Cidadão nova-iorquino "curtindo o 'sonho americano'" em pleno Central Park.
16 de novembro de 2024
O republicano superou Kamala Harris e vai comandar os EUA pelos próximos 4 anos mais uma vez (Foto: Elijah Nouvelage/AFP)
O precipício americano
O retorno de Trump à Casa Branca ameaça acelerar a crise ambiental global
16 de novembro de 2024
O republicano superou Kamala Harris e vai comandar os EUA pelos próximos 4 anos mais uma vez (Foto: Elijah Nouvelage/AFP)
O precipício americano
O retorno de Trump à Casa Branca ameaça acelerar a crise ambiental global, desmontando políticas e freios institucionais essenciais
por Carlos Bocuhy
Donald Trump venceu as eleições americanas, em que pese não ter nenhuma conexão com a essência da história da fundação da América. A história mostra que os revolucionários americanos, ao se libertarem do jugo inglês, temiam conceder poder excessivo ao Executivo — um risco que, em suas mentes, poderia ser personificado por figuras com o perfil de Trump.
George Washington, com sua integridade e compromisso com os ideais democráticos, foi peça-chave para a aprovação, em 1787, de uma Constituição que conferiu amplos poderes ao cargo presidencial.
Trump, por outro lado, encarna exatamente os receios que Washington nutria sobre a ascensão de um demagogo disposto a explorar brechas constitucionais com populismo, sectarismo e o espírito vingativo da política partidária. A isso, somam-se os malfeitos de sua gestão anterior: o desmonte da Environmental Protection Agency (EPA), a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris, ataques aos direitos humanos de imigrantes e repetidas afrontas aos pilares da democracia.
Ao priorizar o gigantesco lobby de petróleo e gás e abrandar normativas ambientais, Trump provocou anos de atraso às metas do Acordo de Paris. Isso deve se repetir – só que agora em momento mais grave, à beira do precipício criado pela emergência climática.
Também se deve temer o possível agravamento da desinformação que grassa sobre a população americana, demonstrada pelas recentes fake news de que os furacões eram armas climáticas pilotados pelos meteorologistas e direcionadas aos Estados com maioria republicana.
O meteorologista Matthew Cappucci, de Washington, DC, afirmou: "Aparentemente, da noite para o dia, ideias que antes seriam ridicularizadas como pontos de vista marginais e estranhos estão de repente se tornando mainstream, e isso está tornando meu trabalho muito mais difícil".
Lidar com as mudanças climáticas e sua potencialização dos eventos extremos exige preparação da sociedade, com processo educativo basilar e estratégias claras de comunicação. Certamente isso não será a prioridade no governo Trump.
De outro lado, o empuxo proporcionado à indústria de petróleo norte-americana se somará aos planos de extração globais. O banco de dados mais abrangente de empresas do setor de petróleo e gás, recentemente publicado, apresenta os dados de 2024 do Global Oil & Gas Exit List (GOGEL):
São 1.769 empresas, responsáveis por 95% da produção global de petróleo e gás.
Em 2023, a produção de petróleo e gás atingiu um recorde histórico: 55,5 bilhões de barris de óleo equivalente (bboe).
A produção global de hidrocarbonetos ultrapassou o recorde histórico pré-Covid.
As empresas de petróleo estão gastando uma média de US$ 61,1 bilhões em exploração anualmente. Os dados mostram que 578 empresas pretendem explorar 239,3 bilhões de barris de petróleo equivalente (bboe) de novos recursos nos próximos 1 a 7 anos.
Alguns dos campos atualmente em desenvolvimento, como o projeto Willow, de 600 milhões de barris da ConocoPhillips no Alasca, podem continuar a produção além de 2100.
As sete empresas com os maiores planos de expansão de curto prazo são a Saudi Aramco (19,6 bboe), a QatarEnergy (17,8 bboe), a ADNOC (9,5 bboe), a ExxonMobil e a Gazprom (9,4 bboe cada), e a TotalEnergies e a Petrobras (8,0 bboe cada).
