ENTRE APRENDIZADOS MÚTUOS E CORRUPÇÃO SISTÊMICA: A TÊNUE LINHA ENTRE DIREITO E POLÍTICA

ENTRE APRENDIZADOS MÚTUOS E CORRUPÇÃO SISTÊMICA: A TÊNUE LINHA ENTRE DIREITO E POLÍTICA

BETWEEN MUTUAL LEARNING AND SYSTEMIC CORRUPTION: THE THIN LINE BETWEEN LAW AND POLITICS

Felipe Rodrigues Monteiro, Nelson Flávio Brito Bandeira, Roberto Chibiak Junior, Rodrigo Vitoriano

Resumo

Este artigo visa examinar a aplicação da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann nas interações entre Direito e Política, com foco específico nas Procuradorias Legislativas das Assembleias Legislativas. A intenção é analisar o papel dessas entidades sob uma perspectiva sistêmica, tanto no sistema jurídico quanto no sistema político. O método empregado seguirá uma abordagem dedutiva, partindo de uma teoria geral para aplicá-la às circunstâncias específicas do Direito brasileiro. Os resultados obtidos evidenciam a importância das Procuradorias Legislativas na promoção da celeridade e diversidade tanto no âmbito jurídico quanto no político. Elucida as diferentes relações entre direito e política que podem tanto aprender entre si, quanto se corromperem.

Palavras-chave: Teoria dos Sistemas; Procuradorias Legislativas; Direito; Niklas Luhmann; Política.

Abstract

This article aims to examine the application of Niklas Luhmann's Theory of Systems in the interactions between Law and Politics, with a specific focus on the Legislative Advocacy Offices of the Legislative Assemblies. The intention is to analyze the role of these entities from a systemic perspective, both in the legal and political order. The method employed will follow a deductive approach, starting from a general theory to apply it to the specific circumstances of Brazilian law. The results obtained show the importance of the Legislative Advocacy Offices in promoting speed and diversity, both in the legal and extra political spheres. It elucidates the different relationships between law and politics that both can learn from each other, as like they can be corrupted.

Keywords: Systems Theory; Legislative Advocacy Offices; Law; Niklas Luhmann; Politics.

Sumário: 1. Introdução. 2. Centro e periferia: uma abordagem sistêmica. 3. Aprendizados mútuos ou corrupção sistêmica? 4. Considerações finais. 5. Referências Bibliográficas.

1. Introdução

Niklas Luhmann destaca-se como um ilustre pensador contemporâneo da sociologia do direito. No campo desta ciência, Luhmann exerce uma influência notável. Em seu trabalho, aborda minuciosamente as relações entre direito e política, cujas relações são imprescindíveis para a preservação da ordem social e a estabilidade das instituições democráticas (LUHMANN 2016, p. 545). Apesar de serem sistemas sociais distintos, direito e política encontram-se interligados, sendo essa interdependência crucial para a manutenção da ordem social e política. Conforme as ideias de Luhmann, essa interação ocorre por meio do acoplamento estrutural entre os sistemas sociais, que é a Constituição Federal, no caso do acoplamento estrutural entre Direito e Política (Ibid., p. 630). O acoplamento estrutural, segundo suas reflexões, constitui uma forma de interdependência estabelecida quando dois ou mais sistemas sociais necessitam uns dos outros para sua própria reprodução. Dessa maneira, o estudo das relações entre direito e política, sob a ótica luhmanniana, pode oferecer contribuições valiosas para a compreensão dos desafios e das possibilidades que envolvem a atuação das Procuradorias Legislativas. Essas instituições jurídicas revestem-se de essencialidade, atuando como "intermediadoras" entre o sistema político e o jurídico, o que acarreta vantagens e desvantagens para ambos os sistemas. O presente artigo, nesse contexto, propõe uma análise das interações entre direito e política, especificamente no âmbito das Procuradorias Jurídicas das Assembleias Legislativas, sob a perspectiva luhmanniana. No cenário político atual, a relação entre essas esferas torna-se cada vez mais complexa e tensa. Observa-se, em muitos casos, uma tentativa de instrumentalização do direito pela política, visando atender a interesses particulares ou de grupos específicos. Diante dessa realidade, as Procuradorias Legislativas desempenham um papel de suma importância na defesa da legalidade e legitimidade das normas jurídicas, contribuindo para a preservação da autonomia e celeridade do direito frente à política. Contudo, não estão imunes a situações de clientelismo e práticas que subvertem a plena autonomia do Direito, situações essas que podem ocasionar o que vem sendo chamado de “corrupção sistêmica”.

