ENTRE O BEM E O MAL

 

O Super-Homem

 

Shimon Ben Yochai, o codificador da Cabala diz que “o Zhoar reflete a Luz da Mãe Suprema (a Schekináh) que é a fonte da penitência. Aqueles que estudam o Zhoar provarão da Árvore da Vida e não estarão mais sujeitos à provação. Então Israel (e a humanidade através dela), não dependerá mais da Árvore do conhecimento do bem e do mal e não terá mais que submeter-se às leis do” deves ou não deves fazer”. [1]

A referência ao poder/dever, que na sua origem é um tema cabalístico que se refere ao livre arbítrio concedido ao homem, foi aproveitado por Nietszche no seu discurso sobre o super-homem, constante da sua obra mais conhecida “Assim Falava Zaratustra”. Para o controvertido filósofo alemão, o sentimento do dever, para ele simbolizado na ética judaico-cristã, inoculado no espirito do homem, constitui uma limitação ao seu poder. Como ele diz, textualmente, em uma de suas obras, "O homem, assenhoreando-se das forças da natureza, o homem, assenhoreando-se de sua própria selvageria e de seus instintos desencadeados (os desejos aprenderam a obedecer, a serem úteis) - o homem comparado a um pré-homem, representa enorme soma de potência e não um plus de felicidade! Como pretender que ele tenha aspirado à felicidade?". (Vontade de Potência, Livro Terceiro, p. 305, segunda parte.)

Na sua obra mais famosa encontramos ainda os seguintes dizeres, pronunciados pela boca do filósofo Zaratustra: “Quem é o grande dragão a que o espírito não quer chamar Deus nem Senhor? “Você deve”: assim se chama o grande dragão; porém, o espírito do dragão diz: “eu quero”.

O “tu deves” está plantado no seu caminho, como animal escamoso de fulgor áureo; e em cada uma de suas escamas brilha em douradas letras: “Tu deves”!

Valores milenários cintilam nessas escamas, e o mais poderoso dos dragões assim fala: “Em mim cintila o valor de todas as coisas”!

Meus irmãos, que falta faz o valor em todas as coisas! Todos os valores já criados foram, e eu sou todos eles. Para o futuro não deverá existir o “eu quero”. Assim disse o dragão. Meus irmãos, que falta faz o leão ao espírito? Não bastará a besta de carga que renuncia e cultua?

                                                                                        

Criar novos valores é coisa que o leão ainda não consegue: contudo, criar uma liberdade para a nova criação, isso o consegue o poder do leão.” [2]

O dragão a que Nietzsche se refere é o sentimento de dever inoculado no espirito do homem ocidental pela teologia judaico-cristã. É um sentimento que nele pesa como um fardo que o limita e o conforma, tolhendo a sua liberdade de ser. O leão é a vontade do espírito do homem de rebelar-se contra essa conformidade, mas ele não consegue justamente pelo fato do seu espírito já estar conformado a essa cultura. Por isso ele só pode inspirar as novas gerações a fazê-lo e essa era sua esperança. A se ver pelo aconteceu na Alemanha nos cinquenta anos após a publicação das obras de Nietzsche, os alemães absorveram muito bem essas ideias.

 

Nietszche, cabalista disfarçado

 

Não é segredo para ninguém que Nietzsche era antissemita e ferrenho inimigo da cultura judaico-cristã, que ele tachava de pobreza e conformidade lastimosa. Na linguagem tonitruante que usou para escrever o “Assim Falava Zaratustra” ele anunciou a morte de Deus (o Deus judaico cristão) e o despertar do homem-deus, o super-homem, galante guerreiro, libertado da moral tacanha e servil do indivíduo contaminado pelas crenças de um povo que durante toda a sua história sempre foi escravo de um Deus ciumento, injusto e cruel, que ao invés de fazer dos seus escolhidos um modelo de felicidade, força e virtude, só o submeteu a um rol imenso de desgraças, servidão e agruras.

Algumas das suas diatribes contra a cultura judaico-cristã foram usadas pelos nazistas para justificar as atrocidades que eles cometeram contra os judeus e os outros povos que eles julgavam inferiores, mas essa deturpação das ideias dele não deve ser levada em conta quando se julga o valor filosófico delas e se busca a verdadeira origem desse pensamento, que na verdade, por mais paradoxal que seja, encontra ecos no próprio pensamento judeu, expresso na tradição da Cabalá. [3]

Isso porque o Zaratustra de Nietzsche é um profeta que contesta Moisés e todos os profetas da Bíblia em nome de Zeus e dos deuses olímpicos da Grécia e Roma. É, pois, um contraponto ao pensamento judaico-cristão, que na sua opinião, inocula no homem um comportamento de limitação e servilismo.

Na ótica do irascível filósofo alemão, a civilização greco-romana forjou grandes homens e magníficos heróis, mas foram vencidos por Moisés e seus pastores de ovelhas e finalmente subjugados por um carpinteiro pregador de uma filosofia que só servia para fazer escravos.

Dessa forma, o “Assim Falava Zaratustra”, na verdade, acaba sendo uma espécie de Zhoar produzido por um filósofo antissemita para contrastar a grande obra dos rabinos judeus sefardistas que desenvolveram a Cabalá, para justificar, com visões míticas e fantasmagóricas, o conteúdo da sua doutrina de conformidade lastimosa. Se o contraditório filósofo alemão não teve essa intenção, pelo menos uma coisa a nós parece bastante clara: “Assim Falava Zaratustra” foi inspirado no Zhoar. A sua composição, abusiva em termos de imagens psicodélicas e permeada de simbolismos, metáforas e alusões a temas tão caros a místicos e taumaturgos, lembra demais o Livro do Esplendor para que se possa negar que uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Dessa forma, com as mesmas armas – o simbolismo e a visão gestaltiana de um mundo formatado pela mente humana– ele contrasta as visões bíblicas de um mundo criado por um Deus patriarcal e tirano, que submete os seus súditos à uma escravidão espiritual degradante, enganando-os com a promessa de uma felicidade futura em um mundo que não existe. Ao invés disso, ele cria um mundo construído pelo próprio homem, na própria terra, onde o ser humano, agora transformado em um super-homem, “mata Deus” e se torna, ele mesmo senhor da terra.

( Do Livvro a Estrela Flamejante, no prelo para publicação


[1] Schekináh é definida como a “presença” da divindade no mundo. Essa presença é sempre referida no feminino, simbolizando a mulher que “dá à luz” à vida humana. Em analogia com a história de Israel, a própria nação israelense seria a Schekináh, aquela que levaria a Luz da Torá à humanidade, para que ela alcançasse a sua redenção.

[2] Assim Falava Zaratustra- Ed. Pensamento,

[3] Na imagem o filósofo Friederich Nietszche- fonte: Enciclopédia Barsa.