As representações do sofrimento psíquico

Introdução

‘Cada pessoa é um abismo.

Dá vertigem olhar dentro delas’.

Freud

‘Estou começando a me convencer que

eu não existo. Eu sou o espaço entre o que eu

gostaria de ser e o que fizeram de mim’.

F. Pessoa

‘Eu não sou como um mundo comum.

Eu vivo noutra dimensão’.

C. Bukowski

Este capítulo tem como objetivo investigar a relação entre algumas representações mentais, o desejo e o sistema representacional. Mais especificamente, examina representações mentais do sofrimento psíquico: ser inexistente, ser um alien, ser um estorvo, ser uma aberração, ser repugnante, ser invisível, entrar em parafuso, estar falido, estar num abismo, fim catastrófico do mundo, dentre outras.

Para estudá-las, aborda-se a clínica extensa, a pesquisa em psicanálise e o pensamento clínico em psicanálise. A seguir, as representações são situadas em relação a terapia cognitivo-comportamental. Então, elas são examinadas com base em conceitos psicanalíticos e em hipóteses heurísticas da autora - desejo e sistema representacional - visando refletir sobre elas (Almeida, 2003).

Na sequência, apresentam-se as representações mentais do sofrimento psíquico do sujeito e as situações em que elas ocorrem. Sua obtenção deriva de três fontes, nas quais algumas representações se repetem: literatura, situações do cotidiano e clínica psicanalítica. Esse material é interpretado mediante o pensamento clínico psicanalítico, incluindo a atenção flutuante da analista descentrada de um foco estabelecido a priori; um enfoque do material, em que emergem conteúdos passíveis de desconstruí-lo e uma reorganização desse material, que permita encontrar seus sentidos inéditos, produzindo novo entendimento sobre ele. Parte da compreensão desse material é ancorada na contratransferência: a maneira como essas representações, seu contexto e sua análise impactaram a pesquisadora.

Posto isso, o fenômeno psíquico caracterizado por essas representações mentais demanda sua inserção no universo da clínica extensa em Psicanálise.

Herrmann (2005) propõe que a clínica extensa se refere à aplicação do método psicanalítico a outros domínios para além do consultório, incluindo o hospital, a clínica universitária e as práticas voltadas à população menos favorecida. Essa clínica compreende a psicanálise da cultura e da sociedade, sua relação com a literatura e as artes, bem como sua integração com o reino das ciências. Além disso, ela designa o movimento pelo qual se estende o método psicanalítico para o mundo e para qualquer produção humana, nos planos individual e social. A clínica padrão toma às regras de setting como responsáveis pela eficácia terapêutica da análise. A clínica padrão é um caso especial da clínica extensa, desenvolvida na análise da cultura e em instituições.

A clínica extensa se alinha à investigação de fenômenos observados fora da situação analítica, igualmente proposta pelos próximos autores.

Figueiredo e Minerbo (2006) afirmam que a pesquisa com o método psicanalítico requer um investigador atuante, de modo que o pesquisador, seus meios de investigação - conceitos, técnicas - e o objeto são transformados. Esse objeto se insere no estatuto ambíguo objetivo-subjetivo - próprio do universo humano. O método psicanalítico permite interpretar fenômenos do universo simbólico humano: fenômenos psíquicos, socioculturais e institucionais contemplados fora da situação analítica. Todavia, não é adequado para descobrir relações de causa e efeito, tampouco para o tratamento estatístico de dados. Por fim, há uma dimensão investigativa e terapêutica nesse tipo de pesquisa.

Na pesquisa com o método psicanalítico, o pensamento clínico se faz valer.

Green (2010) conceitua o pensamento clínico como um modo original e específico de racionalidade surgido da clínica. Envolve a angústia e o sofrimento psíquico, as estratégias para se desvencilhar deles e superá-los. O pensamento clínico reconhece a distância entre a teoria e a prática em psicanálise, pois a teoria não adere integralmente à clínica nem recobre toda a extensão desse campo. Enfim, essa modalidade de pensamento permite forjar conceitos sobre as questões do inconsciente.

Tendo-se em vista que as representações mentais são discutidas em outro approach, apresenta-se um panorama acerca deles.

As representações mentais na teoria e terapia cognitivo-comportamental

Ao se perscrutar a literatura acerca das representações mentais verifica-se que desde a filosofia, passando pela psicologia e pela psicanálise até a contemporânea neurociência, esse conceito tem se revelado bastante relevante para diversos pensadores.

Uma importante contribuição sobre o tema é referenciada a seguir.

