Os núcleos traumáticos e sua dissolução gradual numa análise
Introdução
Esse artigo versa sobre a questão dos núcleos traumáticos e sua dissolução gradual numa análise, ao longo do tempo. Sua dissolução significa a mudança da dificuldade de representá-los, passando por suas representações e afetos disruptivos, até se acessar as representações e afetos cada vez mais próximos do desejo autêntico do paciente. Esse trabalho progressivo faz com que seu intenso sofrimento – ligado a esses núcleos – seja atenuado pouco a pouco, de modo que reste tão somente a lembrança do evento traumático, sem seus efeitos prejudiciais – no final da análise.
Visando estudá-los, parte-se de contribuições freudianas sobre o trauma. Aos conceitos do mestre, adicionam-se o aporte teórico de um psicanalista contemporâneo acerca do tema. A seguir, três construtos hipotéticos ajudam a examinar o caso clínico, cujos núcleos traumáticos se associam às vivências com os pais.
Ao investigar os núcleos traumáticos, Freud (1893) aponta uma sequência de traumas parciais e as cadeias de ideias patogênicas. O núcleo patogênico consiste em lembranças de eventos ou sequências de representações, oriundas do inconsciente.
Segundo Herrmann (2001), o paciente sofre de imobilidade psíquica. Condições de seu desenvolvimento paralisaram sua história em torno de um sentido, que se fixou. Os fatos e as relações emocionais que dão forma restritiva ao desejo formam o trauma. Este remete a um nó do desejo, que pode ser desatado na análise.
A presente ideia de que o desejo – em seu movimento de se materializar no mundo – pode apresentar-se como fluxo ou paralisia, devido aos traumas – articula-se a essas ideias do autor. E mais, essa ideia dialoga com o enfoque econômico de Freud (1915) sobre os conteúdos psíquicos investidos com várias intensidades no inconsciente – aplicado aos traumas pela autora.
E, ainda, a concepção da autora de que o ódio gera forte fixação das representações nos núcleos traumáticos faz uma interlocução com conceitos de dois autores. Assim, na relação entre o eu e o mundo externo, Freud (1915) aponta que o ódio antecede o amor na relação de objeto. Quanto ao trauma infantil, Ferenczi (1934) pontua que o ódio constitui um meio de fixação mais forte que o amor.
Posto isso, os conteúdos investidos com grande força no inconsciente remetem ao ódio ao objeto, que transmite o trauma na família. Os núcleos traumáticos são constituídos por representações do desejo – com diferentes quantidades de ódio. Com isso, esses núcleos fazem com que o desejo do adulto seja bloqueado em sua satisfação junto ao outro. Assim, adentra-se no foco do trabalho: os núcleos traumáticos constitutivos do trauma do absoluto, que atinge o sistema das representações.
Os núcleos traumáticos e sua relação com o desejo, o trauma do absoluto e o sistema das representações
Objetivando examinar os núcleos traumáticos mais detidamente, resgatam-se três hipóteses: o desejo, o trauma do absoluto e o sistema representacional.
O trauma do absoluto, com suas representações desfavoráveis ao desejo, prejudica o trabalho representativo do sistema. Desse modo, o desejo do adulto não se realiza, com base nessa herança psíquica de sua família (Almeida, 2003).
Feita esta breve apresentação, retoma-se a questão basilar dessa investigação.
Subjacente à dissolução gradual de seus núcleos traumáticos, a mudança psíquica do trauma do absoluto vincula-se a seus elementos psíquicos, a determinadas operações e a alguns processos no sistema das representações (Almeida, 2010).
Dentre esses elementos, destacam-se suas representações e seus afetos. No tocante às suas operações, há os desdobramentos, as contraposições e as equivalências entre representações. Quanto a seus processos, há o parentesco semântico entre as representações, a atração entre elas e a trama de afetos no sistema.
