O FELINO SAGRADO – FÁBULA

O FELINO SAGRADO

FÁBULA

Numa savana (planície com cerrado) muito grande, numa terra bem distante, vivia a família do Leão Sagrado. O pai, Leão Sagrado, era muito perverso – malvado mesmo – e com sede de poder e de glória. Os filhos, que, aliás, foram muitos, eram lerdos e preguiçosos. Não trabalhavam nem um pouquinho e viviam deitados à sombra das árvores baixas perto de casa e dormiam. Dormiam tanto que até esqueciam, às vezes, que tinham fome. Esse negócio de trabalhar era com as fêmeas daquela espécie de felinos. Eram as leoas que caçavam e traziam para casa um naco de carne, para que cada um dos marmanjos pudesse encher a barriga. Mas elas não reclamavam. Cada dia pela manhã, mãe e filhas, faziam-se bem bonitas, vestindo seu charmoso uniforme de pelos claros, de tom amarelado; penteavam o cabelo curto com que a natureza as dotou e saíam planície afora para caçar. Eram caçadoras exímias e faziam sua caça sem armas de fogo. Usavam só as armas com que a natureza as dotou – as garras, os dentes, a força física e a inteligência nata, aqui traduzida em dom da caça. Achavam até divertido, porque, enquanto caçavam, sua diversão era correr pela savana atrás dos antílopes, gnus, impalas e gazelas. Quando conseguiam agarrar um desses bichos, matavam sem dó nem piedade e levavam para casa para servir de refeição para o resto de seu bando.

Mas o leão, sendo rei dos animais silvestres, achava que podia tudo. Sendo assim, abusava da sua força, da sua autoridade e da autoconfiança nos dotes que a natureza lhe deu. Nem animais ainda crianças e nem os animais idosos respeitava. Ensinara às caçadoras que tudo era comida. Não se importava em mandar matar fêmeas, às vezes até esperando bebezinhos, ou velhos, ou crianças que ainda não tinham aprendido a se proteger na fuga das garras das caçadoras. E elas, as caçadoras, cumpriam, à risca, tudo o que o Rei Leão Sagrado mandava, mesmo porque, quando matavam um bicho muito grande não teriam força suficiente para arrastá-lo. Contentavam-se em caçar os menores que eram mais leves para arrastar para casa e, quanto mais tenros, mais saborosos.

E assim a vida acontecia naquele reino. O menor sempre fugindo, mesmo sob protestos, muitas vezes veementes, dos que lhe eram maiores e mais fortes. Mas a vida é mesmo assim: o maior sempre engole o menor, também entre as pessoas!

Quando observamos uma sociedade humana, vemos que todos têm sua casa. A casa fica num determinado bairro e os bairros formam cidades. Na cidade moram os que trabalham em fábricas, no comércio, nos escritórios, nos hospitais e nos consultórios. Os homens e mulheres que trabalham na agricultura moram no interior. Não é assim? Onde existe uma grande aglomeração de bichos que sempre ocupam os mesmos lugares para morar, cada um no seu canto, para cada um está reservado o seu espaço. É como se a floresta e a pradaria, onde o homem não planta cereais e outros produtos que cultiva para a alimentação humana, fosse uma grande cidade – a cidade dos animais silvestres.

Assim como os homens, os bichos também formam sociedades. Cada espécie é dividida em famílias e essas famílias habitam determinada região que mais lhe convém para seus hábitos alimentares. O macaco, o tatu, o quati, a anta e a onça, moram no mato. O castor, a ariranha, o hipopótamo e a lontra dão-se bem em terra, mas, mais tempo estão na água que fora dela.

Porém, em cada região, nos seus respectivos continentes, conforme o clima frio, temperado ou quente, diversas espécies de animais habitam essa mesma região, por causa da alimentação que oferece e por causa da peculiaridade da vegetação existente, se é plano ou montanhoso, ou se é deserto ou pantanal.