Timary, Heenen-Wolff e Philippot (2000) comparam as definições psicanalíticas e cognitivo-comportamentais da representação e suas intervenções terapêuticas. Para ambas, as representações podem ser conscientes e inconscientes.

Em psicanálise, as representações ‘equivocadas’ - realidade psíquica - têm repercussões psicopatológicas. A realidade interna pode ser mais ‘real’ do que a realidade externa. A realidade interna, então, prevalece sobre a realidade externa. A representação original pode ser reprimida ou suprimida, por ser muito dolorosa e intolerável para o ego. Logo, a análise demanda conectar o afeto às suas representações originais. Os deslocamentos de afeto se devem aos conflitos psíquicos e à dificuldade de se representar a situação. Nessa medida, o afeto e o sintoma são explorados até suas origens na análise, pois as representações inconscientes devem se tornar conscientes.

Nas terapias cognitivo-comportamentais, há uma representação implícita e outra explícita na produção e regulação de emoções. A origem do sofrimento psicológico reside na evitação de experiências emocionais extremamente ameaçadoras e aversivas. Na terapia, o enfoque experiencial - aquilo que a pessoa sente - é priorizado em detrimento do analítico - análise das razões e consequências (Timary et all, 2000).

Nos estados psicopatológicos, há tentativas repetidas de processar a informação emocional traumática. Essa descrição é similar a freudiana quanto às neuroses traumáticas, nas quais há tentativas fracassadas e repetidas de associá-las, quando o ego extremamente frágil foi sobrepujado pelo trauma. A recusa das emoções primárias é patogênica e gera emoções secundárias patogênicas. Portanto, as emoções primárias - diretamente evocadas pela situação - não são a raiz do sofrimento psíquico. A terapia visa processar as emoções primárias, limitando a generalização da resposta emocional surgida no contexto inicial (Timary et all, 2000).

As duas abordagens chegam às mesmas conclusões: as falhas da representação geram sofrimento mental; as representações traumáticas favorecem a psicopatologia e a terapia visa diminuir seu impacto patológico. Dentre as diferenças significativas entre elas, há uma lacuna quanto às condições em que elas foram construídas. A psicanálise se baseia em observações feitas por clínicos e a abordagem cognitivo-comportamental é baseada na experimentação empírica. Elas devem preservar seus conceitos, suas características e diferenças metodológicas. No entanto, uma rica e mútua fertilização pode ser obtida pela comunicação entre elas. É desejável comparar as conclusões obtidas por cada uma quanto ao funcionamento mental, as disfunções que geram sintomas e suas propostas terapêuticas (Timary et all, 2000).

O desejo e o sistema das representações - constructos hipotéticos

Dada a proposta de pesquisar a relação entre as representações do sofrimento psíquico, o desejo e o sistema das representações, cabe explicá-los.

O desejo constitui-se como um acervo de representações e de afetos do sujeito, que ordena suas forças psíquicas. Por definição, ele se direciona para os objetos de satisfação e se efetiva junto a seus pares. Em contrapartida, os bloqueios na realização do desejo se assentam em certas representações e afetos, formados na infância. Eles estão associados ao material psíquico ancestral da família (Almeida, 2003; 2005; 2016).

O sistema das representações constitui um dispositivo psíquico do sujeito que representa seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Em seus estratos inconscientes são produzidas as representações do sujeito, de seus objetos e do mundo, bem como seu investimento por afetos. Sua função de representar as vivências do sujeito se interliga ao desejo e aos sistemas representacionais dos objetos primários e ancestrais. Nesse intercâmbio, a criança pode ser designada conscientemente por seus pais como: inteligente ou pateta, princesa ou ogra, especial ou insignificante. Essas representações conscientes se juntam às projeções inconscientes de seus pais sobre ela. Nessa medida, uma criança inteligente e competente pode se sentir e se representar como burra e cretina. Sob essa premissa, ela se comporta aquém de suas habilidades, devido a essas representações, acompanhadas de ódio (Almeida, 2003; 2005; 2016).

O desejo e a criação literária na obra freudiana

Tendo-se por horizonte a relação entre as representações mentais, o desejo e sua aparição na literatura, novas bases teóricas são fornecidas ao leitor.

Freud (1908) escreve que o desejo - força motriz indestrutível - rege a vida psíquica em busca de prazer e de realização. A fantasia consiste na realização de desejos insatisfeitos, como correção da realidade insatisfatória. As fantasias infantis proibidas e os desejos do adulto reprimidos no inconsciente são expressos de forma distorcida.

