, com base na suposição de que esta é apenas a reunião de uma multidão de indivíduos meramente egoístas. Ou seja, ao mesmo tempo exclusivamente autônomos (visto que proprietários privados do produto do seu trabalho e dos seus meios de produção) e dirigidos apenas pelo raciocínio do interesse pessoal na sua mútua dependência.
Em se tratando de um mito, no sentido de um relato fabuloso, que deveria a explicar as origens e fundamentos do mundo em geral e das instituições humanas em particular, nota-se com facilidade, de início, o caráter propriamente tautológico da explicação fornecida. Adam Smith pressupõe como estado natural da sociedade o que deveria explicar a gênese e o processo de desenvolvimento — ou seja, uma estrutura sócio-econômica caracterizada por um conjunto de produtores privados unidos simplesmente por um sistema de relações comerciais. Observa-se que se isso fosse natural da sociedade, o capitalismo teria nascido quase imediatamente no fim da pré-história humana.
A teoria "esquece", mas que para trocar é preciso produzir
Deixarei de lado, aqui, o alcance e o significado ideológicos (apologéticos) globais de tal abordagem, que leva a conceber o capitalismo como o fim da história humana, como o estado ideal do desenvolvimento social, em que se desenvolveria plenamente a quintessência comercial da relação social. Pretendo me concentara apenas sobre dois limites essenciais desse paradigma, apenas do ponto de vista da inteligência da evolução histórica.
Em primeiro lugar, ao focalizar principalmente ou exclusivamente o processo de circulação comercial, essa abordagem liberal negligencia ou oculta totalmente as relações de produção, entendidas aqui no seu sentido mais estrito: como o conjunto dos procedimentos, normas, instituições que condicionam a unidade dos produtores e dos seus meios de produção, sem o qual nenhuma produção pode acontecer. Ora, antes de poder pôr em circulação produtos do trabalho, de qualquer natureza que sejam, antes de poder transformá-los em mercadorias, é necessário produzi-los. E as condições que dirigem essa produção comandam o destino dos produtos do trabalho. Particularmente, a possibilidade ou não de esses produtos tornarem-se mercadorias. Por não levarem em conta as relações de produção, os estudos inspirados por esse paradigma liberal sofrem ou fracassam, na maioria das vezes, para explicar as razões pelas quais, longe de surgir espontaneamente, as relações comerciais podem se desenvolver em certas condições e circunstâncias — enquanto outras lhes são desfavoráveis. Por exemplo: por que o imenso império chinês resistiu a elas durante milênios, enquanto conheceram uma expansão notável ao longo da Antiguidade mediterrânea.
Em segundo lugar, esses mesmos estudos não compreendem a natureza da verdadeira revolução que se produz nas relações de produção com a formação do capital e o desenvolvimento consecutivo do capitalismo. Porque o caráter do capitalismo não é o produto do trabalho aqui compreendido geralmente como forma de mercadoria. "A riqueza das sociedades nas quais reina o modo capitalista de produção anuncia-se como ’imensa acumulação de mercadorias’", como constata Marx na abertura do Capital [2], primeiro e essencialmente porque as condições tanto subjetivas (as forças de trabalho) como objetivas (os meios de produção) do trabalho tornaram-se mercadorias. O que pressupõe, como Marx mostra longamente, a expropriação dos produtores e sua redução ao estatuto de "trabalhadores livres", que não têm outra escolha além de colocar à venda a única coisa da qual são ainda proprietários, a sua força de trabalho. Em outros termos, está nas relações de produção o segredo da formidável expansão da esfera da circulação comercial que caracteriza o capitalismo, e do qual este se orgulha: a segunda é apenas a aparência sob a qual se manifestam os primeiros.