Na mudança do trauma do absoluto numa análise, verifica-se:
Quanto aos desdobramentos das representações, ser abandonado e ser desamparado se vertem em suas variantes mais brandas: ser solitário e ser independente. Dentre as contraposições de representações, ser ganhador se contrapõe e supera ser perdedor, enquanto ser bem-sucedido supera e confronta ser fracassado. A equivalência semântica entre representações aparece em ser solitário e ser independente, em relação ao outro.
No parentesco semântico entre representações, ser invulnerável – representação do absoluto – constitui um conteúdo de primeiro grau, ser imune exemplifica um de segundo grau e ser blindado, um conteúdo de terceiro grau. Elas indicam uma gradação que vai de uma representação de exceção à condição humana – ser invulnerável – passando por outra típica dessa condição – ser imune; voltando a uma exceção a tal condição – ser blindado (Almeida, 2010).
A atração entre as representações revela a divisão entre representações, no trauma do absoluto. Nessa atração, um grupo de representações é investido por amor e outro grupo é investido ou sobreinvestido por ódio. A partir disso, há uma espécie de atração entre as representações originárias e secundárias. Em torno das representações originárias do absoluto – ser desamparado, ser abandonado – reúnem-se representações secundárias – ser impotente, ser submetido/estar à mercê do outro. Dentre a trama dos afetos desse trauma no sistema, há afetos complementares ao ódio: horror, agonia, desespero, pavor e medo (Almeida, 2010). Quanto a isso, Green (1998) diz que as operações relativas ao afeto são: inversão em seu contrário, formação de afetos opostos ou complementares e sua inibição ou supressão.
Igualmente, ao longo da análise desse trauma, observa-se a divisão entre representações e afetos no sistema, bem como a possibilidade de integrá-los. Nos avanços e retrocessos quanto a essa integração, o ódio ao desejo entra em conflito com o ódio por não poder exercê-lo em sua vida. A resolução desse conflito passa pelo gradual desinvestimento do ódio nas representações do absoluto.
A clínica dos núcleos traumáticos
Nesta seção, as aspas simples destacam as falas da paciente. O itálico visa ressaltar certas representações e suas mudanças numa análise. Os travessões visam tornar mais clara a exposição do caso, para o leitor.
No trabalho com os núcleos traumáticos da paciente no sistema das representações, utilizou-se o método clínico psicanalítico.
No primeiro período da análise, dois núcleos traumáticos remetiam à sua mãe e a seu pai. ‘Minha mãe foi muito importante para eu me tornar quem me tornei. Contudo, ‘é impossível ser amada profundamente por minha mãe’. Junte-se a isso, ‘é impossível ser reconhecida intelectualmente por meu pai’.
Para se examinar sua dissolução gradual nessa segunda etapa da análise, sete sessões são apresentadas em ordem cronológica e diferenciadas entre si por meio de parágrafos. Seus discursos nos dois períodos são comparados, adiante.
‘Tenho intolerância com os defeitos dos outros. Meu marido, minha mãe, minha orientadora – assim como eu – não tem organização e planejamento com dinheiro: gastam mais do que ganham’. Sua intolerância envolve ficar à disposição do outro e se sentir rejeitada por ele. Sua intolerância se desdobra em insensibilidade, pois se sentiu inexistente para seus pais. Porém, ‘como minha mãe não distinguia sonho e realidade, fiz colégio pago e bom’. Isso favoreceu seu otimismo quanto à vida, bem como a fertilidade e a profusão de suas ideias na pós-graduação. Quanto a esta, ela designa certos intelectuais – precursores e realizadores numa grande universidade – como: ‘deuses, visionários capazes de criar, de tirar leite de pedra’. Ela já teve um desejo muito forte de ser alguém assim. Porém, ‘quebrei a cara várias vezes e não consigo’. Com isso, confirmou a frase paterna: ‘você não consegue, não é nada, não vale nada, é uma m...’ Todavia, sua reverência aos ‘deuses’ – diante dos quais se diminui – se opõe a sua veemência diante da traição do marido, na sessão. Além disso, refinanciou seu apartamento a juros baixos, para cobrir as últimas dívidas no cartão. Ela o fez, sem a consciência de seu movimento atual de certo ganho frente às perdas anteriores. Pois, ‘antes, fazia compras por impulso’, que constituía forte movimento de perda.
