EDITORIAL: O HINO DE PATOS E A CIDADE QUE QUEREMOS*

Nos aproximamos de mais um aniversário de Patos, que completa no dia 24 de outubro, 121 anos de elevação de vila à categoria de cidade. Ao analisarmos o hino "Patos te amo Patos" que ecoa nas celebrações oficiais, interpretado, originalmente, por Amaury de Carvalho, pergunto: será que ele ainda guarda alguma referência que possamos considerar como valor social e histórico?. Faço um convite a refletirmos juntos sobre esse passado "glorioso" e as "belezas" que tanto exaltamos nessa letra. Ao mergulharmos profundamente na composição poderemos responder se ela ainda reflete a realidade de hoje ou se é apenas uma narrativa repleta de nostalgia e idealização.

“Num cantinho da minha pátria amada e dentro do meu coração, está minha terra adorada de sonhos e de tradições” – logo nos primeiros versos, vemos uma exaltação quase divina à cidade, como se o simples fato de viver nela garantisse uma sensação de perfeição e pertencimento absoluto. A imagem de uma terra “tão boa que não há outra igual no mundo” parece pintar um cenário utópico, ignorando as complexidades que coexistem com essa tradição. O que dizer dos desafios sociais, da desigualdade que se faz presente, do acesso limitado à educação e saúde em alguns bairros? É fundamental questionarmos essa visão idílica e pensar a cidade não apenas como um “lugar de sonhos e tradições”, mas também como um espaço de contrastes, onde o progresso muitas vezes caminha ao lado de problemas históricos ainda não resolvidos.

A Ausência dos "Patos" e a Perda da Identidade

A origem do nome “Patos” é referida de maneira poética, remetendo à tranquilidade de uma lagoa habitada por patos que, em tempos passados, caracterizavam a paisagem que deu origem à cidade. Mas, curiosamente, o próprio hino reconhece: “os patos fugiram de lá”. Talvez, sem querer, uma metáfora poderosa para o que se perdeu ao longo do tempo. O progresso, que trouxe desenvolvimento e novas oportunidades, também trouxe uma ruptura com a natureza e a história local. Será que conseguimos equilibrar essa balança? O que mais estamos perdendo na corrida pelo crescimento econômico e urbano?

A Riqueza Oculta: Mito ou Realidade?

Um dos trechos mais marcantes do hino fala sobre uma riqueza oculta: “a riqueza escondida no teu seio não pode ninguém calcular”. Embora pareça se referir ao potencial natural ou cultural da cidade, essa riqueza, na prática, ou não foi explorada ou já não existe mais, como a extração de minérios e o algodão, carro-chefe de um comércio que um dia fora pujante. O que vemos hoje em dia é uma estrutura onde boa parte da população luta por melhores condições de vida. Essa "riqueza" escondida parece mais um ideal distante, sem reflexos palpáveis no cotidiano de muitos. Quanto a uma possível "riqueza" cultural, veremos logo a seguir:

A Arte como Ponto de Apoio: Será Mesmo?

O hino também exalta a cidade como um “esteio de artistas”, sugerindo que a cultura e a arte são pilares de nossa identidade. De fato, Patos tem uma rica tradição artística e cultural, mas será que estamos realmente sustentando e incentivando esse aspecto? Quantos artistas locais, músicos, poetas, pintores, realmente têm espaço para se expressar e recursos para desenvolver sua arte? A arte, que deveria ser o esteio, muitas vezes é relegada a segundo plano, com falta de incentivo e visibilidade. Patos é uma cidade de artistas, mas será que eles estão recebendo o apoio necessário para florescer e fazer jus a essa frase do hino?

A Alvorada dos Campos: O Que Reflete?

O trecho "Nos seus campos é bonita a alvorada dos rios que correm por lá" evoca uma imagem poética de uma cidade em sintonia com a natureza, onde os rios e o campo fazem parte de uma paisagem tranquila e próspera. No entanto, ao olhar mais de perto, vemos que a relação da cidade com o meio ambiente está longe de ser harmoniosa. A degradação dos rios, a exemplo do rio Espinharas, e a pressão do crescimento urbano sobre as áreas naturais não podem ser ignoradas. A alvorada que o hino celebra talvez não seja tão bonita para quem vê os recursos naturais serem explorados sem o devido cuidado. A natureza, tão importante para a história e a identidade de Patos, principalmente por nossas condições climáticas, precisa ser preservada, e não apenas exaltada em versos.

A Redução das Mulheres à Estética

Outro ponto que merece reflexão é a forma como o hino se refere às mulheres de Patos. “São lindas as morenas de lá” e “As loiras meninas douradas derramam perfume no andar”. Reduzir a presença feminina a estereótipos de beleza ignora a contribuição ativa das mulheres na construção da cidade. Em tempos em que a luta por igualdade de gênero se intensifica, como podemos continuar exaltando a mulher apenas por sua aparência física, esquecendo de suas capacidades, conquistas e lutas?

Progresso e a Perda de Tradições

O hino sugere que “o progresso foi chegando de repente”, quase como um acontecimento inevitável. Mas o progresso sempre vem acompanhado de escolhas. E com essas escolhas, deixamos para trás aspectos da cultura e da identidade da cidade. Será que o desenvolvimento urbano e as novas construções refletem a história e as tradições de Patos? Qual o monumento que ajuda a contar a nossa história? Será que não estamos nos distanciando cada vez mais de quem realmente somos, enquanto tentamos nos moldar aos padrões das grandes cidades?

Os "Filhos Brilhantes" e as Realidades Opostas

A menção aos filhos de Patos que, em "recantos distantes", levam o nome da cidade, é uma celebração das conquistas individuais. Porém, é importante lembrar que nem todos têm ou tiveram as mesmas oportunidades. Os feitos brilhantes, por vezes, são privilégio de poucos. A cidade oferece, de fato, condições para que todos os seus habitantes possam realizar seus sonhos e contribuir para o desenvolvimento local? Ou estamos perpetuando uma estrutura que favorece apenas alguns, enquanto muitos lutam para sobreviver em condições adversas?

Reflexão Final

Desconstruir o hino de Patos-PB não é negar o amor à cidade, mas sim olhar para ela com olhos críticos, reconhecendo suas belezas, mas também seus desafios. Amá-la é desejar vê-la crescer de maneira justa e equilibrada, onde todos os seus filhos – e filhas, de todas as cores e condições – tenham a chance de viver em uma cidade que acolhe e oferece oportunidades iguais a todos. Mas para isso, é necessário que encaremos, de frente, as questões que realmente importam - mesmo que essa cidade fique "num cantinho da minha pátria amada" ou "dentro do meu coração".

Misael Nobrega
Enviado por Misael Nobrega em 22/10/2024
Código do texto: T8179821
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