Quase dois terços dos planos de expansão de curto prazo da indústria ultrapassam o cenário da Agência Internacional de Energia para emissões líquidas zero até 2050.
A Saudi Aramco tem o maior excesso com 11,6 bboe, seguida pela ADNOC (8,4 bboe), QatarEnergy (7,8 bboe), ExxonMobil (6,6 bboe), NIOC (5,2 bboe), Petrobras (4,7 bboe), TotalEnergies (4,5 bboe) e Shell (4,4 bboe).
Em uma conferência de energia em Houston, em março último, o CEO da Saudi Aramco, Amin Nasser, disse: “Devemos abandonar a fantasia de eliminar gradualmente o petróleo e o gás”. (Home | gogel e Luiz Marques – Unicamp)
Vale registrar o papel das conferências climáticas neste processo, que seguem sediadas em petro-Estados. Enquanto todo este imenso teatro biliardário poluidor segue seu curso, a COP28, em Dubai, estabeleceu o compromisso de mobilizar (ridículos) US$ 702 milhões por ano para o "Fundo de Perdas e Danos" aos países mais pobres.
De outro lado, a situação climática global está à beira do precipício. O climatologista Carlos Nobre considera insuficientes as propostas dos países na COP29, que está sendo realizada em Baku, no Azerbaijão. “Nós já estamos há 16 meses com a temperatura elevada em 1,5 grau. Existe enorme risco de ela não baixar mais. A partir de agora, se ficar três anos com 1,5 grau, a temperatura não baixa mais”.
A meta de 1,5 ºC está descartada: “Se a gente seguir com essa prática, reduzir em 43% as emissões agora até 2030 e zerar as emissões líquidas, só em 2050 poderemos chegar até 2,5 graus”, diz Nobre. Para Paulo Artaxo, da USP, “a meta de 1,5 ºC caducou e só existe na cabeça dos diplomatas”, afirma.
A prática de greenwashing e medidas evasivas do setor de petróleo devem marcar os resultados da COP29. Já no primeiro dia foi proposto pelo anfitrião, o petro-Estado Azerbaijão, regramento superficial e sem detalhamento suficiente para o mercado de créditos de carbono, sob a grita dos especialistas. O temor poderá representar a porta de indulgências para os poluidores: o sonho das petroleiras, a baixo custo, para continuarem a envenenar a atmosfera. Uma espécie de barganha faustiana, que ao final leva, inexoravelmente, à danação.
Nesse momento, o multilateralismo global continua a sofrer forte baixa, em cenário já preocupante para a paz, com mais de 120 conflitos localizados. Está cada vez mais difícil conseguir que os diferentes países se sentem à mesa de negociações climáticas despojados de seus interesses domésticos armamentistas, de manutenção de matrizes fósseis e sua economia recheada de carbono, o que dificulta o foco e a resolução de problemas de interesse comum e humanitário.
Um dos piores problemas é a urgência que se exige dos acordos multilaterais diante da constatação da ultrapassagem do limite seguro de 1,5 ºC estabelecido no Acordo de Paris.
O tempo essencial para agir, nessa metade de década, será praticamente perdido durante a gestão Trump. Também será prejudicado a concretização do acordo climático de perdas e danos, com aportes reais, o que caminha a passos de tartaruga há duas décadas, além dos acordos internacionais para determinar as reduções de emissões nacionalmente pretendidas (INDC), que se apresentam insuficientes para fazer frente ao desastre iminente pontuado pela ciência.
Certamente regramentos econômicos-ambientais mais proativos para a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apresentarão atrasos, sem dispositivos que estimulem a descarbonização de commodities, como o que está sendo efetivado pelo Pacto Verde da Comunidade Européia.
Diante de um novo governo Trump, o mundo precisará como nunca dos freios institucionais internos dos Estados Unidos. Contrapoderes como a ciência, o Judiciário, a autonomia de estados progressistas com regramentos ambientais mais rigorosos e a capacidade de mobilização social serão cruciais para conter a lógica do crescimento a qualquer custo. No âmbito supranacional, seria de todo desejável a atuação muito mais expressiva das Nações Unidas.
Enviado por CartaCapital
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