FUTEBOL: A “Cracolândia” do POVO!
O Jogo dos Bárbaros e Cavalheiros
Dizem que futebol é um jogo de cavalheiros jogado por bárbaros. Porém, ele foi tão elitizado ao longo dos anos que, se minha intenção fosse fazer uma alusão a drogas, o futebol, pelo seu alto custo, seria mais parecido com o haxixe ou até a cocaína colombiana, e não com a droga mais barata do povo. Futebol, como sabemos, tem raízes nas classes mais abastadas, com origem nas fábricas londrinas, um esporte para a elite branca.
No Brasil, ele surgiu como um passatempo amador, antes de se tornar profissional. Quem afirma que o futebol é “coisa do povo” está redondamente enganado, pois ele sempre foi um símbolo da elite, e é justamente a elite que o mantém voltado para suas raízes.
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Táticas e Intelecto: A Elite em Campo
As grandes inovações táticas do futebol, por exemplo, eram debatidas em cafés filosóficos, como acontecia em Veneza, onde intelectuais discutiam a evolução do esporte. O futebol, com suas táticas e a maneira como foi capturado pelo capitalismo, passou a ser um produto da elite e algo extremamente intelectualizado, ao contrário do que muitos pensam. Ou, se preferir, ele pode ser considerado como a “cracolândia” para o povo, enquanto a elite consome a versão mais nobre — a cocaína pura.
É ilustrativo pensar no quadro da partida de futebol entre intelectuais, como foi representado pelo Monty Python, entre a Grécia e a Alemanha. A composição dessa disputa, de certa forma, resgata a ideia de que o futebol também tem uma forte relação com a filosofia.
Os Times:
Grécia (vestindo túnicas brancas):
• Sócrates (Capitão)
• Aristóteles
• Platão
• Epicteto
• Epicuro
• Heráclito
• Demócrito
• Pitágoras
• Arquimedes
• Sófocles
• Empédocles
Técnico: Aristófanes
Alemanha (vestindo uniformes de futebol convencionais):
• Kant (Capitão)
• Hegel
• Schopenhauer
• Wittgenstein
• Nietzsche
• Heidegger
• Marx
• Leibniz
• Schlegel
• Jaspers
• Beckenbauer (único jogador real de futebol, não filósofo)
A grande surpresa na escalação, obviamente, foi Beckenbauer, e para intermediar essa disputa intelectual e filosófica, o árbitro foi nada menos que Confúcio!
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O Jogo Filosófico: Entre Debate e Ação
O jogo começa com os filósofos caminhando pensativamente pelo campo, refletindo profundamente sobre questões metafísicas e existenciais, enquanto o árbitro Confúcio tenta manter a ordem. A bola permanece intocada por quase toda a partida, pois os jogadores estão mais envolvidos em discussões filosóficas do que no jogo em si, gesticulando uns para os outros, sem a mínima pressa para jogar.
O momento decisivo ocorre nos minutos finais, quando Arquimedes, em uma epifania, grita “Eureka!” e finalmente percebe que pode chutar a bola. Ele avança rapidamente pelo campo, driblando os alemães (que ainda estão imersos em suas profundas reflexões filosóficas) e passa para Sócrates, que marca o gol da vitória para a Grécia.
Os alemães protestam furiosamente com o árbitro, alegando que houve um impedimento, enquanto Marx, que estava no banco, entra revoltado em campo, acabando expulso por Confúcio. O estádio explode em comemoração, enquanto os filósofos gregos carregam Sócrates nos ombros, enquanto os alemães continuam debatendo suas teorias em um intenso círculo de diálogo.
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Genialidade e Reflexão Filosófica
Esse cenário, embora cômico, ilustra bem como as duas grandes potências filosóficas, Grécia e Alemanha, se destacaram na história do pensamento ocidental, e, de certa forma, reflete o futebol como algo mais do que um simples esporte, mas como um jogo de estratégia e abstração, tão profundo quanto as discussões filosóficas que fundamentam a própria sociedade.
E, de fato, o futebol, assim como a matemática e outras ciências abstratas, exige uma mente intelectualizada. Na verdade, um estilo de intelectualidade que, de certa forma, transforma a tática em algo mais que um simples esquema de jogo, mas em uma forma de arte e pensamento.