‘Fui muito amada, muito cuidada, muito paparicada por minha mãe, dentro dos limites de sua compreensão emocional, que não entendia o que sentia’. Num ato falho, diz: ‘se eu engolir minha raiva, eu chego a trezentos quilos’. Ela queria muito agradar os pais e não entrava em contato com o que sentia: engolia sua raiva e comia. Atualmente, tem consciência de suas emoções e não entende mais a desconsideração de sua mãe para com ela como ataque pessoal. ‘Antes, reagia; agora, penso, analiso’.
O chocolate – objeto de prazer – associa-se a ‘poder, sucesso e grande fracasso’. Ele era o substituto da mentira e do segredo – em sua aliança com sua mãe em oposição ao marido/pai da paciente. Ela ganhava chocolates da mãe, para ocultar suas compras descontroladas, do marido. Sendo assim, ‘eu tinha montes de chocolate escondidos’. Com isso, ela engordou, sua mãe lhe deu remédio para emagrecer e pagou-lhe um curso de modelo. Ela foi exuberante aos quinze anos. Atualmente, uma fachada de exuberância, de grandeza e de sucesso – no nível intelectual – oculta um núcleo traumático ligado a vazio e fracasso. No âmbito da exuberância sexual, gosta de roupas caras e exuberantes, mas perde-as, ao engordar. Em certas fotos, ‘estou grande, maior que meu marido, disforme’. Apesar disso, ama e é amada pelo marido, ‘mesmo gorda’. Porém, ‘não aguento mais minha relação com comida e dinheiro’.
‘Tô rodeada de pessoas parecidas comigo’ e ‘não é possível conseguir’. Essa frase incompleta sugere as perguntas: o que? – sucesso e estabilidade – e por quem? – por mim. Outra frase incompleta ‘passar no cartão’ demanda as perguntas: o que? – as despesas do casal – de quem? – no meu. Em ambas as frases, o complemento final que lhes falta é o sujeito responsável/consciente da ação. Remetem a lhe faltar estabilidade financeira embora tenha certo sucesso intelectual.
‘Finalmente, tenho consciência de minha real situação financeira, que eu buscava há muito tempo, mas não vejo saída para meu marido, que gasta mais do que ganha’. Contudo, ele é o provedor quanto às grandes despesas da casa – por imposição dela e por meias-verdades ditas por ela. Associa: ‘homem pode ir embora, abandonar, trair’. Logo, o dinheiro dele serviria para ressarcir possíveis danos futuros, na relação. Contudo, ela se opõe à fala da analista sobre isso: ‘o valor teria que ser bem maior’. Porém, cita sua relação confusa com dinheiro. Assim sendo, sua consciência da escassez de dinheiro causa frustração nela, mas pode ter efeitos benéficos a posteriori.
‘Estou sem ânimo, sem vontade de fazer nada, meu marido bateu o carro e não pagou o seguro’. Seu movimento atual de superar suas perdas com dinheiro se opõe ao dele. Chora muito. ‘Tive que cobrir as despesas dele e estou sem um tostão’. ‘Não consigo parar de comer, tenho vergonha de sair de casa e não tenho saída’. O chocolate é sua única fonte atual de prazer, mas com consequências dolorosas. Ela relembra sua primeira comunhão. Sua sandália era e não era feita para ela, pois ‘meu pai não queria fazer, não tinha retorno e minha mãe mentiu que era para outra pessoa’. ‘Escorreguei, caí, me sujei toda’. Seus pais tinham ido embora, pois brigaram. Sentiu-se abandonada, desamparada, profundamente sozinha, inexistente, impotente e sem lugar no mundo, numa profunda agonia.
