O MUNDO DA “TABACARIA”

Este texto tem inspiração em uma das pessoas que mais admiro e amo na vida. Sem dúvidas, não há a mínima chance de alcançar o brilhantismo do texto original, mas irei dar o meu melhor.

 

Um dos temas centrais do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa, é como, muitas vezes, usamos máscaras sociais para poder conviver em sociedade. Contudo, essas máscaras podem se confundir com quem somos, a ponto de não conseguirmos mais diferenciar nosso próprio eu da persona social que criamos. O poema aborda isso claramente no trecho:

 

“Fiz de mim o que não soube

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.”

 

Nesta passagem, o eu-lírico reflete sobre como permitiu que sua identidade fosse moldada por papéis sociais que ele assumiu, mas que não representavam verdadeiramente quem ele era. Ele se perdeu nesses papéis e, ao tentar se libertar, percebeu que já não era capaz de separar sua essência da máscara que vestia.

 

O poema também aborda, em sua primeira estrofe, como o ser humano pode, por vezes, fazer de si mesmo e das circunstâncias em que vive algo indesejável, tanto para ele quanto para a sociedade. A frase “Fiz de mim o que não soube” pode ser interpretada de duas maneiras principais:

 

1. Ele fez de si aquilo que os outros esperavam, não o que realmente desejava, ao usar máscaras sociais que, com o tempo, tornaram-se inseparáveis de sua identidade.

 

2. Ele não soube aproveitar as oportunidades de sua vida, fazendo dela algo indesejável para si e para a sociedade, se decepcionando consigo mesmo, com o que ele se tornou. E não agiu de acordo com sua essência, sua singularidade, sua vontade de potência única, isto é, a individualidade exclusiva de cada ser vivo e sua tendência para buscar cada vez mais potência, para usar um conceito de Nietzsche.

 

Ambas as interpretações me parecem plausíveis e refletem o caráter ambíguo e universal do poema.

 

Essa reflexão sobre máscaras sociais e a fragmentação da identidade dialoga diretamente com o filme Persona, de Ingmar Bergman, que, em Portugal, é até chamado de Máscara. O filme explora a fusão e a tensão entre duas personagens, Elisabet e Alma, e mostra como as máscaras que usamos para nos relacionar com os outros podem acabar definindo quem somos.

 

No filme, as máscaras cotidianas aparecem na forma dos papéis que as personagens desempenham: Elisabet, uma atriz que decide se calar, rejeita conscientemente as máscaras que vestiu em sua carreira e vida pública, enquanto Alma, a enfermeira, aparenta inicialmente não usar máscaras, mas ao longo da história revela uma série de conflitos e inseguranças que também são formas de ocultar seu verdadeiro eu. A fusão entre as duas personagens ao longo da narrativa reflete como as identidades podem se sobrepor, levando à perda dos limites entre quem somos de fato e quem nos tornamos por causa das expectativas alheias.

 

Essa fusão dialoga com o poema Tabacaria no sentido de que ambos mostram como as máscaras sociais — criadas para sobreviver ou se adaptar à sociedade — podem levar à alienação. Assim como o eu-lírico de Pessoa percebe tarde demais que a máscara “estava pegada à cara”, Alma e Elisabet vivenciam uma confusão similar, onde os papéis e identidades se misturam a ponto de não se saber mais onde termina uma e começa a outra. Tanto no filme quanto no poema, o cotidiano se torna um palco onde essas máscaras são necessárias, mas também perigosas, pois podem se tornar inescapáveis.

 

Tanto no poema quanto no filme, somos confrontados com a complexidade da condição humana: a necessidade de construir máscaras para viver em sociedade e, ao mesmo tempo, o perigo de perdermos nossa essência ao nos identificarmos demais com essas máscaras. Ambos são um convite para refletirmos sobre quem realmente somos por trás das personas e máscaras que vestimos.

 

Dave Le Dave II
Enviado por Dave Le Dave II em 14/12/2024
Reeditado em 15/12/2024
Código do texto: T8219363
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