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Futebol e Intelecto: A Evolução Tática e o Pensamento Filosófico no Esporte
De certa forma, o futebol é um esporte para intelectuais. A tática exige abstração, como a matemática — ao menos um estilo dela.
Em A Pirâmide Invertida, Jonathan Wilson descreve as primeiras formações táticas do futebol. No final do século XIX, os times jogavam com apenas um zagueiro, dois meias e sete atacantes (1-2-7), ou então com dois zagueiros, dois meias e seis atacantes (2-2-6). Naquela época, não existiam treinadores como conhecemos hoje; quem definia a estratégia era o capitão da equipe.
Um dos grandes responsáveis pela evolução tática do jogo foi o escocês Jimmy Hogan (1882–1974), considerado um dos treinadores mais influentes da história. Hogan ajudou a moldar o sistema 2-3-5, conhecido como a “pirâmide”, pois sua disposição em campo lembrava esse formato.
Sua maior contribuição foi transformar o futebol britânico, que até então era baseado na força física e na correria direta para o ataque (kick and rush), em um jogo mais técnico e elaborado, com ênfase na troca de passes. Esse estilo, chamado de “tecelagem escocesa”, valorizava a construção coletiva, como uma teia de aranha que se expande gradualmente até chegar ao gol.
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Futebol e Nietzsche: Criadores vs. Reativos
Desde os primórdios do esporte, é possível fazer uma associação entre futebol e a filosofia de Friedrich Nietzsche. Há equipes que jogam de forma ativa e criativa, dominando a posse de bola, trocando passes e atacando constantemente. E há aquelas que jogam de maneira reativa, esperando o adversário e explorando os erros no contra-ataque.
Os times ativos criam formas abstratas de se manter com a bola, fazendo-a circular para impor seu jogo. Já os times reativos apenas respondem às situações do jogo, sem ditar o ritmo da partida.
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O Impacto da História e da Política no Futebol
Fatores históricos e socioeconômicos influenciaram diretamente a evolução tática do futebol. Antes da ascensão do fascismo na Europa, as táticas eram debatidas nos cafés, como um reflexo do pensamento livre e da efervescência intelectual da época. No entanto, o rigor estratégico e logístico das guerras acabou sendo transferido para o esporte, tornando-o mais disciplinado e metódico.
Foi nesse período que surgiu a numeração fixa dos jogadores, seguindo a formação padrão 2-3-5. No famoso sistema W-M (3-2-5), criado por Herbert Chapman no Arsenal (Inglaterra, anos 1920–30), o centro-médio passou a usar a camisa 5, que mais tarde se tornaria sinônimo do zagueiro central.
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Os Grandes Mestres da Evolução Tática
• Hugo Meisl (Áustria, 1881–1937): Criador da “Escola Danubiana”, que adotou a troca de passes escocesa na Áustria e influenciou a geração da Wunderteam.
• Boris Arkadiev (Rússia, 1899–1986): No Dínamo de Moscou, transformou o W-M rígido em um sistema mais fluido, criando o conceito de “desorganização organizada”—um caos construtivo, onde a movimentação caótica dos jogadores era, na verdade, meticulosamente ensaiada.
• Márton Bukovi (Hungria, 1903–1985): Técnico do MTK Budapeste, fez uma revolução no W-M, deslocando o centroavante para o meio-campo, criando o “M-M”, que se tornaria a base do futebol moderno.
• Gusztáv Sebes (Hungria, 1906–1986): Criador do 4-2-4, sistema que revolucionaria o futebol mundial e seria consagrado pelo Brasil na Copa do Mundo de 1958.
Apesar de o Brasil ser chamado de “país do futebol”, nem sempre fomos os maiores inovadores no aspecto tático. Nossa principal revolução veio apenas no final dos anos 1950, com a adaptação do sistema húngaro. E, atualmente, nem somos mais os que melhor praticam o jogo.
O oposto do futebol criativo e ofensivo foi o pragmático e defensivo Herbert Chapman, que, no Arsenal (anos 1920–30), desenvolveu um W-M ultradefensivo, símbolo do futebol reativo e até antiético. Seu estilo influenciou gerações de times que priorizam a defesa em detrimento do espetáculo.
