Resgate histórico da legislação brasileira sobre pessoas com deficiência

INTRODUÇÃO

O presente texto tem o objetivo de desdobrar a historicidade do conjunto de normas legislativas no Brasil a respeito das pessoas com deficiência. A construção da Constituição de 1988, atual Magna Carta em nosso país, apregoa a igualdade material livre de preconceitos de origem, cor, sexo, raça, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Especificamente no art. 5° há a menção expressa de que a pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante, que antecede o Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Assim, pretende-se demonstrar que a regulamentação jurídica hoje em vigor resultou de contextos históricos que envolveram a exclusão social deste grupo. Voltando no tempo, na Roma Antiga, quando percebida a deficiência do infante no decorrer de seu desenvolvimento, logo se permitia que ele fosse abandonado ou até executado por sua família. Entretanto, a humanidade avançou no quesito de visibilidade deste grupo vulnerável que conquistou após muitas lutas a garantia de seus direitos de cidadania assegurados por um ordenamento jurídico, que pode-se dizer, ainda encontra-se em fase de expansão quanto à temática. Portanto, a seguir elencamos os eventos históricos com suas respectivas conquistas, e posteriormente, uma discussão teórica necessária:

LINHA DO TEMPO

• Constituição brasileira de 1824: não havia regulamentação consistente sobre pessoas com deficiência, era uma legislação bastante exclusivista, que previa a suspensão dos direitos políticos em razão de “incapacidade física ou moral”, conforme a redação do art. 8°.

• Constituição brasileira de 1891: continuou omissa quanto à proteção jurídica dos deficientes, sem previsões consistentes sobre sua tutela, mantendo a suspensão dos direitos políticos àqueles que se encontravam em situação de deficiência e vulnerabilidade física/psíquica.

• Constituição brasileira de 1934: entendia o “amparo aos desvalidos” (art. 138) como função atribuída ao Poder Público, ainda que fosse bastante questionável a escrita do artigo nestes termos, além de ainda contar com disposições legais bastantes reduzidas.

• Constituição brasileira de 1937: de viés ditatorial, essa Constituição não adentrou no mérito da questão, tão simplesmente consagrou uma igualdade formal que não se materializou.

• Constituição brasileira de 1946: inspirada pela redemocratização, essa legislação preocupou-se seriamente com a ampliação dos direitos e garantias, propondo uma educação inclusiva aos “alunos necessitados” (art. 172).

• Constituição brasileira de 1967: permaneceu inerte sobre o assunto, dadas as circunstâncias do período e assumiu um caráter autoritário.

• Emenda à Constituição brasileira de 1969 (EC n° 12 de outubro de 1978): primeira previsão explícita sobre PCD’s, garantindo aos “deficientes”, como estava escrito na referida emenda, melhores condições socioeconômicas e a especificação dos meios para alcançar esse objetivo inovador.

• Constituição brasileira de 1988: conferiu proteção integral aos portadores de deficiência e vedou discriminações contra este grupo social, solidificando a noção de igualdade perante a Lei do ponto de vista concreto, com a superveniência de normas inclusivas, embora ainda houvesse muito no que progredir.

• Lei 7.853/1989: na vigência do Governo Sarney, e um ano após a promulgação da nova Constituição, percebeu-se a necessidade de instituir maiores disposições legais voltadas aos PCD’s, que solidificou a Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE).

• Lei 10.098/2000: ampliou normas gerais para a promoção da mobilidade e aos PCD’s.

• Decreto n° 7.162 de 17 de novembro de 2011 (Política Pública): Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Plano Viver Sem Limite, estabelecido pouco depois da criação da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, em 2010, também mediante decreto.

• Lei 13.146/2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência: se baseou em convenção internacional (Convenção de Nova York), substituindo a terminologia “pessoa portadora de deficiência” por “pessoa com deficiência” e centralizando a importância em assegurar a acessibilidade de maneira universal.

APRECIAÇÃO CRÍTICA E INTERPRETAÇÃO DO TEMA

Ao analisar o desenvolvimento histórico da legislação que contempla os direitos e garantias das pessoas com deficiência, cabem algumas considerações bastante relevantes. Em um primeiro momento, pode-se observar que nem sempre uma mudança de paradigma jurídico implica melhorias, visto que há momentos de ruptura, mas também momentos de permanência, e nisso adentra a valoração acerca da importância que determinado tema pode se modificar a partir dos acontecimentos e da mentalidade que marca de uma determinada época, com consequências que se refletem no meio legal, para além do cultural e do social.

Detidamente no que tange aos direitos da pessoa com deficiência, uma interpretação mais aprofundada permite discutir que a Constituição Brasileira de 1934 e a de 1946 miravam o futuro com um olhar propício à evolução da legislação voltada às pessoas com necessidades especiais, de cunho bastante garantista. Entretanto, a toada progressista sofreu interferências de dois períodos de autoritarismo reinantes, refletidos respectivamente nas Constituições de 1937 e de 1967. Ou seja, quanto aos direitos que despontavam, surgiram circunstâncias que os limitaram, ilustrando períodos de altos e baixos.

Ademais, pode-se observar que uma mudança formal de paradigma entre a Constituição de 1824 (Imperial) e a de 1891 (primeira Constituição republicana), acompanhou apenas formalmente a reforma legislativa, de modo que não foi abarcado em seu conteúdo o pleito dos PCD’s, bem como rechaçou a necessidade de mudança da realidade existente quanto a outros grupos, permanecendo estática quanto ao tema, apesar dos “novos tempos”.

