Minha Dor de Carregar o Recanto nas Costas.

 


 

A Elegância de Quem Sente Dor

 

um homem com uma dor

é muito mais elegante

caminha assim de lado

com se chegando atrasado

andasse mais adiante

carrega o peso da dor

como se portasse medalhas

uma coroa, um milhão de dólares

ou coisa que os valha

ópios, édens, analgésicos

não me toquem nessa dor

ela é tudo o que me sobra

sofrer vai ser a minha última obra” — Paulo Leminski 

 


 

O Peso Invisível do Recanto

Quem me vê andando meio envergado, não se surpreenda: é a dor de carregar o Recanto das Letras nas costas.

Se o Recanto fosse pagar royalties pela minha contribuição, a plataforma estaria em dívida eterna.

 

É mais ou menos igual à situação do mundo em relação aos gregos: se fôssemos pagar royalties pelas suas invenções — a humanidade, a matemática, a filosofia, a mitologia, a religião, o teatro, a comédia, as tragédias, os jogos olímpicos, a educação, a democracia, a ética, a educação física — nós estaríamos em dívida, e os gregos, a maior potência da história.

 


 

A Lâmpada Noturna da Filosofia

Mas a maior importância é a da filosofia — e só por isso eu consigo carregar o Recanto nas costas com minha produção literária.

A filosofia ilumina a vida.

 

E à noite, ela sustenta tudo.

 

Dela surge a capacidade de abstração, que serve para entender qualquer coisa. Então, primeiro vem a filosofia, e depois a matemática e as demais invenções dos gregos.

 


 

Genealogias Sagradas

Mas não se trata de discutir quem veio antes — o ovo ou a galinha.

A filosofia provém da religião, como diz a genealogia do livro A Cidade Antiga e A História da Religião, de David Hume.

 

Primeiro, com medo do desconhecido, os antigos inventaram a religião dos antepassados mortos — que eram idolatrados no altar sagrado de casa, no fogo chamado lar.

As liturgias depois da morte, como no mito de Sísifo — que foi condenado por premeditar com a mulher a não realização dos ritos fúnebres para que pudesse subir novamente à superfície dos vivos e admoestá-la pela negligência — e não voltou mais.

 

E sua condenação, como a minha de carregar o peso do Recanto nas costas, é rolar uma pedra que sempre retorna.

 


 

Do Medo à Filosofia

Posteriormente, a indagação do mistério da vida — como diz Hume — fez o homem relacionar os fenômenos da natureza com deuses.

E a cultura, a chuva, o sol, os elementos naturais, passaram a ser cultuados, para que não trouxessem prejuízos e, ao contrário, ajudassem na lavoura e na colheita.

 

O direito privado, a posse de terra, o casamento — tudo foi feito de acordo com a religião dos mortos antepassados.

O direito de posse era delimitado pela região onde estavam enterrados seus mortos.

 


 

A Dialética dos Contrários

E da crença surgiu a laicização do pensamento: a filosofia.

 

Mais ou menos, porque — como analisaria Nietzsche — ela conservaria o dualismo surgido na religião entre corpo e alma, mundo das ideias e mundo sensível.

E, posteriormente, entre razão e instintos, até que corpo e alma tornem-se indivisíveis na pós-modernidade, entre materialismo e idealismo.

 

Ou deveriam ser.

 

Não gosto de maniqueísmo.

Procuro uma síntese dialética entre forças opostas e ideias, para criar algo novo — sempre.

 

Na minha filosofia de agenciamentos e da relação do corpo com o mundo, busco bons encontros para promover minhas forças criativas.

E assim, cuido do corpo para cuidar do pensamento, concomitantemente.

 

E com esse texto, que versa sobre religião, cultura, arte e filosofia, eu continuo carregando o Recanto das Letras nas costas.

 


 

A Pedra e o Sonho

 

Carrego o peso da lua,

Três paixões mal curadas,

Um Saara de páginas,

Essa infinita madrugada.

Viver de noite

Me fez senhor do fogo.

A vocês, eu deixo o sono.

O sonho, não.

Esse, eu mesmo carrego.

Paulo Leminski