2. Centro e periferia: uma abordagem sistêmica

Em diversos estudos, mas principalmente no livro "O Direito da Sociedade" (LUHMANN 2016), o sociólogo Niklas Luhmann esclarece que o sistema jurídico se comunica por meio de um código binário do tipo "lícito/ilícito" (p.93). Isso implica dizer que o Direito opera por um filtro com base na binariedade "licitude ou ilicitude". Segundo ele, todo sistema funcional opera segundo sua própria binariedade, e a do direito o distingue dos demais sistemas, como é o caso do sistema artístico, cujo código é "belo/feio", ou do sistema político, cujo código binário é “governo/oposição” (p.82). Assim é que os sistemas funcionais (direito, política, ciência, arte, religião etc.) possuem organizações internas (que também são sistemas) que se distribuem dentro de cada sistema funcional numa diferenciação que Luhmann denomina de “centro/periferia”. Assim é que, na periferia do sistema jurídico, de acordo com Luhmann, encontram-se organizações jurídicas que estão em maior contato com outros sistemas funcionais (como a política, por exemplo). É o caso da advocacia (LUHMANN 2016, p.167), onde se poderia também considerar as Advocacias Públicas e, especificamente, as Procuradorias Legislativas (embora Luhmann não avance a esse ponto, sendo necessário o uso de certa criatividade, dentro do seu aparato conceitual). Isso ocorre porque a Constituição da República Federativa do Brasil, nos seus artigos 131 e 132, atribui aos advogados públicos as prerrogativas de exercerem atividades consultivas e também contenciosas. Isto é, as Procuradorias Jurídicas são organizações formais que possuem seus respectivos membros, organizadas em carreiras, e que produzem decisões. A relação entre centros e periferias é complexa e dinâmica. Luhmann argumenta que os centros dependem das periferias para sua própria reprodução. As periferias desempenham um papel fundamental ao fornecer informações, demandas e desafios que estimulam a adaptação e a evolução dos centros. Ao mesmo tempo, as periferias também dependem dos centros para a legitimação de suas demandas e ações. Os centros possuem recursos, autoridade e capacidade de tomar decisões que afetam as periferias. Essa relação de interdependência entre centros e periferias contribui para a dinâmica e a evolução dos sistemas sociais. Essa abordagem entre centros e periferias, longe de ser valorativa, apenas revela que os tribunais, por estarem obrigados a tomar decisões, desdobram o paradoxo do Direito, que pode ser resumido pela pergunta “é lícito ou ilícito decidir pelo lícito ou ilícito?”, conferindo sentido ao código binário (LUHMANN 2016, p.449), viabilizando a auto-reprodução do Direito (o que Luhmann chama de “autopoiese”), uma vez que suas decisões se tornam premissas decisórias (tanto para o próprio centro como quanto para a periferia do Direito) para a tomada de decisões futuras no sistema jurídico. Por essa razão, os sistemas autopoiéticos, segundo Luhmann, são “operativamente fechados” (p.59), pois se autorreproduzem por meio de seus próprios critérios (p.46). É por esse motivo que os Tribunais estão no centro do sistema jurídico, pois são obrigados a decidir, não podendo escapar da definição da licitude/ilicitude. Decorrente dessa máxima, surge a necessidade de existirem entidades que impulsionam a ação judicial (tendo em vista o "princípio da inércia da jurisdição", conforme disposto no artigo 2º do Código de Processo Civil de 2015. Tais órgãos são principalmente, conforme estabelecido no capítulo IV da Constituição Federal de 1988, os seguintes: Advocacia Pública, Advocacia Privada, Defensoria Pública e Ministério Público. Todas essas organizações periféricas do sistema jurídico. Assim é que, no âmbito do Sistema Jurídico, suas operações consistem sempre em comunicações jurídicas que tratam do lícito ou ilícito (sejam organizações centrais ou periféricas) e que se baseiam em operações anteriores para sua validade (LUHMANN 2016, p.49). Ora, os diferentes sistemas parciais, como o Direito, a Economia, a Política, a Arte, entre outros, estabelecem comunicações de natureza diversa, conforme seus próprios códigos binários, e essas comunicações se conectam umas às outras, conferindo "validade" ao sistema. A validade (também denominada por Luhmann como “símbolo”) do Direito, portanto, é o próprio sistema jurídico, é a sua própria autopoiese (auto reprodução) (LUHMANN 2016, p.132 e 42). Assim é que Luhmann dirá que outros teóricos (especialmente os da Teoria do Direito) evitaram afirmar que o Direito é paradoxal e, por isso, desenvolveram conceitos como o da Norma Fundamental (LUHMANN 2016, p.98 e 678), a maximização do bem-estar (p.678), a vontade soberana do legislador político (p.678 e 724), a Regra de Reconhecimento (p.145-146), o Direito Natural (p.292, 311, 678 e 724), o consenso (p.348) e a moral (p.463-464 e 678), dentre muitos outros, a fim de suprir a "lacuna" da validade última do Direito. O fato é que, segundo Luhmann, não existe uma “razão última” que confere validade ao Direito. A validade do direito é o que o próprio direito diz ser válido, e isto é contingente (isto é, poderia ter sido de outro modo). Esse entendimento faz parte de uma abordagem mais ampla, uma virada epistemológica que difere da tradição que ele denomina antiquada: a “vetero-europeia”. Sua nova perspectiva implica em uma transformação fundamental na compreensão e estudo da sociedade. A epistemologia vetero-europeia refere-se à tradição epistemológica que prevaleceu na Europa durante séculos, baseada em premissas e princípios que remontam à filosofia clássica e à tradição científica ocidental. Essa epistemologia tende a enfatizar uma visão hierárquica e objetiva do conhecimento, buscando encontrar verdades universais e estáveis. Tal visão é muito clara na dogmática jurídica, onde se discutem quase sempre a “racionalidade” da aplicação de normas, critérios de hermenêutica, sopesamento de princípios, dentre outras ferramentas que, para Luhmann, são antiquadas, tendo em vista que uma verdade universal é impossível de ser atingida: [n]esse sentido, não raras vezes são feitas remissões a padrões morais ou mesmo éticos mais elevados, pois, de outro modo (ou seja, se se mantiver imanente ao texto), não se poderia chegar a uma decisão. Tudo se passa como se os intérpretes da lei constitucional tivessem sempre de se valer de um direito mais elevado para se livrar de suas inseguranças. (LUHMANN 2016, p.128). Contrapondo-se a essa epistemologia, Luhmann propõe um novo paradigma que se baseia em sua teoria dos sistemas sociais. Esse novo enfoque epistemológico é caracterizado por uma perspectiva construtivista, que reconhece a complexidade e a contingência da sociedade. Segundo ele, o conhecimento não é uma representação objetiva da realidade, mas sim uma construção que emerge dos sistemas sociais, o que significa que cada sistema social possui sua própria racionalidade, operando segundo suas próprias “lentes”. O conhecimento, portanto, é produzido por meio de processos de observação e comunicação, nos quais os sistemas sociais constroem suas próprias realidades e criam suas próprias distinções. Cada sistema social, portanto, enxerga a sua própria “verdade universal”, mas não enxerga seus próprios pontos-cegos (que só podem ser identificados por outro sistema funcional). Assim é que Luhmann, na qualidade de sociólogo e observador do Direito (estando dentro do sistema científico), conclui que o sistema jurídico se reproduz por meio de seus próprios critérios (2016, p.67), que sempre se baseiam em referências às leis, princípios, doutrinas, jurisprudências, entre outros, mas que, para ele, são argumentos que servem apenas como forma de ocultar o paradoxo inevitável do sistema jurídico (p.128). Nesse sentido, a identificação do que pertence ou não ao sistema é realizada pela interação do código (lícito/ilícito) e dos