Arrependimento
Pressa impensada. Sofreguidão de abstinência. Quer o vazio, um abismo para ser preenchido com o tudo. Puro cosmos de deleite, contemplação do belo, divino, infinito e eterno cabendo num átomo de segundo. Esfuzia-se a alma diante do esvaecimento do corpo. Aos borbotões jorra o prazer esquecido do sofrimento. É a morte que vive, revive, transfigura-se. Cada membro do corpo pode sentir e tocar a felicidade total. A alma se entrega ao inefável. Morre a lógica, vence a natureza. Os princípios se calam. Os sistemas se esfumam nas contradições. As teorias agonizam perante o viver da vida. Tudo rebrota e floresce. O universo se abraça à felicidade de provar o inalcançável. Quer-se escuridão porque a luz pode findar num segundo aquele momento desejado e repelido. Ele desceu na esteira do raio e transformou-se em leito desnudo. Como é doce aquele morrer porque é por ele que se sente a vida palpitar no gemido do sofrimento gozoso. Por que não queria? Por que proibia? Devia ser alguém ciumento que queria guardar só para si toda a beleza da bondade. Que importa o castigo se a felicidade supera todo o sofrimento? Por que não fazer o mal se ele é tão doce à alma? Ela fica vazia e repleta, ofegante e em repouso. Ela possui tudo e quereria não ter nada. Esta morte é o mais inebriante dos vinhos para a alma.
A mente está vazia de medo. Quer apenas aquele momento, único, esperado e amedrontador. A alma queria e não queria. O corpo queria. A alma concordada e o corpo desejoso venceram a alma que não queria. Os dois, vitoriosos, se congratulam e festejam a vitória sobre a proibição. A provação passou. Agora é a hora da recompensa e do regozijo.
Por que se chama de queda esta suprema vitória da natureza? A taça espumante e transbordante chegou aos lábios sôfregos. Sorvida, entrou pelas moléculas do corpo fazendo-as estremecerem. Os instintos satisfeitos aquietaram a alma inquieta. Ela precisa de um lugar para repousar. Sua quietude está no corpo que carrega como um casulo. Em vão se debate na busca de fantasias. A felicidade está com ela, basta dá-la. A natureza não deixou longe o que a alma e o corpo precisam. Depositou neles. Basta apanhá-los. A alma inquieta procurando onde repousar encontra a paz no corpo.
Mas por que não é eterno este momento eterno? Por que se tem de voltar aos princípios, sistemas, razão? Por que se achou melhor procurar aquilo que se tem? Por que será melhor a lógica da razão do que a do coração?