Na verdade, não existe nenhuma dinâmica trans-histórica de crescimento e desenvolvimento das relações comerciais. Por toda parte e sempre, a esfera da circulação comercial e monetária, partindo da constituição do capital a qual pode ter gerado, continua a ser subordinada às relações de produção stricto sensu. As regras e instituições que governam as relações dos produtores aos seus meios de produção, as relações dos produtores e dos não produtores entre si (a divisão social do trabalho) — enfim, as relações dos produtores e dos não produtores ao produto do trabalho. São essas relações de produção que determinam tanto as possibilidades quanto os limites do desenvolvimento da circulação comercial e monetária — por conseguinte, a formação e a acumulação eventuais do capital comercial. Assim como são as relações de produção que determinam a forma, a intensidade e os resultados dos inevitáveis efeitos de dissolução que, por retroação, o desenvolvimento da economia comercial e monetária, e particularmente do capital comercial, provoca sobre eles. Em uma palavra, se o desenvolvimento da economia e do capital conta, inegavelmente entre os operadores da formação da relação capitalista de produção, é na estrutura e na dinâmica das relações pré-capitalistas de produção que é necessário procurar as razões do fato que sua ação pôde ou não conduzir a tal resultado.
E, sob esse ângulo, as diferentes relações de produção surgidas durante a transição da pré-história à história ou ao curso desta última não são certamente equivalentes. As que estruturam as sociedades "asiáticas" oferecem pouco ao desenvolvimento das relações comerciais e ainda menos à ação dissolvente do capital comercial. As que caracterizam o mundo antigo mediterrânico fornecem a eles, ao contrário, um quadro e uma base extremamente favoráveis. E se mostram igualmente muito permeáveis à sua ação dissolvente: esta contribui principalmente para a concentração da propriedade fundiária e à expropriação de uma parte importante dos produtores agrícolas. Mas longe de conduzir à formação da relação capitalista de produção, o conjunto do processo conduz apenas à extensão da escravidão e à constituição de uma plebe mantida para fins clientelistas, devido principalmente à dependência econômica e à tutela política na qual a propriedade fundiária continuou a ter o capital comercial.
Uma gênese muito mais complexa do capitalismo
São definitivamente relações feudais de produção, como se constituem lentamente na Europa Ocidental no curso da Alta Idade Média para se cristalizar nos séculos 9 e 10, pela fusão entre as estruturas herdadas do Baixo Império Romano e as da "comuna germânica", importadas pelos invasores que vão servir de estufa ao amadurecimento de várias das condições primordiais de formação do capital. Dessas relações feudais, sublinhei as originalidades fortes que as constituem: a possessão ou mesmo a propriedade deixada aos servos de uma parte dos seus meios de produção, de seu tempo de trabalho e do produto do seu trabalho; a emancipação das cidades da estrutura político-ideológica da propriedade fundiária, que podem, portanto, se dedicar unicamente ao desenvolvimento da economia e do capital; o parcelamento do poder político o enfraquece globalmente e proíbe a reconstituição de qualquer estrutura imperial.
A sinergia entre esses diferentes fatores, própria das relações feudais de produção, resultará, em primeiro lugar, no desenvolvimento do comércio: do comércio remoto, primeiramente entre centros urbanos, a mais lucrativa das formas de comércio e a única originalmente aberta à ação do capital comercial; do comércio próximo, em seguida: entre os centros urbanos e suas cercanias, por meio do desenvolvimento de um artesanato comercial conexo do desenvolvimento do capital comercial, mas também e sobretudo pela integração crescente da produção agrícola e dos produtores agrícolas (servos, comerciantes livres, proprietários), que conduzem rapidamente a diferenciações sociais crescentes entre si, fazendo nascer uma camada de ricos trabalhadores ao lado de operários empobrecidos e já expropriados.
As relações feudais de produção contribuíram diretamente para acumulação da riqueza monetária nas mãos dos mercadores, dos agiotas e dos banqueiros, bem como sua concentração principalmente sob a forma de companhias comerciais em sucursais múltiplas, combinando as práticas do negócio, do banco e do seguro. Estava criada a primeira condição essencial para formação das relações capitalistas de produção.
Tradução: Marcelo de Valécio
marlivre@gmail.com
[1] Adam Smith, A riqueza das nações, Martins Fontes, São Paulo, 2003. As citações do texto foram extraídas da edição francesa: La richesse des nations, Flamarion, Paris, 2001
[2] Le Capital, Editions Sociales, Paris, 1948, tomo I, página 51.
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