programas (que são as leis e decisões, por exemplo) (p.252-253). O código é a lente pela qual o sistema jurídico observa cada um dos fatos apresentados (segundo a dicotomia legal/ilegal, isso significa que o Direito realiza essa filtragem), enquanto os programas atribuem significado (valor, sentido) ao código, afastando parcialmente o paradoxo e as contradições inerentes à visão binária pela qual o sistema codifica os fatos da sociedade. Um exemplo é um caso da subtração alheia de um celular com violência, que pelo sistema econômico é visualizado pelo binômio “abundância/escassez” (isto é, pelo lucro ou prejuízo), enquanto que pelo sistema jurídico é observado, com auxílio do Código Penal, como um ilícito denominado roubo (art. 157 do Código Penal). O código, assim, confere autonomia ao sistema, permitindo sua construção autopoiética, uma vez que apenas aquilo que é reconhecido como jurídico (portanto, em conformidade com o Direito) pode participar da evolução do próprio Direito (o simples ato de alguém se desequilibrar de uma bicicleta e ralar o joelho não “irrita” o sistema jurídico, por exemplo). Aqui reside o grande desafio imposto aos programas: são eles que atribuem significado ao código, permitindo reconhecer se uma conduta é legal ou ilegal. Desse modo, Luhmann sustenta que o desenvolvimento do sistema jurídico, assim como dos demais sistemas, segue um esquema composto por variação, seleção e (re)estabilização. A "variação" é o processo pelo qual o sistema é afetado pelas irritações provenientes de seu ambiente. Essas variações podem surgir tanto do ambiente externo ao sistema jurídico (como o sistema político e econômico) quanto do próprio ambiente interno do sistema jurídico. Nesse sentido, tanto os tribunais quanto as procuradorias jurídicas, como organizações do sistema jurídico, são reciprocamente "irritados" e influenciados. Cabe a uma organização selecionar ou não o que a está afetando, e essa seleção serve como premissa para futuras seleções jurídicas. Esse processo de (re)estabilização é temporariamente estável, mas logo sofre alterações. Todo esse percurso evolutivo, que Luhmann não avalia como progresso ou retrocesso, mas sim como mudanças, aumenta a complexidade interna do sistema e define seus limites. É conhecido que as irritações entre tribunais e advocacia ocorrem principalmente nos processos judiciais. Os advogados, ao argumentarem em defesa do ente público, "irritam" muitas vezes os tribunais com novas argumentações, e essas variações argumentativas podem ser selecionadas ou não pelos tribunais, influenciando-os em diferentes graus. No entanto, e boa parte das vezes, os advogados também se baseiam em argumentos já conhecidos (como doutrinas e jurisprudências consolidadas), revelando simultaneamente a “redundância” (repetição) típica do sistema jurídico. Percebe-se que todo esse processo é circular: os argumentos já se fundamentaram em programas prévios, e a decisão final dos tribunais em um litígio baseia-se preponderantemente nos argumentos das partes. Tal julgado pode "irritar" as organizações do sistema jurídico e até mesmo outros sistemas, como o econômico e o político. Caso as procuradorias legislativas selecionem essa irritação (como alguma ação direta de inconstitucionalidade em face de alguma lei), elas a utilizarão em suas argumentações nos pareceres jurídicos, que servirão como variações e/ou redundâncias para outras decisões, e assim por diante. Conclui-se que o sistema jurídico (e aí se incluem também suas organizações centrais e periféricas) constrói suas próprias bases por meio de suas operações decisórias, que irritam o seu ambiente interno e também externo. Portanto, não apenas a decisão final sobre a validade do direito contribui para o fechamento operativo do sistema, mas também as argumentações jurídicas. O processo de fechamento operativo ocorre tanto no nível das decisões sobre a validade do direito quanto no nível da argumentação.