Isso já acontecia desde o tempo do rei Leão Sagrado. Seu reino era na África, onde, até hoje, seus descendentes residem. Mas, a região das savanas da África, não era habitada somente pela família dele. Tinha uma imensa variedade de animais que gostavam daquela região. Na época das chuvas era abundante, naquelas planícies, um saboroso capim e outras ervas comestíveis e que alimentavam grande parte da fauna africana. As savanas, que, como escrevemos no início, é a região de terras planas, ou quase planas, em que crescem vários tipos de capim e outras pastagens, sendo encoberta, aqui e ali, por árvores de baixo porte, de galhos retorcidos, que nós, aqui no Brasil, chamamos cerrado. Várias espécies de animais escolheram para residir justamente os mesmos lugares. Esses bichos selvagens eram, em sua maioria, herbívoros, isto é, só comiam vegetais, de preferência capim.

Naquela cidade dos bichos, que vamos chamar Savana, havia animais de todos os tamanhos. Os grandes, alguns deles enormes, como o elefante, a girafa, o hipopótamo e o rinoceronte, eram todos comedores de vegetais. O elefante, muito guloso, come, até hoje, as folhas verdes dos galhos das árvores, enquanto a girafa, por causa das suas compridas pernas e seu alongado pescoço, consegue, literalmente, pastar na copa das árvores. Outros eram normais, também grandes, mas não descomunais como os primeiros. Nesse grupo, havia alguns que não comiam capim, só comiam carne. Entre estes últimos, o Leão Sagrado era o mais feroz, por isso era temido por todos e, ainda por isso, se auto-proclamara rei.

É sabido de todos que a própria natureza constrói o seu equilíbrio com os próprios elementos que a constituem. Para que isso aconteça, é necessário que haja água, comida e condições propícias (favoráveis) para seu bem-estar no ambiente que escolheram para viver. Por isso habitava aquela cidade das Savanas uma turma de famílias que eram parentes, uns dos veados (família dos cervídeos) e outros parentes dos antílopes (família dos bovídeos) .

Os animais menores, que corriam velozes e alegres brincando entre as macegas das planícies, ficavam sempre com um olho no capim e o outro vasculhando os arbustos ao seu redor com medo das caçadoras. Eram quase todos eles priminhos uns dos outros. Chamavam-se gazelas, impalas. Havia também os antílopes e os gnus. Estes – gnus – em muito maior número e mais nervosos. Para se visualizá-los, imaginar como são, poderia se comparar os primeiros três com os veados brasileiros, que vemos às vezes saltitar pelos campos e capoeiras quando a televisão mostra algum programa sobre o Pantanal ou sobre os Parques Nacionais de Preservação Ambiental. E, este último, parente do gado doméstico. Imaginem um boizinho de barbicha, um pouco menor que o boi, mas, imponente e cheio de razões; briguento mesmo.

Como não poderia ser diferente, as leoas escolhiam estes bichos menores para seu almoço e seu jantar. Era o prato predileto de toda a família. Muito mais saborosos esses bichos e, além disso, não eram tão pesados para a fragilidade feminina das leoas. E, de quebra, acontecia o tal de equilíbrio ecológico, que, quando se fala em ecologia, vê-se mencionado em toda parte. Assim como o capim que os animais herbívoros cortam para se alimentarem, cresce novamente em poucos dias, assim os animais se reproduzem em número suficiente para nunca faltar carne aos leões e outros bichos carnívoros, mas, para que, também, nunca se exterminem essas outras espécies.

Mas aconteceu que, os anos passando, o Leão Sagrado ficou velho. Seu corpo ficou lento e triste. Já não tinha a mesma arrogância e crueldade de quando era jovem. Precisava comer para se manter vivo, porém, ele não conseguia mais comer qualquer carne direito porque seus dentes estavam frouxos. Com as velhas pernas enfraquecidas, já não podia mais fazer as caminhadas costumeiras por seu belo reino. Mesmo que pudesse caminhar, não poderia ver-lhe os limites extensos, pois suas vistas também estavam enfraquecidas. Os mais novos já não o respeitavam e admiravam como antes. Alguns vassalos o adoravam, porque, afinal, ele continuava sendo o rei. Já não vivia em grupo como antigamente. Para resguardar sua dignidade de rei e mandatário único, retirara-se para um grupo de capoeiras, com algumas árvores baixas, que ficava a um canto do seu reino. Ali construíra seu palácio, passando a viver sozinho. Alguns conselheiros passavam por lá e lhe traziam papéis para assinar, mais por obrigação do que por gostar dele como o poderoso rei que fora um dia.