Conforme a professora e jurista Clarice Corbella Castelo Branco dispõe, a Constituição imperial não apenas era omissa quanto aos direitos dos PCD’s, mas também era nitidamente impeditiva de seu exercício nos âmbitos físico e moral. Passando-se à análise de um tempo histórico mais adiante, denota-se que a primeira inovação substancial foi recepcionada pela Constituição da época (1969) mediante uma emenda constitucional, representando um apelo de urgência naquela ocasião, que inaugurou o termo “Pessoa com Deficiência” na legislação brasileira.

Adiante, a Constituição de 1988, que permanece em vigor até os dias de hoje, afetivamente conhecida como “Constituição Cidadã”, fixou importantes princípios básicos com ênfase na igualdade material e na dignidade da pessoa humana, bastante simbólica neste sentido. Em razão de figurar como suprassumo da Carta Magna, a dignidade humana foi o fundamento para que as pessoas com deficiência passassem a gozar de maiores previsões legais para a efetivação de seus direitos, com um significado que buscaria transcender o documento legal e encontrar a realidade com todos os seus óbices aos deficientes não somente físicos mas também mentais, que também passaram a ganhar maior cuidado nas disposições que se seguiram.

Desta forma, vieram posteriormente outras legislações que oportunizaram um regramento mais específico e amplamente focado nas deficiências em todos os seus níveis, com o intuito de aperfeiçoar as leis que já dispunham sobre o tema, tornando-o ainda mais realizável. A magnitude de uma tutela especial culminou com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, alinhado às necessidades tipicamente da população brasileira acometida por algum tipo de deficiência, mas também aos preceitos internacionais quanto aos direitos humanos, inspirando-se em cartas internacionais de países que se debruçaram de forma dedicada a fim de oportunizar a inclusão dos PCD’s em suas sociedades.

Assim, ao observar que os eventos não seguem uma linha reta no tempo, pode-se estabelecer uma relação bastante próxima com o texto “Cidadania no Brasil, O Longo Caminho” no qual o professor José Murilo de Carvalho traça um panorama dos direitos dos quais o “cidadão pleno” dispõe, sendo eles os direitos civis, políticos e sociais. O autor chama a atenção, no entanto, para o fato de que apesar de estarem historicamente relacionados, não seguiram uma rígida cronologia. A título de exemplo, tem-se o Brasil, que primeiramente progrediu no âmbito dos direitos sociais na década de 1930, passando posteriormente aos direitos políticos e por fim os direitos civis, cuja existência e problematização são bastante controvertidas, diferentemente do modelo inglês, por exemplo.

É preciso, no entanto, fazer um adendo e problematizar a atual Constituição tal qual ela surgiu no âmbito do tema em análise, vez que as pessoas com deficiência eram englobadas pela previsão do art. 15, inciso II, ou seja, tratadas como absolutamente incapazes para os atos da vida civil. Com o tempo, porém, a CF/1988 passou por reformas que modificaram este entendimento. Agora a redução de capacidade cognitiva e de discernimento decorrente de deficiência é tratada como incapacidade relativa, enquanto que a única hipótese de incapacidade absoluta é relegada aos menores de 16 anos, ou seja, em razão da idade, por força da lei 13.146/2015.

Em síntese, quando se fala nos direitos das pessoas com deficiência, é imprescindível compreender que a trajetória até a legislação que hoje orienta o assunto consistiu em uma verdadeira construção histórica, e o Estatuto da Pessoa com Deficiência além de outros mecanismos legais são fruto de um passado que se empenhou nas lutas reivindicativas para que passassem a figurar em nossos dispositivos, inclusive na Constituição Federal de 1988, algumas prerrogativas essenciais à tutela deste grupo social no qual recaem os direitos conquistados, mas sem perder de vista que tal legislação não se restringe meramente a um único grupo social, mas sim à totalidade dos cidadãos para que se possa concretizar as metas referentes à inclusão de um grupo historicamente vulnerável.

Por fim, após esta exposição, um aspecto que merece destaque na esfera desta pesquisa realizada é que a importante Lei que hoje consagramos como Estatuto da Pessoa com Deficiência não se constituiu de um dia para o outro, mas foi o resultado histórico, e político-jurídico das condições de diferentes momentos que compuseram não apenas a Lei em sua dogmática, mas igualmente a reflexão sobre o motivo pelo qual consideramos um tema como este tão digno de tutela legal.

Cabe salientar que é dever de todos os entes federativos na esfera de suas atribuições zelar pelos direitos das pessoas com deficiência e vedar o seu tratamento discriminatório, assegurando, por exemplo, reserva de vagas a empregos e cargos públicos, entre outras medidas inclusivas, a fim de que a legislação protetiva tenha interpretação extensiva e se harmonize aos princípios da justiça social. Embora já tenhamos identificado importantes avanços, a construção sobre o tema não termina por aqui, uma vez que faz-se necessário o reforço das normas já existentes e as reformas que se mostrarão com o tempo, a partir de novas demandas.

Disciplina: Serviço Social, Direito e Cidadania.

Isadora Welzel e Trabalho de pesquisa realizado em grupo.
Enviado por Isadora Welzel em 10/08/2024
Código do texto: T8125985
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