3. Aprendizados mútuos ou corrupção sistêmica?

A relação entre direito e política pode ser observada em diversas dimensões. Em primeiro lugar, o direito pode ser instrumentalizado pela política para atender a interesses políticos e promover agendas específicas. Os atores políticos buscam utilizar as estruturas legais e as instituições jurídicas para legitimar suas ações e obter apoio social. Além disso, o direito desempenha um papel fundamental na estruturação e organização do sistema político. As constituições, leis eleitorais e normas jurídicas em geral estabelecem as regras do jogo político, delineando os poderes, deveres e responsabilidades dos atores políticos. O direito também fornece mecanismos para a resolução de disputas políticas e a garantia do Estado de Direito. Por outro lado, as decisões políticas têm impacto direto no campo jurídico. Através da elaboração de leis, políticas públicas e decisões administrativas, os atores políticos influenciam a criação e o desenvolvimento do direito. O processo político reflete-se nas leis promulgadas, nos precedentes estabelecidos e nas políticas implementadas, moldando assim o ambiente jurídico em que atuam os operadores do direito. Essa interação entre direito e política não é estática, mas sim um processo contínuo e dinâmico. Os debates políticos, as mudanças sociais e as transformações normativas podem desencadear alterações no direito, afetando sua interpretação e aplicação. Da mesma forma, as decisões jurídicas podem ter implicações políticas significativas, impactando as estratégias dos atores políticos e a dinâmica dos processos políticos. Assim, não se pode falar em evolução do direito sem algum tipo de influência da política, e vice-versa. Os sistemas autopoiéticos de Luhmann, embora fechados em termos operacionais, uma vez que se reproduzem de acordo com seus próprios critérios, são cognitivamente abertos à aprendizagem. Se não fosse assim, não poderiam ser "irritados" (LUHMANN 2016, p.114). Nesse contexto, conforme afirmado pelo autor, enquadra-se o conceito de "acoplamento estrutural" (Ibid., p. 589 e seguintes), o qual pode ser definido como uma forma que permite a interdependência entre diferentes subsistemas sociais que operam com códigos distintos e mantêm sua autonomia operacional (LUHMANN 2010, p.33). Dessa forma, cada subsistema mantém sua própria lógica e código de operação, porém necessitam uns dos outros para se reproduzirem e garantir a reprodução da sociedade como um todo (LUHMANN 2016, p.591). Da mesma forma que o direito, sendo um subsistema social que opera com um código específico, a política também é um subsistema que opera com um código próprio, sendo o "governo/oposição". Apesar de suas diferenças, esses dois subsistemas estão estruturalmente acoplados e influenciam-se mutuamente por meio da Constituição, que, de acordo com Luhmann, é o acoplamento estrutural entre Direito e Política (LUHMANN 2016, p.377). Assim é que as procuradorias, enquanto organizações do sistema jurídico, oferecerão respostas no formato "lícito/ilícito", já os Parlamentos (por exemplo, as assembleias legislativas), como organizações do sistema político (LUHMANN 2016, p.193), observarão suas operações sob a perspectiva "governo/oposição". O diálogo entre o sistema jurídico e o sistema político proporciona inúmeras variabilidades para ambos, permitindo aprendizados mútuos e aumentando a complexidade de suas próprias organizações. Os pareceres jurídicos desempenham um papel fundamental na atuação das procuradorias jurídicas, pois eles orientam as decisões dos gestores públicos e demais agentes do poder público. Esses pareceres são embasados em análises técnicas e jurídicas, buscando observar a Constituição e as demais leis e normas que regem a atuação do poder público. Dessa forma, a Constituição é um arranjo institucional que, em uma sociedade moderna, atua como um elemento de interdependência estrutural entre o sistema político e o sistema jurídico. Desse modo, a Constituição funciona como um mecanismo que garante a interdependência e a interconexão entre os dois sistemas sociais, permitindo que cada um cumpra seu papel específico na manutenção da ordem social. Assim, a Constituição desempenha um papel de coordenação e integração entre os sistemas político e jurídico, garantindo a estabilidade e a continuidade da ordem social. Importante ressaltar que a Constituição não possui um entendimento universal em si. Como já frisado inúmeras vezes, o Direito e a Política possuem diferentes formas de "enxergar" a Constituição, pois cada sistema opera com um código binário distinto. Essa distinção binária torna crucial o papel das procuradorias jurídicas legislativas, pois, estando na periferia do sistema jurídico e, portanto, mais próximas de outros sistemas funcionais, elas funcionam como "amortecedores" (CAMPILONGO 2011) para os tribunais, convertendo demandas políticas em questões de lícito/ilícito. Isso permite que as questões cheguem aos Tribunais já analisadas e facilitem a tomada de decisões, evitando a sobrecarga hermenêutica dos juízes. Deste modo, o trabalho preventivo das procuradorias jurídicas em todos os procedimentos legislativos é essencial para que o centro do sistema jurídico, os tribunais, possam economizar tempo e não sejam sobrecarregados por demandas que poderiam ter sido