As leoas, quem sabe por caridade ou por respeito que ainda lhe devotavam, traziam-lhe um pedaço de carne para comer. Mas, muitas vezes, tinha que engolir pedaços enormes inteiros, pois os dentes já estavam fracos e doídos, não o deixando mastigar.

Enquanto ali dormitava, esperando o seu tempo, ruminava em seu cérebro, sua vida. Já nascera rei. Ao longo da sua vida nada construíra de edificante, a não ser a cobiça dos reis humanos, que o perseguiram em seus safáris. De resto, só destruíra. Matara, ou mandara matar, outros bichos para comer. Nunca se alimentara com ervas ou capins que a natureza lhe oferecia, muito menos com produtos que ele mesmo plantara e, menos ainda, com reservas estocadas. Fora sempre vaidoso e só comia carne fresca. Com seu orgulho de ser rei, pusera em pânico toda a bicharada que morava em seu reino. Certo é que alguns dos animais que residiam no seu reino não eram, nem nunca foram molestados por sua família, porque tinham funções específicas. Um desses animais era a hiena. Nem era amiga dos familiares do rei, ainda que lhes fosse grata porque sua alimentação provinha do abandono dos restos – ossadas, cabeças, as vezes miúdos e ossos com carne, que os filhos e sobrinhos do rei abandonavam no lugar mesmo onde comiam, quando saciados. Mas dona hiena bem que temia seus benfeitores. Já que ela era porca, só se alimentava de carnes já quase podres, esperava aqueles se retirarem para seus lugares preferidos para descasar e só então, saíam de seus esconderijos das capoeiras para pegar seu almoço. Arrastavam as partes deixadas pelos leões para seu canto ocupado na savana. Onde se homiziavam era um lugar bem longe dos leões. Bandos de abutres (uma espécie de urubu) ajudavam nesse serviço de limpeza. As hienas, que parecem inúteis por diversos aspectos, demonstraram sua utilidade, pois, além de se alimentarem e a seus filhotes, de quebra, ajudavam a conservar limpo o terreno recolhendo os detritos que os donos da casa ai abandonaram.

Em toda a extensão de suas terras, constituídas de vastas planícies cobertas de vegetação apropriada, viviam seres que não eram reis, nem tinham a pretenção de o serem. Eram animais muito maiores, alguns deles corpulentos, gordos, pesados mesmo, como o elefante, o hipopótamo, o rinoceronte e a girafa – esta última, delgada, graciosa, bem educada, de pescoço muito comprido e pernas longas, muito longas. Por uma razão ou outra, esses animais viviam em aparente harmonia com os leões. Devia de ser porque eles não comiam carne. Contentavam-se com capim e folhas dos arbustos que cobriam, em profusão, aquelas planícies. Entre eles e a família do rei nada havia em comum. Simplesmente ignoravam uns aos outros e, por isso, viviam felizes e não molestados.

Em tudo isso o Felino Sagrado (rei presumido de todos os animais selvagens), meditou profundamente, até que certo dia sentiu que suas forças – a vitalidade – o abandonavam dia a dia. E não parava de meditar. Já não era mais aquele rei que se achava o maior de todos os seres do reino animal. Sentindo chegar o seu fim, uma sensação de coerência apossou-se dele. E, fazendo uso desse restinho de bom senso que, para sua sorte, aflorou seu consciente no último alento da vida que ainda lhe sobrava, deu a esse rei consciência do que é um rei perante seus súditos e chegou à sábia conclusão de que o poder e a glória nada valem quando não se tem amigos fora do seu círculo familiar... e, quando não é amado nem por suas esposas e filhos. Com tristeza deu-se conta de que foi temido e nunca amado!!!

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 03/04/2011
Código do texto: T2886774
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