Apesar disso, relata certa acolhida para com os pais – ‘eles tiveram uma vida muito pior que a minha’– e com o marido – ‘ele tá desesperado, não sabe o que fazer, não teve orientação intelectual nem emocional’. ‘Não sei o que o chocolate significa, nem é prazeroso, como até me sentir mal’. Ele era o substituto das faltas da menina: ‘era a única coisa que eu tinha’. Por um lado, repudia profundamente essas lembranças – ‘não quero essa dor, posso fazer o que eu quiser, posso comprar o que eu quiser’– por outro, vivencia uma imensa perda emocional. Contudo, parou de gastar dinheiro descontroladamente e ficou ‘orgulhosa disso’. Porém, seu eu se divide entre a grandeza oca da mãe – ‘comprou um lustre caro, apesar da falta de comida’ – e a pobreza/escassez econômica e afetiva do pai –‘não tinha retorno’. Assim, ela vive o descompasso entre sua exuberância/grandeza interior, sua gordura e seu lugar no mundo. Não consegue se dar o que lhe faltou na infância: ‘não sei o que é me dar amor, valor, acolhida’.
Conversou com o marido quanto a continuarem a relação, analisando suas frases. Ela se irrita muito com ele, mas diz: ‘eu não ficaria comigo’. Não tem paciência com ele: ‘explico uma vez pra ele, três vezes para o porteiro e cinquenta vezes pro meu afilhado’. É gentil com o marido na oferta de comida, mas não para procurar objetos. Isso ocorreu depois de descobrir outras mulheres no celular dele. ‘Descobri que ele podia me ferir’. Sentiu-se decepcionada, desconfiada, traída; respondeu com menor oferta de amor. Odeia ficar à disposição e à mercê do outro. ‘Ser acolhida é ser aceita sem restrições’ pelo outro. Porém, ‘me aceitar sem restrições’ oculta o ônus de ela não ter limites e de ele ter que arcar com as consequências negativas disso. Com crianças, dinheiro e comida, ‘suborno, manipulo para ser a mais amada’. Ela os relaciona a coisas ruins. Porém, ao pagar as sessões, é simpática, organizada e bem humorada.
‘Tenho que parar, minha bolsa não foi renovada e não quero ter dívidas’. Por vezes, responde ‘não sei’ quanto a pensar estratégias para buscar algo seguro e real. Trabalhar como autônoma ou numa loja não a motiva, mas não vê saída; quer continuar na vida acadêmica. Precisa cuidar de sua reinserção acadêmica, ao atentar para concursos e escrever artigos. ‘Foi um erro ter escolhido a área de pesquisa que escolhi’, ‘foi um erro ter gasto tanto dinheiro antes’, ‘minha formação e minha idade me prejudicam num concurso’. Não tem mais dívidas no cartão – em parte, repassadas ao marido – mas ‘ele não tá conseguindo pagar as dívidas dele da casa’. Sente-se impotente e incompetente frente ao indeferimento de projetos e bolsas. Porém, precisa perceber suas conquistas reais e efetivas.
Discussão
O uso do itálico serve para ressaltar as representações e afetos da paciente, bem como suas mudanças em análise. As aspas simples designam suas falas.
Nessa reflexão acerca dos núcleos traumáticos presentes no sistema das representações, retoma-se Freud (1893) no que se refere aos traumas parciais em sequência e às cadeias de representações patogênicas.
Na primeira fase da análise da paciente, repetidas vivências traumáticas com as figuras parentais originaram dois núcleos traumáticos e alguns processos mentais. O núcleo traumático de origem materna funda-se em: ser impossível ser amada profundamente por ela, ao passo que o núcleo paterno tem lastro em: ser impossível ser reconhecida intelectualmente por ele. Essas representações do trauma do absoluto recebem uma quantidade desmedida de ódio. Frente a isso, uma defesa psíquica se destaca: a divisão de suas representações (Almeida, 2021).
Na segunda/atual etapa de sua análise, a comparação entre seu discurso nesses dois momentos permite pensar as mudanças em seus núcleos traumáticos – a partir de mudanças em suas representações e afetos no sistema (Almeida, 2011).