previamente analisadas pelas organizações periféricas do direito (não só as procuradorias jurídicas, mas também toda a advocacia pública e tribunais de contas). Ao emitir pareceres jurídicos de forma preventiva, as procuradorias legislativas evitam transtornos na forma de ações judiciais que sobrecarregam os tribunais e promovem a morosidade no Direito. No entanto, os interesses particulares dos parlamentares podem representar um desafio para a imparcialidade das procuradorias jurídicas. Em muitos casos, esses interesses podem entrar em conflito com o interesse público, pressionando as procuradorias a emitirem pareceres jurídicos que favoreçam determinados parlamentares em detrimento da lei. Além disso, atos administrativos fraudulentos, como contratos irregulares em licitações públicas, também comprometem a atuação das procuradorias. A emissão de pareceres jurídicos favoráveis em tais situações, que claramente violam as normas de licitação pública, pode resultar em desvio de recursos públicos e configura uma forma de corrupção, podendo até mesmo configurar ato de improbidade administrativa. A aprendizagem mútua refere-se ao processo no qual diferentes sistemas sociais interagem e influenciam-se reciprocamente, compartilhando informações, conhecimentos e perspectivas. É por meio dessa interação que os sistemas sociais são capazes de se adaptar, evoluir e desenvolver-se em resposta às demandas e desafios do ambiente em que estão inseridos. Os aprendizados mútuos são fundamentais para a construção de uma sociedade complexa e dinâmica. Assim, a linha que separa os aprendizados mútuos da corrupção sistêmica é delicada. A corrupção sistêmica ocorre quando os sistemas sociais desviam-se de suas funções e princípios essenciais, comprometendo sua integridade, legitimidade e eficácia. Ela pode ser caracterizada por práticas desonestas, subversão de normas, favoritismos e apropriação indevida de recursos, minando os fundamentos dos sistemas sociais. No contexto do sistema jurídico e político, essa linha de separação torna-se ainda mais complexa. Enquanto a interação entre direito e política é necessária para a preservação da ordem social e a estabilidade das instituições democráticas, ela também pode abrir espaço para a corrupção sistêmica. A troca de informações e influências entre esses sistemas pode permitir que interesses particulares, ganhos políticos e desvios de conduta se infiltrem e comprometam a integridade do sistema. Uma procuradoria legislativa pode elaborar pareceres ou projetos de lei em benefício de interesses privados, por exemplo, em troca de favores políticos ou mesmo financeiros. Essa manipulação gera um desvio de finalidade da atividade jurídica, constituindo o que Marcelo Neves tem chamado de "corrupção sistêmica". Embora seja criticada por reforçar de maneira simplista a inferioridade dos países periféricos em relação aos países centrais (SOUZA 2013, p.149; DUTRA 2016), Marcelo Neves (2020), aborda o conceito de "corrupção sistêmica" como uma situação em que as funções dos diferentes sistemas sociais se confundem, prejudicando sua eficiência e eficácia. Segundo o autor, a corrupção sistêmica entre o Direito e a Economia, ou entre o Direito e a Política, ocorre quando as fronteiras entre esses sistemas sociais se confundem, gerando interdependência e vulnerabilidade. Neves destaca que, em muitos países periféricos, incluindo o Brasil, a interdependência entre o sistema jurídico, o sistema econômico e o sistema político é particularmente forte, o que cria um ambiente propício para a corrupção sistêmica. Assim, ela pode ser vista como um problema que afeta a complexidade e a diferenciação funcional dos sistemas sociais, comprometendo o próprio funcionamento desses sistemas. Em suma, apesar das Procuradorias Jurídicas desempenharem um papel crucial na análise e emissão de pareceres jurídicos embasados na Constituição e nas leis, visando orientar a tomada de decisões dos gestores públicos, essas instituições enfrentam desafios relacionados aos interesses particulares dos parlamentares, práticas corruptas e influências políticas. Em um sentido distinto, Campilongo (2011) sustenta que não se trata de uma corrupção sistêmica, pois, embora haja ocasiões em que os sistemas adotem códigos binários alheios aos próprios, não se pode afirmar que o Direito não opere, em sua maioria, mediante o binômio "lícito/ilícito". Nessa perspectiva, argumenta-se que, na verdade, ocorre um "hipercontato intrasistêmico", ou seja, o Direito, a Economia e a Política nos países periféricos se encontram em maior interação, gerando mais conflitos entre si, quando comparados aos países centrais, sem que isso signifique que não sejam funcionalmente diferenciados (CAMPILONGO 2011, p.172). Por outro lado, também é possível observar exemplos de aprendizados mútuos entre a procuradoria legislativa e a assembleia legislativa. Esses aprendizados ocorrem quando há um diálogo construtivo e colaborativo entre as partes, visando ao aprimoramento do processo legislativo. Um exemplo seria a troca de conhecimentos jurídicos entre procuradores e parlamentares, permitindo uma melhor compreensão das questões legais envolvidas nos debates e na elaboração de projetos de lei. Além disso, a procuradoria legislativa pode contribuir com sua expertise jurídica, fornecendo análises