Sendo assim, no romance psicológico, o escritor divide seu ego em egos parciais, personificando as correntes conflitantes de sua vida mental por meio de vários personagens. No escritor criativo, certa experiência no presente desperta a lembrança de uma experiência infantil, que origina um desejo realizado mediante sua obra criativa. Assim, a literatura pode ser considerada uma forma de transmissão do saber inconsciente, favorecendo a extensão da psicanálise à literatura.

A representação do abismo na literatura e na clínica

Dado que a representação de abismo desponta na literatura e na clínica, duas formas de compreendê-la são disponibilizadas nesta seção.

Crespo (1984) examina a pregnância da categoria abismo em Freud, evidenciada na radicalidade das pulsões e na falta de objeto ‘certo’ para o desejo. Assim, o abismo - com suas conotações de vazio, morte, pânico, vertigem está presente em sua obra. Ele se revela, ainda, em conceitos kleinianos que remetem ao vazio - voracidade, inveja, castração, falta, ferida narcísica - assim como no avesso da sexualidade compulsiva, da voracidade infinita, da agressividade irredutível.

Bataille (2020) propõe que o ser humano é dilacerado entre a continuidade e a descontinuidade/abismo, dada sua individualidade e mortalidade. O animal-homem tornou-se homem por meio dos interditos: proibições de atos relacionados à morte e ao sexo. No entanto, os interditos tornam possível a transgressão, que o faz retornar ao estado original de animalidade. O erotismo e a morte permitem retornar à continuidade perdida. O erotismo é uma experiência unicamente humana, que faz do sexo uma atividade erótica. Posto o abismo/descontinuidade que separa os seres, o erotismo possibilita ultrapassá-lo. Seu sentido último é a fusão-supressão do limite entre os seres.

A seguir, passa-se às representações e aos domínios em que elas ocorrem. Nos domínios da literatura e da clínica psicanalítica, o abismo aparece como representação do sofrimento psíquico.

As representações do sofrimento psíquico na literatura

Nesta pesquisa com o método psicanalítico, a narrativa literária é trabalhada de modo parecido ao do analista com o relato do paciente. Na clínica extensa, o pensamento clínico constitui o elemento fundamental de aproximação às representações do sofrimento psíquico dos escritores.

Fundamentais em seu discurso, as representações são destacadas por meio do itálico entre aspas simples. O itálico igualmente é usado para por em relevo as representações e os afetos associados a elas. O uso de colchetes com reticências visa suprimir trechos desnecessários dos relatos, para torná-los mais claros para o leitor.

De acordo com Frazão (2000), Clarice Lispector é uma escritora intimista e psicológica, mas sua produção abarca, ainda, os universos social, filosófico e existencial. Visando expressar paixões e estados da alma, ela utiliza a análise psicológica e o monólogo interior. Seus personagens - geralmente femininos - enfrentam situações-limite.

Complementando essas ideias, Torres (2000) afirma que o questionamento do ser, o intimismo e o peso existencial são abordados pela escritora através do fluxo da consciência/monólogo interior. A linguagem é parte fundamental daquilo que ela retrata: a mente humana. Ela amplia o significado banal das palavras por meio de metáforas, antíteses e paradoxos. Sua prosa é centrada na interioridade e no inconsciente das personagens, em sua inadaptação ao mundo moderno, que as despersonaliza e na epifania vivida por elas como iluminação e revelação, quando compreendem a essência de algo e reconhecem certa verdade sobre si ou sobre o mundo, caracterizando sua transformação interior. Suas personagens extrapolam a mesmice e a monotonia da vida, e as ambiguidades ponteiam sua obra: o eu e o não eu, o ser e o não ser.

Sua íntima relação com a literatura é expressa mediante as seguintes frases: ‘Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas, continuarei a escrever’ (Lispector, 1998). ‘Escrever é procurar entender [...] o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada’(Lispector, 1999a). ‘Escrever me é uma necessidade. Porque escrever é um modo de não mentir o sentimento [...] A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro...’ (Lispector, 2010).

A essas ideias, faz-se necessário agregar outras frases da autora:

‘Tenho medo de escrever. É tão perigoso. [...]. Perigo de mexer no que está oculto [...]’ ‘Para escrever tenho que me colocar no vazio. [...] um vazio extremamente perigoso. Escrever é uma pedra lançada no fundo do poço’(Lispector, 2010). ‘Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente minha própria vida’ (Lispector, 1999b). Quando eu não escrevo, estou morta.’ ‘Sou o abismo perdido entre o não ser e a escuridão’(Lispector, 2010).

