Promessa de ser ao infinito
Introdução
Esta reflexão parte de dois relatos míticos para examinar a tessitura semântica da promessa. A seguir, alguns aspectos teóricos da promessa são discutidos. A partir de um caso clínico, investigam-se os processos mentais pelos quais talentos do sujeito são sequestrados de si a partir de sua relação com suas figuras originárias de afeto. Elas pouco o investiram de amor, de modo que ele vive a impossibilidade de assumir seu desejo. Enreda-se em meio à eterna promessa de ser a si mesmo.
Passa-se aos dois relatos míticos.
De acordo com a tradição judaico-cristã, os hebreus se moveram durante quarenta anos pelo deserto para adentrar a Terra Prometida.
No plano da mitologia grega, Apolo concede o dom da profecia a Cassandra. Contudo, ele retira o crédito público quanto a seu dom, quando ela se recusa a dormir com ele.
Nos interstícios desses relatos míticos, faz-se longa a peregrinação humana compassada ao som de promessas e profecias.
Configura-se, assim, o absurdo da longa espera e do imenso esforço para que se efetive a satisfação do desejo, no primeiro relato. Ressalta-se o absurdo da demanda de investimento libidinal do outro, para que um talento do sujeito se consubstancie em realização de seu desejo, no segundo.
Situando-se a promessa na arena psicanalítica, ela evoca a satisfação do desejo. Em meio aos meandros da constituição do sujeito, uma formação desviante do ego promove o quase eterno adiamento do desfrute de seus talentos.
Para pensar esse processo, parte-se das concepções de dois autores,
Quanto a isso, Freud (1911) diz que, sob a égide do princípio do prazer, o aparelho psíquico visa eliminar a tensão e obter prazer, mediante a descarga imediata dos impulsos. Há um refinamento psíquico quando ele adia a realização de impulsos, atendendo-os a posteriori – de modo mais organizado e num momento mais adequado − sob a regência do princípio da realidade. Supera, assim, a busca de pronta satisfação dos impulsos. Freud (1915b) postula, ainda, que o ego introjeta partes prazerosas do mundo externo, assimilando-as como suas e projeta partes egóicas desprazerosas para o mundo externo, percebendo-as como hostis. A fronteira entre ego e objeto pode perder seu contorno definido, sendo que o objeto se torna representante do mundo externo ‘mau’. Pois, na formação do ego, a mediação do objeto é central para satisfazer as demandas do sujeito.
Para Herrmann (2001), a partir das necessidades biológicas do cerco fisiológico do sujeito, passa-se à dimensão do desejo – que se refere às representações de identidade.
Com base no diálogo com esses conceitos, propõem-se certas ideias acerca da promessa de ser.
Em alguns casos, a satisfação do desejo do sujeito pode sofrer uma espécie de estiramento em função da relação com o objeto primário, que o desvaloriza. A partir disso, um carimbo narcísico-relacional distorcido é impresso em sua realização. Quando da passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade, uma brecha narcísico-relacional se articula à satisfação desse desejo.
Esta fenda narcísico-relacional é garimpada a partir do processo analítico. O sujeito vivencia uma protelação quase eterna de satisfação de seu desejo, posicionando-se como mera promessa de ser. Suas potencialidades, necessárias para dar corpo ao seu desejo, são mantidas em inércia. A integração de seus aspectos ‘bons’ fica num estado de suspensão, visto serem vazados para o objeto idealizado. Desse modo, o sujeito como promessa de ser se entrelaça ao objeto idealizado, dado que representações de seu valor estão sequestradas dele e depositadas nesse outro inalcançável. Ela constitui o polo idealizado da fenda narcísico-relacional do sujeito.
O sujeito da promessa está inserido numa subtração ontológica, operação simbólico-emocional na qual o mais (soma de suas potencialidades) se verte em menos (subtração dessas possibilidades). O menos remete ao vazamento de representações de seu valor para o outro. Na fonte deste vazamento, o valor que ele deveria dirigir a si sofre um desvio, de modo que o resgate das representações de seu valor encontra uma superfície refratária, na análise. Quando interpretada a sobrecarga de valor do objeto, novamente o sujeito o volta para ele. Pois, o sujeito disfarça a exuberância do seu desejo mediante sua opacificação e a verte na superlativação/ quantum de valor acentuado desse objeto. Ele concentra valor de perfeição − depositário de seus ideais de ego. Superando seu valor ‘de menos’, o resgate de si permite que o ‘demais’ retorne a ele.
