A CULTURA “WOKE” NO RECANTO DAS LETRAS
A Trama do Pensamento “Woke”
Tal como um justiceiro, como Batman, que vê o sinal de alerta de Gotham City cortando os céus, indicando que o inimigo está à espreita, assim fui chamado para defender o recanto das letras e do conhecimento contra o obscurantismo e o negacionismo. O desvirtuamento de conceitos históricos fundamentais e de figuras ilustres se tornou uma estratégia recorrente da extrema direita ignorante, que reduz a complexidade do mundo a slogans fáceis de digerir, mas desprovidos de qualquer embasamento intelectual. O direito dos negros, das mulheres e das minorias, que deveria ser um consenso civilizatório, passou a ser tratado com desdém, enquanto o termo “woke” – que nasceu como um chamado à consciência social contra injustiças raciais – foi sequestrado e transformado em espantalho para invalidar debates sérios sobre desigualdade e justiça social.
Da mesma forma, intelectuais como Paulo Freire e os pensadores da Escola de Frankfurt são alvos sistemáticos dessa cruzada anti-intelectual, demonizados por aqueles que jamais os leram, mas que repetem bordões como se fossem revelações divinas.
O Chamado à Defesa da Cultura
Prometi a mim mesmo que não falaria sobre política ou ideologia, apenas sobre cultura. Mas, neste caso, trata-se de defendê-la. Defender o Iluminismo contra o obscurantismo. E é como diz Al Pacino em dois filmes: como Michael Corleone em O Poderoso Chefão 3, “Quando eu penso que estou fora, eles me puxam de volta”, e como Carlito Brigante em O Pagamento Final (Carlito’s Way), “Pensei que estava fora, mas eles me puxaram de volta”. Pois bem, o dever me chama.
A Batalha pela Verdade no Campo Ideológico
A extrema direita, com sua característica falta de leitura e instrução, percebeu que, para vencer o debate ideológico, precisa superar sua ignorância – não por meio do conhecimento, mas gritando mais alto. Se a esquerda, geralmente mais letrada, muitas vezes age como um cachorro pequeno que late, mas não morde, a extrema direita resolveu latir mais alto, tornando o debate um teatro de histeria onde a razão é suprimida pela força bruta da repetição. Eles compreenderam que a batalha ideológica se dá pelo controle do discurso – e, como a mídia é um dos principais vetores desse discurso, decidiram combatê-la, rotulando tudo como “narrativa”. Dessa forma, a desigualdade social, o feminicídio e a violência contra as mulheres, assim como as consequências da escravidão ainda visíveis nas favelas e periferias, onde grande parte da população é negra, deixam de ser problemas reais a serem discutidos, combatidos e resolvidos para se tornarem meras questões de “narrativa”. A ideia de “narrativa” torna-se, portanto, uma estratégia covarde no campo da linguagem, adotada pela extrema direita para varrer a sujeira para debaixo do tapete e conservar as coisas como estão, num movimento reacionário.
O Processo de Desinformação e Controle do Discurso
O mecanismo é bem descrito por Giuliano da Empoli em Os Engenheiros do Caos: a extrema direita utiliza a internet como um laboratório de desinformação, espalhando fake news para moldar a linguagem e transformar mentiras em verdades incontestáveis. Trata-se de um processo deliberado de corrosão do pensamento crítico, onde conceitos complexos são banalizados até virarem motivo de escárnio e piada. A estratégia é idêntica à de um lutador de MMA que, ciente de sua deficiência na trocação em pé, derruba o adversário para o chão, apelando para o jogo sujo. Quando a extrema direita percebe que não pode enfrentar o debate no campo da razão, rebaixa-o ao nível do ridículo, tornando impossível qualquer discussão séria.
O Ataque ao Pensamento Crítico e à Razão
Essa dinâmica é brilhantemente antecipada pelos romances distópicos Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell. Em 1984, Orwell apresenta o conceito de duplipensar: a capacidade de aceitar simultaneamente duas ideias contraditórias sem questioná-las, como se ambas fossem verdadeiras. “Guerra é paz”, “liberdade é escravidão”, “ignorância é força”. Esse mecanismo está vivo e operante na retórica da extrema direita contemporânea: cultura é ignorância, pensamento crítico é doutrinação, combate à desigualdade é vitimismo. A inversão da realidade se torna uma ferramenta para subverter a verdade e criar uma versão dos fatos conveniente à manutenção do status quo.