Na primeira sessão, enuncia-se a divisão entre aspectos amados e odiados das figuras parentais. A figura materna está dividida entre seus aspectos amorosos – incentivo intelectual-afetivo ao crescimento da filha – e seus aspectos odiados/desestruturantes – seu desejo de grandeza e de objetos caros, sem a devida base financeira para obtê-los. Por seu turno, a figura paterna é referida tão-somente em seus aspectos odiados. No âmbito intelectual, há a divisão entre os ‘deuses’ e ela. Nos ‘deuses’, ela projeta seu ideal de ser uma intelectual bem-sucedida, enquanto nela reside o desejo reprimido, que sofreu rupturas ante à realidade: ‘quebrei a cara várias vezes e não consigo’. Esses limites confirmam o ódio paterno a ela: ‘você não consegue’. Por sua vez, ‘eu não consigo’ – no plano intelectual – se opõe à sua veemência contra a traição do marido – no plano emocional. Apesar disso, há um movimento de ganho em meio às perdas de dinheiro.
Em seu sistema representacional, ser incompetente enquanto intelectual – a partir das referências paternas – se confronta com ser competente, ser vigorosa e ter direitos do ponto de vista emocional e ser competente no plano intelectual – conforme sua mãe. Ser ganhadora se opõe a ser perdedora, ao administrar seu dinheiro. Ser competente, ser vigorosa e ser ganhadora são investidas por amor, ao passo que ser incompetente e ser perdedora são investidas por ódio (Almeida, 2011).
Na segunda sessão, a integração de seus aspectos amorosos e da figura materna é enunciada em: ‘fui muito amada e cuidada por minha mãe, dentro de sua compreensão emocional’. Tem maior consciência de suas emoções, sendo que, antes, engolia sua raiva e comia desesperadamente. Tem maior capacidade de análise.
No sistema, ser impossível ser amada pela genitora, pois ‘minha mãe não consegue amar profundamente’ – período anterior – e ser muito amada por ela – no segundo período – exemplificam a contraposição das representações. Essa sequência retrata uma gradual elaboração de seu sofrimento com aquela figura, nesse aspecto. Ser impossível ser amada consiste numa representação do trauma do absoluto. Entre o intenso ódio investido nessa representação e o amor investido na segunda, há uma considerável mudança psíquica (Almeida, 2011).
Na terceira sessão, aparece a divisão entre a fachada de grandeza/sucesso intelectual e o núcleo traumático de fracasso emocional. O chocolate é o substituto da mentira e do segredo, remetendo a sucesso e grande fracasso. Sua divisão retorna em ‘montes de chocolate’ e falta de comida e, ainda, em ‘montes de chocolate’ e sua falta, para ela ter sucesso ao emagrecer. Há uma divisão de sua exuberância sexual – ‘gosto de roupas caras e exuberantes’, mas ‘estou disforme’– por ter engordado. Em termos de funcionamento do sistema, ainda que se observe uma regressão a estados mentais mais desestruturados do que na segunda sessão, conteúdos relevantes tornam-se conscientes. O chocolate – principal objeto de desejo oral – adquire novos significados, em especial, ser bem-sucedida e ser fracassada, ao consumí-lo em excesso. Ser grande, ser maior que o marido e ser feia ocultam ser gorda. Ademais, a cisão entre a esfera intelectual e a emocional – na primeira sessão – revela-se como cisão na esfera sexual – nessa terceira. Essa cisão entre ser exuberante e ser disforme comporta grande sofrimento mental (Almeida, 2011).