Outro autor que se vale da literatura para se embrenhar em seu universo pessoal é Enrique Vila-Matas. Os principais componentes da escrita vila-matiana são: narrador neurótico [...] e apagamento do eu autoral (Campos, 2018). Além disso, a literatura é o grande tema de sua obra e as fronteiras entre biografia e ficção, entre ficção e realidade são apagadas (Pires, 2011).

Essas questões tornam-se patentes em seus livros, em sua carreira literária. Em Mac e seu contratempo, as identidades do narrador e do autor se confundem. Suicídios exemplares retrata personagens à beira do abismo/suicídio. A viagem vertical aborda um personagem que ruma em busca do abismo/proximidade da morte.

Segundo Vila-Matas, ‘... um livro nasce de um vazio [...]. Escrever é preencher esse vazio’. ‘Escrever é corrigir a vida, é a única coisa que nos protege das feridas e dos golpes da vida’. ‘[...] a escrita é um recurso para se preencher o tenebroso buraco chamado vida’. ‘Sou um autor, que desenvolve uma investigação apaixonada e complexa sobre sua própria identidade. Meus temas são: a impostura/falsa identidade e o desaparecimento/morte’ (Trigo, 2012).

Em A viagem vertical, o autor refere: ‘Pretendo que meus romances sejam sempre lições de abismo. Faço com que cada livro meu seja um salto no vazio, uma corda sobre o precipício’. Em Exploradores do abismo, exploradores são ‘[...] pessoas que, à beira de um precipício fatal, sondam o horizonte plausível, perguntando-se o que há além de seus limites’. Em Doutor Pasavento, encontra-se: ‘Um estranho panorama depois dessa batalha perdida que é a infância. [...] podemos ver um velho caminho no qual o Tempo escreveu o fim abrupto do mundo. [...] é o fim do mundo, se avançarmos’.

Passando-se ao terceiro escritor, J. D. Salinger se tornou uma celebridade com o livro O apanhador no campo de centeio. Todavia, não apreciou a fama e o sucesso, isolou-se numa fazenda e publicou menos do que publicava antes do sucesso. Recusou todos os pedidos de entrevistas e aparições públicas, bem como as propostas de adaptação do livro para o cinema. O título de seu livro remete ao seguinte trecho: ‘Eu fico imaginando milhares de criancinhas brincando num imenso campo de centeio. Ninguém adulto por perto - a não ser eu. E eu fico na beira de um precipício maluco. Sabe o que tenho que fazer? Tenho que pegar todo mundo que vai cair no abismo’ (Salinger, 2019, p. 208).

As criações literárias dos autores parecem advir do âmago de seu ser, de sua profundis animae.

As representações do sofrimento psíquico no cotidiano

No tocante à obtenção do material para esta seção, situações casuais do cotidiano e sites da web forneceram elementos para os eventos relatados. Portanto, esse conjunto de informações foi obtido tanto de maneira aleatória, quanto de forma deliberada, ao se pesquisar relatos do sofrimento das pessoas nas redes sociais.

Essenciais no discurso humano, as representações constituem referências sobre o sujeito, o outro e o mundo. Encontradas no discurso das pessoas, as representações do sofrimento psíquico são ressaltadas por meio de itálico entre aspas simples. As demais frases transcritas sem aspas e sem itálico revelam as falas de seus interlocutores.

Um garoto de catorze anos, negro e pobre, não tem acesso a serviços básicos do Estado em sua comunidade - escola de qualidade, posto de saúde, hospital, áreas de esporte e lazer. Além disso, em seu ambiente familiar ocorrem muitas brigas. Seu comportamento violento reflete seu profundo ódio e horror a tudo o que vive. Contudo, sob o patrocínio de uma ONG voltada para comunidades desfavorecidas, ele aprendeu a dançar. Ele diz: ‘Quando tô dançando, eu me sinto em outro mundo, é mágico’.

Em outra comunidade composta por pessoas negras, uma casa rudimentar - de madeira descascada, sem pintura e entulhada de objetos degradados no quintal - hospeda um pastor, cinco mulheres e vinte e duas crianças sujas, muito magras e com o nariz escorrendo. Comem arroz, vegetais com pontas estragadas e carne cheia de gordura. Um recenseador pergunta ao dono da casa: Esses garotos são seus filhos? ‘São filhos de Deus. Sou apenas instrumento de Deus, à noite, no escuro e minhas mulheres exercem as funções para as quais Deus fez seus corpos’.