O caso clínico
Uma senhora casada tem três filhos. A única filha biológica é a segunda, enquanto o primeiro e a terceira são adotivos.
Em seu panteão familiar, sua irmã mais velha era a artista glamourosa, bem sucedida, moderna e destinada a ser importante: a mais valorizada pela mãe. Quando adulta, faz exposições de arte no exterior. Sua irmã mais nova era a bonita, feminina e elegante. Ainda segundo sua mãe, a paciente era a filha boazinha, feia, gorda e pouco aplicada aos estudos, ainda que acordasse às 5:30 horas para estudar, enquanto sua mãe dormia. Assim, ela se sentia a filha adotiva. Seu pai era maltratado e humilhado por sua mãe.
Do destaque narcísico-representacional dado as suas irmãs pela mãe, derivam as inibições da paciente. Esta tem pendores artísticos que incluem a pintura de quadros e a confecção de tapeçarias e cerâmicas – áreas não dominadas pela irmã mais velha.
Quando adulta, o foco maior de sua dor reside na relação com sua filha adotiva. Esta concentra diferentes locus identificatórios da família originária da paciente. Eles incluem a si, a irmã promissora, a irmã bonita e o pai. Desse modo, a garota era a excelsa depositária da generosidade da paciente, incomensurável cornucópia de amor e doação. Contraposição à sua mãe, sua generosidade era esbanjada com ela. Contudo, constituia um roubo contra si mesma.
Espoliada por sua mãe/irmã mais velha, aceita as reiteradas trocas de parceiras do marido. Rouba-se ainda mais, ao avalizar tais roubos perpetrados contra si. Incitada por ele a buscar outros homens, ela não gostou de tê-lo feito. Com isso, roubou-se em seus desejos românticos. Assim, outro homem ocupa o lugar de (im)possível par romântico, pois ela não quer que a relação resvale para sexo tão somente. Na esteira dos roubos que atravessam sua vida, rouba-se quando se representa como a menos dotada como artista, a menos bonita e a menos competente para ganhar dinheiro dentre as irmãs. Rouba, outrossim, de si mesma o lugar de dona da casa quando deixa suas filhas usurparem seu espaço.
Discussão
Na sequência das sessões de sua análise, ser a lagarta preta, feia e sufocada, bem como ser a lagarta verde e um pouco maior antecederam ser princesa. Ser a lagarta verde e um pouco maior suscitou, na analista, uma associação com o bicho da seda que, no casulo, produz seda: suas tapeçarias, pinturas e cerâmicas. Assim, suas pinturas vêm sendo completadas e emolduradas, mas ainda não podem ser expostas para o mundo – sítio insuperável da irmã mais velha.
Em meio a isso, delineiam-se várias fantasias relativas à princesa adormecida que ela traz dentro de si. Aponta seu desejo de que um príncipe arcasse com o ‘e foram felizes para sempre’ − lugar fantástico impossível de ser ocupado pelo marido. No entanto, essas fantasias abrem para novas representações de si: ser bela, elegante e feminina – locus simbólico da irmã mais nova. Porém, a representação de ser princesa não pôde ser trabalhada numa sessão, porque uma barreira mental lhe foi contraposta.
Dentre as representações de seu desejo, encontram-se: ser absolutamente incompetente quanto a ser uma artista renomada e glamurosa e, ainda, ser muito difícil ser elegante e feminina. O primeiro grupo de representações são mais inacessíveis em termos de integração e mais contra-investidas de ódio por ela, visto que remetem aos aspectos sobrevalorizados pela mãe quanto à filha artista. O segundo grupo é mais acessível à integração na análise – remetendo à irmã mais nova, menos valorizada que a irmã mais velha.
Ser absolutamente incompetente é sua representação-amuleto, que traz em seu bojo, inveja, ódio, desejos de vingança e de destruição. Todavia, ela deseja ser bem sucedida − de forma bastante camuflada – que foi encoberta por ser a melhor mãe, ter o melhor marido e ter o casamento mais sólido e longo, dentre as irmãs. O trabalho analítico com ser bem sucedida trouxe muitas vivências de ódio, horror e caos mental. No entanto, disso dependia a integração de seus dons.