Na quarta sessão, ‘não é possível conseguir’ e ‘passar no cartão’ significam que ela omitiu a si como sujeito da ação – de gastar e ser responsável por arcar com seus gastos. O dinheiro é associado à compensação de possíveis danos futuros, por parte do marido– remontando à sua relação com seu pai. No sistema das representações, a omissão de si como sujeito da ação ressalta sua dificuldade de tornar consciente ser autora dos gastos e ser responsável por suas consequências. Assim, a despeito de ela se representar como consciente de sua situação financeira, suas dívidas diminuíram porque ela repassou o montante maior ao marido. Ser consciente opõe-se a estar inconsciente quanto a isso. Ser controlada quanto a dinheiro encobre ser gastadora, para além de sua realidade. Ser ressarcida por danos futuros contribui para ela ser gastadora (Almeida, 2011).
Na quinta sessão, seu movimento de superar as perdas de dinheiro – repassando as dívidas ao marido – falha de modo evidente. Todavia, sente-se orgulhosa porque parou de gastar ‘sem necessidade’. O chocolate é sua única fonte de prazer, mas ela sofre por ele ser substituto de suas faltas. Estas remetem à figura paterna, para quem o retorno financeiro da sandália parece mais importante que o valor afetivo da filha. Com isso, ela vive uma enorme perda emocional. Há uma cisão entre a grandeza vazia de sua mãe e a escassez econômica- afetiva de seu pai, bem como entre sua acolhida do sofrimento dos pais e sua própria agonia. Ela vive o descompasso entre sua exuberância interior, sua gordura e seu lugar no mundo. Em seu sistema representacional, o chocolate adquire novo sentido: substituto de suas faltas com seu pai. Disso decorre: ser sem valor, ter menos valor que um objeto, não ser reconhecida por ele. Emergem ser abandonada, ser desamparada, ser inexistente e sem um lugar no mundo – representações do trauma do absoluto. Ser um nada para seu pai e ser grande para sua mãe denunciam a cisão de representações no sistema. Ser gorda/ser disforme e sem lugar no mundo retratam seu sofrimento psíquico. Desse modo, a cisão entre ser exuberante e ser bem sucedida na fachada, mas ser fracassada na intimidade – terceira sessão – apresenta outros aspectos – ser gorda, ser disforme – nessa quinta sessão (Almeida, 2011).
A sexta evidencia certa reorganização do sistema – dada sua capacidade de analisar as frases do marido. Contudo, há uma cisão desse processo, pois vivencia muita irritação e impaciência com ele no plano emocional. Dinheiro e comida associam-se ao suborno e à manipulação, dadas suas vivências de ser subornada e ser manipulada por sua mãe. Assim, aparece seu ódio ao ficar à mercê da mãe. No campo representacional, ser analista confronta-se com ser irritada e ser impaciente, que preponderam sobre ser analista com seu marido. Ser subornadora e ser manipuladora no tocante a dinheiro e à comida escondem ser subornada e ser manipulada por sua mãe com relação a ambos. A confusão mental entre dinheiro, comida e falta de limites – período anterior – tem se desdobrado em representações com significados negativos – no atual. Seu sistema investe de ódio estar à mercê de seus pais, nas origens de seu trauma (Almeida, 2011).
Na sétima sessão, estar sem dívidas no cartão retoma seu autoengano. Ter errado em suas escolhas e ser prejudicada implicam estar sem saída. A repetição de ‘não sei’ parece refletir sua dificuldade de se organizar na vida, para além de ser intelectual sem bases econômicas reais e de ser fracassada. Em face de sua dor, ser incompetente e ser fracassada – do ponto de vista intelectual, frente aos limites da realidade – precisam dialogar com ser competente e conquistadora, dados seus ganhos reais e efetivos na vida e na análise (Almeida, 2011).
A paralisia de seu desejo de escrever artigos científicos se deve ao fato de ele estar bloqueado por duas representações do impossível no sistema: saber tudo para ser amada e para ser valorizada intelectualmente pelo pai – de modo a ser bem sucedida no mundo. Além disso, sua paralisia associa-se a ela ser fracassada diante dos colegas da escola e da pós. Seu ódio a si mesma conjuga-se com a ausência de amor e de reconhecimento de seu valor por seu pai. Nessa linha, sua referência à miséria – ‘não quero ter esse pensamento de escassez’ e ‘recorrer a isso é miséria’ – na fase precedente – tornou-se mais específica e delimitada – na atual. Apareceu como ser miserável quanto a amor, carinho, segurança, reconhecimento intelectual e dinheiro, em sua infância. Assim, ser miserável – na primeira etapa – tinha um sentido financeiro, assumindo um sentido emocional e intelectual no presente. A escassez de amor paterno – enquanto limitação de seu pai – fica evidente para ela.