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O Capitalismo e a Evolução do Futebol
O capitalismo simboliza a evolução do esporte, e, com o dinheiro gerado pelo mercado do futebol, o erro passou a ser cada vez menos tolerado. Esse rigor técnico se refletiu na tática, e a tecnologia foi incorporada ao esporte por meio da análise de dados, estatísticas e preparação física. A habilidade e o improviso deram lugar a estratégias de guerra e previsões precisas, buscando minimizar riscos para que os técnicos tivessem o máximo de controle sobre a contingência do jogo.
Como os Estados Unidos nunca foram entusiastas do futebol, aplicaram essa mentalidade primeiro no beisebol, como retratado no filme Moneyball (2011), que mostra o uso da estatística avançada para montar times mais eficientes. No futebol, coube aos países da União Soviética desenvolver métodos semelhantes, já que o esporte era utilizado, assim como no Brasil durante a ditadura, como ferramenta de influência sobre as massas.
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O Pai do Futebol Moderno
O “pai do futebol moderno” é frequentemente considerado Viktor Maslov, técnico soviético que revolucionou o jogo ao recuar os pontas no esquema 4-2-4, dando origem ao sistema tático mais popular da história do futebol: o 4-4-2. Sua inovação transformou a maneira como as equipes equilibravam defesa e ataque, tornando-se a base para o futebol contemporâneo.
O símbolo do futebol ultradefensivo e do famoso catenaccio foi Helenio Herrera, lendário treinador argentino que fez história na Internazionale de Milão nos anos 1960. O catenaccio, que significa “ferrolho” em italiano, se baseava em uma defesa extremamente fechada e contra-ataques letais. Herrera foi pioneiro ao enfatizar o preparo físico, a disciplina tática e a psicologia esportiva, introduzindo conceitos como o “pressing” e a mentalidade vencedora.
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A Revolução do Futebol Total
A oposição ativa e “nietzschiana” ao futebol defensivo veio com Rinus Michels, criador do futebol total, que revolucionou o esporte nos anos 1970. Sua seleção holandesa ficou conhecida como “Laranja Mecânica”, apelido inspirado no polêmico filme de Stanley Kubrick (1971), baseado no livro de Anthony Burgess.
O conceito do carrossel holandês, com jogadores sem posições fixas e intensa movimentação, confundia os adversários e representava uma revolução tática. Além disso, a Holanda de Michels implementou a linha defensiva alta e a tática de deixar os atacantes adversários em impedimento com movimentos sincronizados, algo arriscado para a época, mas extremamente eficaz.
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O Legado do Pressing
Apesar do sucesso do futebol total, a ideia do pressing, ou seja, a marcação alta para recuperar a bola no campo adversário, foi originalmente concebida pelo russo Valeriy Lobanovskyi. Ele incorporou elementos científicos e estatísticos em seus métodos de treinamento, buscando a máxima eficiência coletiva. Seu trabalho no Dínamo de Kiev transformou a forma como as equipes pressionavam e dominavam os jogos, influenciando diretamente o futebol moderno.
Quem diz que a pressão alta e a troca de passes surgiram com o Barcelona de Guardiola, no mínimo, desconhece a história do futebol. É o típico discurso da geração dos “Enzos”.
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A Visão do Futebol Brasileiro
Não por acaso, no Brasil, a câmera de transmissão fica sempre próxima à bola, em um ângulo fechado, que impede uma visão ampla do jogo. Isso reflete a mentalidade do torcedor brasileiro, que se preocupa apenas com o drible bonito, o lance plástico, o calor da jogada, sem prestar atenção aos aspectos táticos e técnicos.
Na Europa, a tradição é diferente. A câmera é posicionada mais distante, como se estivesse na arquibancada, permitindo que o espectador enxergue o campo inteiro, a movimentação das linhas e o panorama geral do jogo. Esse detalhe diz muito sobre o porquê de o Brasil não produzir treinadores de ponta e precisar importar técnicos estrangeiros, que acabam se destacando no país.
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A Realidade do Treinador Brasileiro
Tite, por exemplo, que fracassou na última Copa do Mundo e hoje vive no ostracismo, chegou a afirmar, em 2014, que o esquema com três zagueiros estava ultrapassado. Anos depois, Antonio Conte venceria a Premier League com o Chelsea utilizando exatamente esse sistema, que segue sendo um dos mais equilibrados do futebol moderno. O próprio Tite, ironicamente, adotaria essa formação no Flamengo — e fracassaria. É o típico treinador reativo, que apenas responde às tendências impostas pelos grandes técnicos ao invés de criá-las.
