Dilúvio

Sobradinho: o último pileque! * 10/2011 *

Sá & Guarqbira * http://www.youtube.com/watch?v=WUi38wsiAdQ

Após oito horas de viagem noturna, num confortável ônibus que partiu do Sopé do Alto do Bonfim, amanheci no coração destampado do sertão brasileiro. Era Sobradinho.

A viagem se destinou a levar, no dia 7 de outubro de 2011, a comitiva de velejadores de Salvador pra participar da Copa de Vela de Sobradinho. Eu fui apenas como observador.

Lá conheci duas personalidades da vida ribeirinha. Seu Tertuliano e Seu Gumercindo, ambos octogenários. Logo em seguida eu estava sendo apresentado ao Senhor Prefeito. Era sábado...

Encerradas as atividades náuticas voltamos para o centro urbano da localidade à espera do dia seguinte, quando aconteceria a segunda rodada das regatas.

Muitas coisas já haviam me incomodado ao despertar na manhã do domingo. Mas fomos pra guerra...

De volta ao lago notícias circulavam dando conta de que a lancha vermelha que havia dado suporte à competição no dia anterior teria abandonado a raia por conta do não cumprimento de acordos envolvendo diárias e abastecimento. Já a canoa azul e branco que abrigava a comissão de regata ficou à espera do precioso líquido derivado do petróleo.

As boias sinalizadoras do percurso correram e a raia ficou ao Deus dará.

Para combater a ansiedade tomei um 1 mg. de Rivotril. Sendo o evento um palanque cercado de cachaça por todos os lados, comecei o inofensivo bebericar de latinhas.

Sem encontrar nada que pudesse consultar os interesses do meu paladar naquele escaldante calor permaneci em jejum e comecei o ofensivo perder o limite de parar.

A mistura de Rivotril e álcool me provocou uma sensação indescritível, mas a essa altura eu já havia perdido o controle do tolerável. Infelizmente...

Fui contaminado pela conversa com Seu Gumercindo, que se reportava à inundação das cinco cidades: Casa Nova, Pilão Arcado, Remanso, Santo Sé e Sobradinho, como um fato desastroso para aquela região.

A angústia no peito daquele ancião somada aos seus olhos marejados de água me invadiram como se eu estivesse submerso junto com aquelas cidades.

Daí em diante o Rivotrálcool agiu. Ninguém melhor pra relatar os fatos do que a platéia lá presente.

Melhor destino do que o do velejador alemão Stefan Ramin, comido pelos nativos da Polinésia Francesa: http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2011/10/17/alemao-desaparecido-pode-ter-sido-vitima-de-canibalismo-na-polinesia-francesa.htm

A mim resta agradecer aos braços amigos que se estenderam em meu socorro, e aos tolerantes corações que relevaram o fato como sendo algo apenas normal. Cachaça é cachaça...

É conveniente lembrar que naquele mesmo momento acontecia em muitas cidades do Brasil a “marcha contra a corrupção”.

Lá eu protocolei o meu apelo ao vivo, rogando ao prefeito que ficasse, a qualquer custo, livre dessa praga.

A Copa de Vela nada acrescentou à população daquele município, haja vista não se haver criado ali um pólo para o desenvolvimento do aprendizado náutico e da profissionalização da clientela sob a guarda estatal, na condição de alunos do sistema público de ensino. É só circo, já que o pão faltou até para os velejadores.

Por observação do Senhor Gumercindo, ali deveria ser oferecida uma pequena amostra da culinária local, associada ao pujante poder produtor de frutos como região irrigada que é o Vale do são Francisco (visão do nativo) como podem constatar duas outras pessoas que junto a mim ouviram todo o raciocínio de Seu Gumercindo. Questão de sensibilidade...

Em relação aos que de Salvador foram participar do evento de vela, gostaria de acrescentar que convidado tem livre acesso ao evento. O rateio de R$ 2,00 (dois reais) na porta do show, à noite, é qualquer coisa de absurdo. Fardou-se a delegação com camisetas como sendo o ingresso à arena e lá a conversa foi outra.