Há uma desproporção entre as baixas valências de amor em seu desejo e as altas valências de amor no objeto idealizado. Nessa desproporção, enraízam-se vergonha, culpa e horror. Sua vergonha esconde seu desejo de assumir atribuições legadas ao objeto idealizado – ser glamourosa, ser renomada, ser importante e ser existente. Seu desejo volta-se em direção ao sujeito nessa negação de si na ligação com o objeto. Sua culpa se baseia em seu ódio ao objeto/irmã artista, encoberto por sua superlativação. A vergonha e a culpa são suscitadas, quando a analista aponta seus dons e capacidades. Seu horror a si mesma surge em: ser uma exceção monstruosa e disforme, ser pária, ser um aleijão: ser adotiva, abortada e incompetente em termos de se destacar. Vergonha, culpa e horror compõem a gama de afetos que bloqueiam seu desejo, mas protegem-na contra o ódio − gerador de maior caos mental.
A partir disso, cabe pensar o processo pelo qual potencialidades e dons da paciente são colocados à parte de seus recursos mentais, impedindo a realização de seu desejo no mundo.
Compondo uma fissura narcísico-relacional, seu amor exacerbado ao objeto idealizado demarca um vazamento do eu, que se desvela em roubo instituído contra si. A referência de amor a si mesma é representada pelo vazio e pelo abismo. O abismo redunda em queda abrupta e leva à morte. O amor a si é representado, ainda, por paredes, sendo que, ao transpor uma delas, outra se apresenta à paciente. Elas são metáfora de uma superfície refratária à mudança psíquica.
Alto-relevo de sua fenda narcísico-relacional, uma entidade imaginária intermediária entre si e o objeto idealizado aparece na análise. A paciente adere a ela, para não tornar conscientes representações e emoções violentas – haja vista seu desejo de ser uma grande artista e seu ódio ao seu desejo. Ela permuta com essa entidade, representações de si desagradáveis − ser má – para continuar a ser boazinha. Ela lhe permite, de forma compulsiva e reparatória, doar amor em situações, nas quais lhe caberia sentir ódio. Credita a essa entidade, as mudanças efetuadas ao longo da análise. Elas se armazenam num recanto do sistema, de forma que ela perde a noção de autoria de sua vida. Configuram um roubo representacional e afetivo de suas habilidades e conquistas.
Dada essa brecha narcísico-relacional, a mudança das representações de si fica em estado de suspensão, que se estende no tempo do sem fim. A distensão/estiramento do vir-a-ser de novas representações de si impede que seu desejo se efetive. Nesse contínuo adiamento do possível já, demarca-se a negatividade absoluta de não ser e não ter sido quem deseja ser. A promessa adiada de ser a si mesma ronda os limites de representações de prazer, mescladas a desprazer. Funciona como se o prazer pudesse exceder limites de garantia e estabilidade do ego. Pois, o prazer torna-se ameaçador e sua transformação em desprazer mantêm a suspensão da satisfação, caracterizando o domínio da promessa. Outra sequela dessa brecha é sua elasticidade masoquista, pois ela suporta sempre um tanto a mais de sofrimento mental.
Na trama psíquica da paciente, suas representações-amuleto conferem sustentação a seu desejo provisório. São representações de seu eu, para as quais ela deslocou menor gradiente de ódio. Por outro lado, as representações do absoluto são vivenciadas como enlouquecedoras por ela – ser desamparada, ser rejeitada, ser não-amada: foco de seu imenso sofrimento. São bastante defendidas contra sua mudança e demandam interpretações até o final da análise.
As representações-amuleto englobam seu vínculo com o outro e lançam o desfrute de seu desejo, para o infinito. No entanto, caracterizam seu maior disfarce identitário, pois camuflam aspectos de seu desejo mais essencial. Elas constituem o índice maior de seu conflito intra e interpessoal: posicionam-na frente às possibilidades absolutamente fabulosas, mas absolutamente inacessíveis. Deste modo, mesmo quando a análise promove mudanças nessas representações, seu núcleo permanece patológico. Mantêm-na sob a eterna promessa de ser a si mesma. Para superá-las, é preciso elaborar suas fantasias catastróficas de perda de bens preciosos e de vida.