Um rapaz trabalha em um supermercado e, com o salário, paga sua faculdade. Seus pais são separados e ele mora com a mãe. Por sua vez, seu pai tem filhos com a nova esposa. No supermercado, uma senhora lhe pergunta: você tem irmãos? ‘Irmãos de sangue, não’. Ah, você tem mais irmãos. Como são eles? ‘Irmãos que a vida deu’.

Após dizer bom dia, uma senhora pergunta a outra: você tá bem? ‘Eu tô’. Você soube que uma garota foi estuprada no bairro ...? ‘Não, meu Deus e a que horas isso aconteceu?’ Às cinco da tarde. Como é que isso acontece? Como um ser humano faz isso com outro? ‘Meu marido disse que eu vivo num mundo paralelo’. Como é esse mundo paralelo? ‘Confiança’. O que mais tem nesse mundo paralelo? ‘Amor, carinho’ ‘eu já sofri muito com isso, fui aprendendo...’ A gente precisa ser seletiva com as pessoas, há pessoas boas, carinhosas e confiáveis. O contrário disso é péssimo: ser amargurado, desconfiado. A seguir, ela diz: ‘Meu marido é policial e vê as coisas terríveis que as pessoas fazem com as outras’.

Um funcionário é despedido por seu chefe e o diálogo entre eles compreende: ‘Tenho quinze anos de experiência no trabalho, tenho mestrado, não entendo’. Você tem habilidades comuns. Então, ele perde o emprego, seu casamento termina, perde a filha doente, por não ter convênio médico, perde a casa e é abandonado pelo irmão. Não consegue um trabalho por metade do valor e com menos benefícios do que o anterior. Ele se desespera com a insensibilidade do chefe, do empregador, da esposa, do médico e do irmão. Em seu discurso, surgem: ‘sou um zero em confiança, motivação e capacidade; sou invisível em oposição a ser reconhecido, sou inexistente diante do valor dos cargos e dos objetos materiais. E ‘entrei em parafuso’ se confunde com sou descartável. Assim sendo, ainda que não seja terrorista, ele passa a fabricar bombas caseiras, visando explodir pessoas em locais públicos.

Uma moça com aparência comum decide participar de um programa, que lhe permite passar por vários procedimentos estéticos. Seu enorme desejo de ser amada a levou ao programa, pois ela acreditava que para ser amada tinha que ser fisicamente perfeita. Nesse processo, ela grava vídeos compartilhando sua intimidade com o público, sendo que, em sua vida pessoal, ela não conseguia compartilhá-la com sua mãe. De início, diz que, em sua festa de aniversário, todos olhavam para sua mãe. Ela nunca teve namorado e dizia: ‘sou repugnante’. Quis ser recepcionista, mas ouviu: você não serve para estar no primeiro plano. Porém, tendo se tornado bela, ela foi assediada pelo padrasto, mas a mãe não acreditou nela e a chamou de vaca mentirosa. Ela respondeu: ‘você sempre me reprimiu de fazer tudo que eu queria’. Mesmo bela, foi rejeitada pela mãe, pelo homem dos seus sonhos e pelo médico. Como não se sentiu amada, ela disse: ‘sou uma aberração’. Decidiu reverter as cirurgias e ficar com um homem que sempre gostou dela, independentemente da beleza. Ela confundira vida real com vida irreal.

Uma modelo e influenciadora eslovaca de vinte cinco anos, 1,81m de altura e com mais de um milhão de seguidores no Instagram, descreve-se como alien. Porém, ‘tenho rosto e corpo naturais criados por Deus, quase não uso filtros e pouco edito minhas fotos. Eu uso só uma ferramenta para suavizar a pele, mas acho que é normal. Contudo, os haters me acusam de usar photoshop’. Em entrevista ao New York Post, ela afirmou: ‘Eles pensam que sou um robô de inteligência artificial ou um impostor. Eu me considero um alienígena... As pessoas não acreditam que eu existo. Quase não tenho amigos. Eu não acho que sou perfeita, mas as pessoas têm medo de mim e não querem falar comigo. Eu fico mal, porque elas dificultam as coisas, porque sou bonita’.