Convidados usam crachás, frequentam camarotes, dão vida aos holofotes, bebem e comem por conta do dono da festa.

Quem vive de lagoa é pato. Em relação à premiação, sou a favor de prêmios em dinheiro. Atletas precisam de patrocínio, de dinheiro. Afinal, que oportunidade um garoto como Ruan, exímio velejador, terá para manter o seu equipamento?

Luvas, coletes, sapatilhas, neoprenes etc. são coisas pra quem pode... Pelo menos o colete salva-vidas deveria ter ser exigido como item de segurança número um.

Garanto que a Axé Wind trouxe o $eu na conta bancária. É justo, mas não socializa o benefício.

Dos hobie cats que lá estiveram dois precisaram de peças na última hora, ainda em Salvador. Essas peças tiveram que sair, novas, do meu modesto estoque de reposição para que os barcos pudessem estar navegando naqueles dois ensolarados dias.

Certa vez li num desses livros sagrados: “E a vela vos libertará”. Arranjei um barco à vela.

Apesar de todos os pesares fui convidado a voltar. Qualquer hora dessas irei a Sobradinho pra reparar quaisquer danos que possa ter causado.

Profissional na área de propaganda como redator posso, junto ao meu parceiro, um sensível nativo da Ilha de Páscoa, contribuir com uma bela programação visual e conceitos de comunicação para alocação de recursos visando promover eventos capazes de levar desenvolvimento para a região.

http://www.aaronpuschel.com/#_

De volta ao Sopé do Alto do Bonfim na madrugada da segunda-feira parti para o refúgio eterno onde passei o dia enfiado: a cama. Só no final da tarde encontrei forças para escrever para o meu filho, meio baiano - fruto de tórrido amor vivido com uma grapiúna de rara beleza - mensagem pela passagem do dia do seu aniversário:

Pedro. Vida é mesmo assim: diferenças, buscas, medos, dúvidas e vontades.

Ter fé, perseverança e coragem para chegarmos mais perto do que sonhamos são bons aliados nesse caminho.

Aproveite as suas chances como sendo cada uma delas a última que você terá. Reflita muito ao completar o seu ¼ de século e seja muito feliz na construção do seu futuro. Saúde & Sucesso, Pai. E voltei pra cama...

http://noticias.r7.com/videos/escolinha-de-goleiros-e-sucesso-no-brasil/idmedia/e23fccf25f195005c30719df0b346636.html

A terça-feira amanheceu com vagas altíssimas e desgovernadas. O dilúvio estava instalado no meu universo. À tardinha saí rapidamente e voltei pra cama para aplacar os enjoos que as recordações provocavam.

A quarta foi 12 de outubro, dia da criança. Lamentei profundamente haver envelhecido sem perder a inocência.

Entre fortes rajadas, inundações e completa devastação do que restava me dediquei a amansar os animais que me habitam.

Na madrugada da quinta-feira relâmpagos, raios e trovões nascidos do negro céu que pairava sobre meus sonhos me despertaram para oficializar a decisão convicta do comando dos meus sentimentos e das minhas emoções: não quero mais viver...

Imediatamente a parte boa da maçã contornou o quase intransponível obstáculo e me ordenou que imediatamente encontrasse caminhos que pudessem me levar a portos mais seguros.

Dali em diante passei a desembaraçar os delicados e milagrosos fios que me unem ao Divino Criador, fios esses responsáveis por dar movimento à complexa e mágica máquina chamada ser humano, e por que não dizer à vida.

Como não sou completamente irracional creio ser também contemplado pelos milagrosos fios que regem o meu destino...

Gênesis 9.20-1 – “E ele bebeu do vinho e ficou bêbado. Depois ficou nu”. Noé sobreviveu ao Dilúvio. Certamente sobreviverei à inundação de Sobradinho.

Espero ter contribuído para que a preservação da espécie tenha garantia de dignidade e cidadania.

Muito obrigado - julho/2005 - rocasimas

https://www.facebook.com/ronaldcabralsimas

Ronald Cabral Simas
Enviado por Ronald Cabral Simas em 22/11/2014
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