Tais representações patológicas constituem um totem protetor do patrimônio familiar patológico. Desse modo, qualquer tentativa da paciente de escapar a elas significa confrontar-se com o carimbo da doença familiar. Elas mantêm a morte e a doença inscritas na família, visto que elas petrificam o ódio das figuras parentais ao filho.
Na paciente, a força desse ódio gerava pavor e paralisia nela. Da desmontagem da danação dirigida a ela, cabe-lhe se descolar dele. Faz-se mister uma complexa transformação de seus votos de ódio às figuras parentais em votos de amor, perdão e gratidão − que sinalizam seu desprendimento da trama familiar. Esta transformação desdobra-se numa homenagem a essas figuras, desvinculada da submissão a elas. Este ódio, portanto, pode ser dirigido às condições atuais que, verdadeiramente, demandam mudanças.
Considerações finais
O sujeito da promessa consiste num simulacro de sucesso, pois seus talentos e capacidades não podem ser representados e integrados por ele. Assim, ele perpetua seu pacto de ser fracassado, mantendo o modelo familiar de relação: ódio ao filho. Quanto maior a voltagem do ódio às figuras parentais, tanto maior a imantação do objeto idealizado − depositário de seu sucesso. Igualmente, seus objetos primários são promessas não realizadas e não realizadoras de seu próprio desejo. Porém, eles se posicionam como senhores do poder e do prazer quanto a realização do desejo da criança. Supostos senhores do poder, mas não-realizados em seus desejos, eles devem ser superados pelo sujeito da promessa – ao depurar as representações depreciativas projetadas nele.
O sujeito da promessa pode estar paralisado sob rituais de sacrifício, para aplacar o ódio da figura parental. Seus sacrifícios associam-se à promessa de tempos benfazejos quanto a desfrutar seus dons. Todavia, esse desfrute se apresenta sempre próximo, sempre distante. O percurso psíquico entre a proximidade e a distância da satisfação do desejo torna-se incomensurável, demarcando uma brecha temporal ilimitada. Assim, o objeto de seu desejo situa-se a uma distância indescritível, ainda que talentos e habilidades para desfrutá-lo sejam próximos, inerentes ao sujeito. Pois, seu desfrute envolve descumprir regras familiares destrutivas. Descumpri-las é vivido pelo sujeito da promessa como ameaça aterrorizante. É assim que consolidar seu desejo envolve enfrentar maldições lançadas a ele.
A configuração da promessa de ser enreda novas possibilidades da paciente. A dificuldade de acesso às representações concordes ao seu desejo se associa à proibição de desfrutar seus dons. Esta dificuldade estaria fadada a se resolver no fim dos tempos – associada à representação de que catástrofes vão se abater sobre ela. Com isso, o desfrute do objeto de desejo novamente é bloqueado, por ser aterrorizante. Ele mobiliza enorme quantum de ódio – vivido como caos insuportável de ruptura de limites do eu.
No cerne da promessa residem, ainda, representações sobre a imortalidade, encravadas nos subterrâneos do sistema. ‘Não saber ao tempo que se chega’ quando instada a fazer mudanças é uma representação ligada ao tempo da imortalidade. Junto com as representações-amuleto, contribuem para que o desfrute de um dom seja protelado ao máximo. Desse modo, o tempo tende ao infinito, inversamente à finitude temporal do sujeito. A quebra desse adiamento de ser envolve fantasias catastróficas de morte, até que ela contate sua mortalidade. Então, reorganiza sua relação com sua finitude, para realizar seu desejo.
Cabe, por fim, retomar os relatos míticos em sua articulação com o caso clínico examinado. A extensão do tempo analítico envolve um esforço da paciente para se apossar do que lhe é intrínseco. Pois, seus dons foram hipotecados ao objeto idealizado, visto ter sido desinvestida de amor pela figura materna. Para além das profecias maternas, cabe à paciente dar crédito a seus talentos e por fim ao absurdo de seu desejo de ser amada pelo outro para realizar seu desejo de forma fluida. Ao ampliar o enquadre patológico de seu desejo, ele pode tomar posse de si. Desvendar esta complexa teia permite a ela ser a agente efetiva de seu desejo, alçando-se para além do locus identificatório de mera promessa de ser.