A Transformação do “Woke” em Espantalho
O ataque ao conceito de “woke” segue exatamente essa lógica. O termo, que surgiu como um alerta contra injustiças sociais, foi transformado em um espantalho grotesco, um saco de pancadas onde se amontoam todas as frustrações reacionárias. A crítica à cultura progressista muitas vezes parte de um lugar legítimo – afinal, há excessos e contradições em qualquer movimento –, mas o que se vê na retórica da extrema direita não é uma crítica embasada, e sim um ataque histérico que busca ridicularizar qualquer debate sério sobre desigualdade estrutural. Algumas pautas associadas a ele, como a inclusão de gênero na linguagem e o politicamente correto, acabam se tornando disfunções do movimento, sendo contraproducentes para a causa legítima.
O Legado dos “Woke” na História
A abolição da escravidão, o sufrágio feminino e os direitos civis foram todos impulsionados por pessoas que, em sua época, poderiam ser chamadas de “woke”. Criticá-las sem fundamento é se deixar levar pela emoção.
A Verdadeira Batalha: Ideologia ou Ridicularização?
O objetivo não é argumentar contra o progressismo, mas simplesmente desacreditá-lo pelo escárnio, tornando-o sinônimo de piada, algo pejorativo e xingamento, como era o caso dos comunistas, usados como ofensa no passado. A batalha, portanto, é travada no campo da ideologia e da linguagem.
A Demonização de Teóricos e Pensadores
O mesmo expediente se aplica ao ataque à Escola de Frankfurt. O pensamento de Adorno, Horkheimer e Marcuse não se resume à tolice de que “tudo que existe é falso e o verdadeiro é o que não existe”. Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer alertam para os perigos da razão instrumental, que, em sua busca pela eficiência e pelo progresso técnico, acaba gerando novas formas de dominação. O iluminismo, quando desprovido de autocrítica, transforma-se em um novo mito, e a promessa de liberdade pode facilmente se converter em um instrumento de controle. Reduzir essa análise a uma simples aversão ao conhecimento é não só uma falsificação grosseira da teoria, mas uma demonstração de total desconhecimento da obra.
Paulo Freire e a Autonomia Intelectual
Da mesma forma, Paulo Freire não defende a rejeição do conhecimento formal – ao contrário, ele propõe um aprendizado ativo e crítico, que vá além da mera memorização mecânica. Sua pedagogia não prega rebeldia vazia, mas sim autonomia intelectual. No entanto, ele se tornou o novo Judas do pensamento conservador, um vilão conveniente para aqueles que querem manter o povo em um estado de obediência passiva. Se há problemas na educação brasileira, eles devem ser debatidos com seriedade, e não por meio de ataques vazios a um dos maiores intelectuais da pedagogia mundial.
O Novo Obscurantismo: Uma Guerra Contra o Pensamento
O que vemos hoje é uma guerra contra o pensamento, onde os reacionários, incapazes de vencer no campo da argumentação, recorrem à distorção e ao ataque pessoal. Ao reduzir conceitos complexos a memes e slogans vazios, eles transformam o debate público em um espetáculo grotesco de desinformação. Se há algo realmente “fajuto” na educação e na cultura, é essa incapacidade de compreender a história e o pensamento crítico, substituindo-os por caricaturas e narrativas fantasiosas.
A Verdade e a Resistência ao Obscurantismo
Se o Iluminismo ensinou algo, foi que a verdade não precisa de gritos, mas de razão. E se há algo que deve ser combatido, é esse novo obscurantismo travestido de esperteza, que se julga contestador, mas não passa de um reflexo da própria ignorância.
A Luta pela Cultura e o Papel do Capitalismo
No fim, o que se vê é um embate entre a serpente e o “Deus” capitalista. Assim como a serpente no Gênesis representa o conhecimento que desafia a ordem divina, os teóricos de Frankfurt e outros pensadores críticos são pintados como forças do mal que ameaçam o equilíbrio do mundo. O capitalismo, por sua vez, assume o papel de divindade intocável, cuja bondade e perfeição não podem ser questionadas. E qualquer tentativa de fazer isso é rapidamente esmagada pela patrulha ideológica da extrema direita, que, sob o pretexto de defender a “liberdade”, impõe sua própria censura sobre o pensamento divergente.
O Final da História: A Ignorância é uma Bênção?
No fim das contas, esse não é um debate sobre política, mas sobre cultura – e cultura se defende. Pois, como bem diz um ditado popular, “a ignorância é uma bênção”, mas apenas para aqueles que querem manter os outros ignorantes.