O livro Pirâmide Invertida, de Jonathan Wilson, explica bem esse fenômeno: no futebol de antigamente, o esquema predominante era o 2-3-5, uma formação ofensiva com cinco atacantes. Mas, com a profissionalização do esporte e o avanço do capitalismo, que não admite erros, o jogo ficou mais compacto, os espaços diminuíram e as probabilidades passaram a ser reduzidas ao máximo. Assim, a pirâmide “se inverteu” para um 5-3-2 ou 4-4-2, tornando-se um jogo mais pautado na defesa.
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A Tática Como Expressão da Inteligência
A tática é uma forma de inteligência e abstração, mas nem todos os técnicos são ativos e criativos.
No Brasil, os dois treinadores estrangeiros mais vitoriosos dos últimos anos, Jorge Jesus e Abel Ferreira, representam abordagens distintas do jogo.
Abel Ferreira, português e técnico do Palmeiras, é pragmático, meticuloso e estudioso. Seu estilo é vertical, objetivo e reativo: roubar a bola rapidamente e atacar de forma direta, sem se preocupar em jogar bonito, apenas em vencer.
Jorge Jesus, por outro lado, prioriza o controle absoluto do jogo. Sua equipe pressiona o adversário no campo de ataque, roda a bola de um lado para o outro pacientemente, até encontrar o espaço ideal para finalizar. Seu futebol exige mais técnica e refinamento, mas também subjuga o oponente.
São estilos distintos, mas ambos eficazes.
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O Ativo e o Reativo: Uma Reflexão Pessoal
Eu, pessoalmente, sempre prefiro o ativo. Na vida, no futebol, em tudo. Pep Guardiola tem uma explicação interessante sobre o jogo. Ele diz que as formações numéricas — como 4-4-2 ou 4-3-3 — são apenas “números de telefone”, pois, sozinhas, não significam nada. O que realmente importa é como os jogadores se movimentam dentro de campo, como criam espaços, como recebem e mantêm a posse de bola. Essa é a essência do futebol bem jogado.
Até jogando videogame com meu irmão há essa distinção — e, como vocês sabem, eu não faço nada igual aos demais. No futebol, o campo é dividido em três partes: defesa, meio-campo e ataque. Essa divisão vale tanto para defender quanto para atacar. Isso significa que, quando seu time está na defesa, a formação para sair jogando é uma; quando a bola está no meio-campo, a organização muda; e no ataque, mais uma vez, a estrutura se adapta.
A organização tática é fundamental. Um time deve atacar de forma que já esteja preparado para se defender sem perder a estrutura, garantindo que os jogadores corram o mínimo necessário para executar suas ações. Ninguém pode se movimentar aleatoriamente sem saber o que fazer, pois isso desperdiça energia. Com a bola, o jogador tem liberdade para improvisar, mas sem a bola ele deve seguir um roteiro rígido, quase como um texto de Shakespeare, respeitando a estrutura que o treinador quer implementar.
Agora, jogar no contra-ataque não exige essa abstração de coordenar jogadores para atacar. Basta fechar os espaços do adversário, compactar a defesa e esperar o momento certo para sair rápido no contra-golpe. Meu irmão, por exemplo, adotava essa estratégia. Eu brincava que o jogo dele era uma versão tática do poema em Linha Reta, de Pessoa — ele roubava a bola e conectava diretamente com o atacante, tentando surpreender minha defesa adiantada. Muitas vezes, ele passava 85 minutos sendo massacrado, mas conseguia vencer com uma única chance bem aproveitada.
Eu, por outro lado, utilizava seis táticas diferentes ao longo da partida, ajustando cada uma conforme a posição da bola, como se estivesse trocando marchas em um carro. Esse estilo exige muito domínio técnico e coordenação motora, mas, com o tempo, os ajustes se tornam automáticos. O resultado? Um futebol mais criativo e imprevisível — reflexo de mim mesmo!
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A Sabedoria do Treinador
E para aqueles que ainda acham que só entende de futebol quem já foi jogador, deixo aqui a frase do lendário técnico italiano Arrigo Sacchi, que revolucionou o Milan: “O jóquei não precisa ter sido um cavalo pra ser cavaleiro!”