Havia "socialismo democrático" na Bolívia de Evo Morales?

O filósofo esloveno Slavoj Žižek publicou um texto pertinente sobre o golpe que depôs o presidente boliviano Evo Morales (confira neste link: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/bolivia-a-anatomia-de-um-golpe-por-slavoj-zizek/). Ele levanta pontos interessantes, mas a finalidade deste artigo que vos escrevo é o último trecho "socialismo democrático é possível", que veio logo após ele dizer que a "esquerda radical esteve na Bolívia e o país não 'virou uma Cuba ou uma Venezuela”.

Claramente, o termo "socialismo democrático" conota oposição ao autoritarismo esquerdista vigente em Cuba e na Venezuela. Mas ainda está vago, impreciso. Cuba e Venezuela não têm os mesmos sistemas político-econômicos. Em Cuba, houve ruptura com a hegemonia liberal, tanto politicamente, quanto economicamente. Na Venezuela, não. O chavismo degradou as instituições liberais, mas não rompeu com elas mediante revolução. A constituição bolivariana, por exemplo, permite propriedade privada.

O que configuraria como "socialismo democrático"? Da forma que ele usou, podemos definir como "a esquerda radical, eleita democraticamente, governando sem usar das medidas econômicas ortodoxas do neoliberalismo"? A primeira característica concreta desta "definição" é o rompimento com políticas econômicas neoliberais: quando ao chegou ao poder, Evo Morales encerrou duas décadas de aplicações econômicas sugeridas pelo Consenso de Washington e nacionalizou empresas importantes, aumentando a participação do Estado na economia.

Romper com políticas econômicas neoliberais implica em socialismo? Aqui no Brasil, o governo Dilma I abandonou o liberal tripé macroeconômico e passou a adotar a Nova Matriz Macroeconômica (o principal aspecto é a forte intervenção governamental), que trouxe resultados ruins. O PT não se tornou e nem é "socialista democrático" por causa disto (há aloprados da direita que acreditam que qualquer intervenção é socialista).

O sistema capitalista ainda existe na Bolívia, como existe aqui no Brasil. Evo melhorou os indicadores socioeconômicos do país, mas sem abalar as estruturas do capitalismo. Seu sucesso é mediante modelo semelhante adotado por outros governos populistas de esquerda na America Latina: basicamente foram os recursos oriundos do crescimento econômico e da melhora na arrecadação que permitiram a criação de políticas sociais, valorização do salário mínimo e estímulos no setor produtivo sem comprometer as contas públicas.

Mas "socialismo democrático" implica em substituição do sistema capitalista? George Orwell chamava a si mesmo de "socialista democrático", em oposição à tirania do socialismo real (stalinismo). O que sugere que o "socialismo democrático" é um sistema econômico em que os meios de produção são socializados ou democratizados e não há um governo autoritário ou totalitário no comando. Mas este termo sempre soou como utópico, afinal nunca houve propostas concretas.

Falamos da economia, vamos ao tema "autoritarismo". De fato, embora tenha cedido a tentações caudilhistas, o governo Evo Morales foi assaz inclusivo e democrático, ampliando bastante os direitos dos indígenas. Durante o governo dele, o Estado assumiu uma nova caraterística, que o economista Douglas Campanini, em sua tese de doutorado¹, chama de "Estado plurinacional".

"A partir dos anos 2000, o estado das artes da sociedade boliviana seria o resultado de longa duração de uma mudança qualitativa na relação entre Estado e sociedade civil", diz o economista, "na qual as novas forças sociais expressas pela autodeterminação das massas indígenas desempenharia um papel de liderança no avanço dos processos de democratização e nacionalização, dando especificidades à Bolívia dentro do quadro mais geral da periferia latino-americana".

O fato é que o nome "socialismo" esteve e ainda está associado a ditadura, violação de direitos humanos e autoritarismo. O partido de Morales chama-se "Movimento para o Socialismo"; antes de chegar ao poder, houve quem temesse que a Bolívia poderia se tornar uma nova Cuba (na época a Venezuela não tinha os problemas que tem hoje). Mas o pragmatismo do presidente hoje golpeado surpreendeu e ele promoveu maior democratização e inclusão socioeconômica. O entusiasmo de Žižek com o "socialismo democrático" provém deste detalhe. Mas atentem ao termo "pragmatismo". Talvez o "Movimento para o Socialismo" não seja tão "radical" como se supõe. O que indica não haver nele um desejo revolucionário de romper com a estrutura do Estado liberal ou do sistema capitalista.

O que eu concluo é que a imprecisão da expressão "socialismo democrático" abre brecha para que ela seja usada quando convém. Todavia, se atentarmos à palavra "democrático", notaremos que ela remete ao conceito de democracia liberal. O "socialismo democrático" seria, então, um conjunto de políticas econômicas supostamente socialistas, mas que não alteram ou visam alterar a democracia formal fundada no liberalismo? E se considerarmos o pressuposto "socialismo é um sistema econômico que existe como alternativa ao capitalismo", seria ele compatível com a estrutura liberal do Estado e do sistema político?

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¹ A tese chama-se "O DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO NA BOLÍVIA: DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO ESTADO APARENTE AO ESTADO PLURINACIONAL" (leia aqui: http://www.ie.ufrj.br/images/pos-graducao/pepi/dissertacoes/doutorado/2018/douglas_campanini_maciel_db147.pdf)