aprofundadas e fundamentadas para embasar as decisões legislativas. Outro exemplo é a possibilidade de os parlamentares aprenderem com a expertise da procuradoria legislativa sobre como tem sido a interpretação e aplicação das leis. Os procuradores podem fornecer orientações legais claras e embasadas, auxiliando os legisladores a elaborarem leis mais consistentes, claras e adequadas ao ordenamento jurídico vigente. Essa interação permite aos parlamentares uma compreensão mais aprofundada das implicações legais das propostas em discussão, o que contribui para a elaboração de leis mais eficazes e congruentes com os princípios constitucionais. Além disso, a procuradoria legislativa pode atuar como uma fonte de aprendizado contínuo para os parlamentares, oferecendo treinamentos, workshops ou seminários sobre temas jurídicos relevantes. Essas iniciativas capacitam os legisladores a lidar de forma mais competente com as complexidades do sistema jurídico, aprofundando seus conhecimentos e promovendo um maior embasamento técnico na tomada de decisões legislativas. Por sua vez, os parlamentares trazem consigo o conhecimento do contexto político e social, bem como as demandas da sociedade. Através desse diálogo, os procuradores podem aprender sobre as necessidades e aspirações dos cidadãos, levando em consideração aspectos práticos e viabilidade política na sua análise. Os parlamentares estão constantemente lidando com as complexidades da política e são responsáveis por tomar decisões práticas que consideram tanto as exigências jurídicas quanto as demandas políticas. Ao interagir com os legisladores, os procuradores podem aprender a desenvolver uma abordagem mais sensível ao contexto político, considerando as possíveis implicações e os efeitos práticos de suas recomendações jurídicas. Essa sensibilidade política pode ajudar as procuradorias a oferecerem pareceres mais equilibrados e realistas. No entanto, tais aprendizados podem evoluir para práticas que corrompem o código binário desses sistemas. Um primeiro exemplo diz respeito à cooperação seletiva. Nesse contexto, os procuradores podem favorecer determinados parlamentares ou grupos políticos em troca de benefícios pessoais ilícitos, como subornos ou favorecimento indevido. Essa conduta compromete a imparcialidade e a integridade do sistema jurídico, minando as expectativas normativas dos cidadãos (tipos de expectativas que, segundo Luhmann, não suportam serem violadas, diferentemente das expectativas cognitivas). Outro exemplo está relacionado à manipulação da interpretação jurídica. Quando os parlamentares influenciam os procuradores de forma indevida, distorcendo a interpretação das leis em benefício próprio ou de seus interesses políticos. Um terceiro exemplo é a troca de influências indevidas. Os procuradores podem conceder pareceres jurídicos favoráveis em troca de apoio político para suas carreiras, comprometendo assim a independência e a imparcialidade do sistema jurídico. Uma forma também pela qual a política pode ser afetada pela corrupção sistêmica é por meio da instrumentalização do direito. Isso ocorre quando atores políticos utilizam o sistema jurídico de forma manipulativa, buscando alcançar interesses pessoais. Por exemplo, parlamentares podem buscar a aprovação de leis que beneficiem grupos específicos ou que promovam seus interesses eleitorais, mesmo que essas leis sejam contrárias aos princípios democráticos ou à constituição (e que inclusive podem sofrer ações diretas de inconstitucionalidade, caso a procuradoria legislativa também corrobore com tais práticas e não forneça um parecer jurídico negativo sobre elas). Essa instrumentalização distorce o propósito do direito, minando também a imparcialidade e a integridade do sistema político. Outra forma de corrupção sistêmica ocorre por meio da captura regulatória. Isso ocorre quando agentes políticos exercem influência sobre os órgãos reguladores ou agências governamentais responsáveis pela criação e aplicação das normas e regulamentos. Essa influência indevida pode levar à elaboração de políticas e regulamentações que favorecem determinados interesses econômicos ou políticos, em detrimento do interesse público. Por exemplo, empresas podem exercer pressão sobre os reguladores para obterem tratamento preferencial ou para evitar a implementação de regulamentações que as afetem negativamente. Essa captura regulatória mina a independência do sistema político e compromete a equidade e a eficácia das políticas públicas. Esses exemplos ilustram como os aprendizados mútuos entre procuradores e parlamentares podem se desviar e evoluir para práticas que, segundo Marcelo Neves, se enquadram como de corrupção sistêmica, substituindo o código do direito (lícito/ilícito) pelo da política (governo/oposição) e/ou pelo da economia (ter/não-ter). Enquanto o intercâmbio de conhecimentos e experiências contribui para a autonomia dos sistemas e seu consequente fechamento operacional, práticas de corrupção sistêmica, a depender da frequência em que ocorrem, substituem os respectivos códigos binários, fazendo com que, aos poucos, a separação entre direito e política desapareça. A questão parece ser uma questão de grau, sendo necessário um amplo estudo empírico que possibilite enxergar até que ponto os diferentes sistemas aprendem entre si ou se corrompem.