Há mudanças nas operações do sistema, nessa segunda etapa de sua análise.
Dentre os desdobramentos das representações, ser solitária e ser independente são variações atenuadas de ser abandonada e ser desamparada. Com respeito às contraposições das representações, ser competente é antagônica a ser incompetente, ser ganhadora se contrapõe a ser perdedora, ser bem-sucedida confronta ser fracassada e ser exuberante diverge de ser disforme. A equivalência semântica aparece em ser solitária e ser independente, em relação ao outro. Na atração entre as representações, as originárias − ser desamparada e ser abandonada – atraem as secundárias − ser impotente, ser submetida/ estar à mercê. E, mais, sua tessitura afetiva inclui: ódio, horror, agonia e medo (Almeida, 2011).
Dessa forma, revela-se a dissolução gradual dos núcleos traumáticos da paciente.
Considerações finais
Ao longo do trabalho analítico com os núcleos traumáticos do trauma do absoluto, a divisão entre representações e afetos deu lugar à integração de novas representações e afetos ao sistema representacional.
Essa mudança se aplica, em especial, à elaboração do núcleo traumático materno. A sobrecarga de ódio em ser impossível ser amada pela mãe foi dissolvida nessa fase atual, pois a paciente sente ter sido muito amada por ela, investida por amor. A alteração das representações desse núcleo revela a mudança do sobreinvestimento de ódio para o investimento de amor. Contudo, a trama relativa a seu genitor não foi elaborada. Ser impossível ser reconhecida intelectualmente por ele – primeira etapa – desdobrou-se em outras representações do impossível na atual: saber tudo para ser amada e ser valorizada intelectualmente por ele. Tão somente esses impossíveis para seu pai poderiam fazê-la ser bem sucedida no mundo.
Compreende-se, então, que a primeira representação do impossível paterno escondia seu desejo de ser amada por ele. Apesar do sofrimento que esse desejo provoca nela, sua conscientização contribui para sua clareza mental. Contudo, a sobrecarga de ódio em impossível perdura no núcleo traumático paterno, pois ser um nada ainda faz parte de seu acervo de representações. A mudança gradual nos afetos do trauma do absoluto fez com que aparecesse o estado afetivo de agonia, significando muita angústia, tormento interior, tortura mental.
Nessa empreitada, os novos significados de chocolate e dinheiro – ainda que bastante negativos – permitiram diferenciá-los entre si, superando a anterior confusão mental quanto a eles. Comida – termo mais amplo – adquiriu o sentido mais específico de chocolate. Dessa maneira, sua confusão mental foi substituída por maior clareza mental quanto a eles. A representação geral de miséria – na etapa precedente – tornou-se bem mais específica na presente. Aliada à consciência acerca do impossível – associadas ao seu pai – propiciam-lhe, igualmente, maior clareza mental.
Dada a interrupção da análise pela paciente, essas mudanças expõem a dissolução gradual dos núcleos traumáticos do absoluto, mas de forma limitada. Posto isso, sua identificação com seus pais requer ser melhor trabalhada. Assim, seu desejo poderia ser realizado no mundo das relações.
Por fim, o desejo, o absoluto e o sistema representacional são relevantes ao se examinar os núcleos traumáticos e a conjunção das vivências de grandeza, escassez e vazio. Assim, podem suprir brechas nesse campo do conhecimento e contribuir para com sua teoria, em constante construção. Essas hipóteses de trabalho tem sido pertinentes para se pensar a transmissão da vida psíquica na família e a clínica psicanalítica.