O vale de lama
Vivemos em um país pérfido. Nesse local ermo, esquecido e incivilizado, uma mineradora bilhonária constrói represas de contenção de dejetos ameaçadoramente acima de um povoado. Seus bilhões são suficientes para comprar fiscais, políticos e juízes. Todos esses lhes custam migalhas.
As represas são gigantescas, uma acima da outra.
Então elas se rompem, matam alguns pobres diabos nativos considerados semi-humanos com os quais ninguém se preocupa e envenenam um rio imenso que nunca mais será o mesmo. Mata o rio e envenena os mananciais de água das populações a jusante.
A tragédia decorre do fato de que os nativos não têm importância, são um povinho, ou algo assim, não são gente.
Mas esses somos nós, os brasileiros, essa a nossa grande tragédia, somos reles; vemos a nós mesmos desse modo, e os chamamos “eles”, quando “eles” somos nós, os brasileiros. E são verdadeiramente reles os que se deixam comprar, não os que sobrevivem heroica e pobremente sob a ameaça de represas, ou de outras tantas vicissitudes causadas pelo descaso, pelo desrespeito à população.
O desastre teria passado em branco se consistisse apenas em umas dezenas de mortes e destruição de residências de semi-humanos, como os vemos. Repercutiu internacionalmente a destruição ecológica. Têm mais importância as consequências indiretas às pessoas lá do mundo que as diretas, às sub-pessoas que somos nós. E assim o somos porque assim nos assumimos quando nos chamando de eles.
Por não importarmos nem a nós mesmos, permitimos que fiscais, políticos e juízes chafurdassem no lamaçal metafórico, enlameando irresponsavelmente a população que nada importa aos nossos próprios olhos, permitindo que a lama metafórica se consubstanciasse na lama nojenta que agora se esparrama pelo rio até o oceano distante.
A nojeira que inunda o Vale do Rio Doce é consequência de mero descaso.