4. Considerações finais

Luhmann é um autor sui generis. Seu enfoque recai na autopoiese dos sistemas sociais, ou seja, em sua capacidade de autorreprodução e autorreferência. Os sistemas sociais, como o direito, a política ou a economia, são concebidos como sistemas complexos e autônomos, que operam de acordo com suas próprias regras e lógicas internas. Essa abordagem epistemológica luhmanniana reconhece a natureza construída e contingente do conhecimento, enfatizando a importância dos sistemas sociais e de suas operações na produção do conhecimento. Ela desafia a visão tradicional de uma única verdade universal e estável, abrindo espaço para uma compreensão plural e contextualizada do conhecimento. Nesse sentido, a atuação das procuradorias legislativas como organizações do sistema jurídico, possuindo uma racionalidade própria e diferente até mesmo dos tribunais, reveste-se de suma importância para assegurar a conformidade dos futuros programas com a Constituição, as normas infraconstitucionais, as jurisprudências e as doutrinas. O binômio "lícito/ilícito" das procuradorias legislativas opera como um mecanismo de filtragem das tensões advindas do âmbito político, em particular das organizações parlamentares. Tais filtros desempenham o papel de prevenir eventuais questionamentos e ações que sobrecarregariam os tribunais, além de atenuarem as demandas provenientes da Política, o que também contribui para a rapidez das decisões. A função das Procuradorias Legislativas, portanto, assume importância vital, pois age como uma espécie de "mediadora" entre os tribunais e os parlamentos, fornecendo uma variedade argumentativa não apenas para as instituições do sistema jurídico, mas também para as organizações políticas. O tratamento conferido pelas procuradorias legislativas às tensões oriundas do âmbito político possibilita um maior aprendizado e a aquisição de complexidade, tanto para o Direito quanto para a própria Política, uma vez que elas "aprendem" com os parlamentos e vice-versa. Assim é que, por um lado, os aprendizados mútuos entre procuradores e parlamentares podem propiciar um maior conhecimento sobre os processos políticos e uma visão mais ampla dos interesses da sociedade. Essa troca de informações e argumentos pode contribuir para a elaboração de leis mais sólidas e coerentes, garantindo a conformidade com a Constituição e a legislação vigente. Os procuradores podem aprender sobre as dinâmicas políticas e suas necessidades, enquanto os parlamentares podem se beneficiar do conhecimento jurídico especializado para tomar decisões mais embasadas. No entanto, é importante reconhecer que esses aprendizados mútuos também podem abrir espaço para a corrupção sistêmica, ou no mínimo um “hipercontato intrassistêmico”. Quando a troca de conhecimentos e informações ultrapassa os limites éticos e legais, os procuradores podem ser cooptados ou influenciados indevidamente pelos parlamentares. Isso pode resultar em práticas corruptas, como a manipulação do Direito para benefício pessoal ou de grupos específicos, a captura regulatória e o uso indevido do poder discricionário. Essas situações minam a integridade do sistema político, enfraquecem a confiança da sociedade nas instituições e comprometem a diferenciação funcional dos sistemas ao substituírem seus respectivos códigos binários. Em suma, a relação entre Direito e Política é complexa e envolve uma interação constante. Os aprendizados mútuos entre procuradoria jurídica e assembleia legislativa têm o potencial de fortalecer o sistema jurídico e político, mas é preciso estar atento aos riscos de corrupção sistêmica que podem surgir e uma pesquisa empírica de alcance nacional pode contribuir grandemente nesse objetivo.

5. Referências

CAMPILONGO, Celso F. (2011) Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva. DUTRA, Roberto (2016) Diferenciação Funcional e a Sociologia da Modernidade Brasileira. Revista de Sociologia Política - Política e Sociedade 15(34). LUHMANN, Niklas (2009) Introdução à teoria dos sistemas. Petrópolis: Vozes. LUHMANN, Niklas (2016) O direito da sociedade. São Paulo: Martins. LUHMANN, Niklas (2018) Organization and Decision. Cambridge: Cambridge University Press. LUHMANN, Niklas (2013) Sistemas sociais: esboço de uma teoria geral. Petrópolis: Vozes. LUHMANN, Niklas (2019) Teoria dos sistemas na prática - V. 2: Diferenciação funcional e modernidade. São Paulo: Vozes. LUHMANN, Niklas (2020) Teoria dos sistemas na prática - V. 3: História, semântica e sociedade. São Paulo: Vozes. LUHMANN, Niklas (2018) Teoria dos sistemas na prática: Estrutura social e semântica. São Paulo: Vozes. MARTINS, Wallace P. (Jr.) (2008) Enriquecimento ilícito de agentes públicos – Evolução Patrimonial desproporcional à renda ou patrimônio – Lei Federal n.º 8.429/92. Justitia, 2008. MARTINS, Wallace P. (Jr.) (2006) Probidade administrativa. 3. ed. São Paulo: Saraiva. MENDES, Gilmar F.; BRANCO, Paulo G. G.; COELHO, Inocência M. (2010) Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva. NEVES, Marcelo (2011) A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes.

Rodrigo Murad Vitoriano, Felipe Rodrigues Monteiro, Nelson Flávio Brito Bandeira e Roberto Chibiak Junior
Enviado por Rodrigo Murad Vitoriano em 26/04/2024
Reeditado em 26/04/2024
Código do texto: T8050091
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.