No âmbito dos golpes de amor na web, as vítimas são inteligentes e bem-sucedidas, mas vulneráveis emocionalmente: viúvas/viúvos, mulheres divorciadas, homens mais velhos e pessoas LGBTQIA+ não assumidas. A partir das informações disponibilizadas nas redes sociais, o golpista fala o que a vítima gostaria de ouvir, simula ter gostos similares aos dela, oferece-lhe suporte e apoio, criando um laço de confiança com ela. Logo, ele enuncia uma paixão súbita, com declarações de amor impactantes - ‘você é incrível, maravilhoso/a, nunca encontrei ninguém como você; pode parecer loucura, mas já tô apaixonado/a por você’ - junto com promessas de futuro a dois. Porém, há pontos de virada nessa trama. Em três meses, o golpista - que se apresenta como rico, bonito e de boa família - começa a passar por dificuldades e por tragédias repentinas e inacreditáveis. O romance perfeito sofre revezes: o golpista mora longe da vítima e cria a expectativa de viajar para conhecê-la, porém, perde a carteira ou é roubado na viagem. Ela é levada a crer que pode salvá-lo de situações críticas, por meio de dinheiro ou do cartão de crédito (Brenol, 2021).

Um inglês de sessenta sete anos trocava e-mails com uma mulher. Ele acreditava que estavam apaixonados e que iriam se casar. Ela começou a lhe pedir dinheiro para uma construção na Malásia. ‘Parecia plausível. Fui mandando três mil, quatro mil libras. Quando somei tudo, eu tinha pago a maior parte das cem mil libras que ela pediu. Eu deveria estar aproveitando uma aposentadoria confortável, mas pago dívidas todo mês, com minha pensão. Estou falido. Você se sente derrotado, devastado, acabado.’

As representações do sofrimento psíquico na clínica

Nesta seção, as representações do sofrimento psíquico da paciente são evidenciadas mediante o uso do itálico entre aspas simples. A análise dessas representações e de suas mudanças também é destacada mediante os itálicos. As demais frases transcritas sem aspas e sem itálico remetem às falas da analista. A sequência das sessões é diferenciada por meio dos parágrafos apresentados a seguir.

A paciente está sofrendo muito devido a sua separação do marido, com quem foi casada por vinte e cinco anos - além de sete anos de namoro. A dor da separação do casal se confunde com a separação do seu eu do eu do ex-marido.

‘Eu não tô aguentando lidar com limites. O V. [filho] falou em suicídio e eu não posso fazer nada, é o fim do mundo’. O que é o fim do mundo? ‘É meu pai falido e eu um peixe que nada, nada, nada e morre na praia. Eu tinha que ser perfeitinha, certinha pra ter um pouco de amor’. Sempre que algo sai desse padrão, você sente que algo muito ruim vai acontecer. Tudo que sai desse padrão, como o uso de maconha por V, você vive como o fim do mundo. Sente ódio do pai e culpa quanto a seu filho. Sentir-se reduzida a nada se somava à ideia materna de que a fêmea transmite algo ruim para o filho. Você foi competente com um paciente que parou de usar maconha, mas fica assustada com seu uso por V. ‘Apesar disso, eu venho melhorando. Eu que já fui tão concessiva, tão disponível, agora ponho limites às pessoas. Agora tô bem, mas parecia que eu estava num abismo’.

‘Com a separação do J., eu me sinto inexistente, é absurdo, parece coisa do outro mundo, tô ficando louca’. ‘Tive que assumir os cuidados do V., mas J. falou pra psiquiatra que eu é que tenho que mudar, decidi largar tudo nas mãos dele’. Você se divide entre uma extrema vigilância do V. e largar tudo com ele. ‘Sinto muito ódio do J, eu me abandonei, sinto muita raiva de mim, sou uma idiota em função do outro, mas cheguei no meu limite; o J. posa de sadio’. Você se sentiu louca, fracassada e falida? ‘Tô cansada de assumir os cuidados do V. e não ser reconhecida, me sinto fracassada’. Você sente extremo pavor dele se matar e confirmar que a fêmea passa o pior pro filho.

Quando um amigo do ex-marido entra com a chave - cedida por ele - na casa dela, é como se ele permitisse que outro homem entrasse na vida dela e ela sofre muito com isso. ‘J. era minha vida’. Então, quem você era para si mesma? Você era alguém sem vida própria. ‘Na frente dele, sinto ódio. Longe dele, me sinto sem vida’. Essa confusão não te permite criar algo novo e melhor. Seu eu devastado, arrasado e infértil não consegue produzir afetos novos e melhores. Eu e você ficamos fracassadas, mortas e misturadas nessa confusão mental e nessa morte de seu eu. ‘Vou mudar isso tudo...’

Várias situações produziram instabilidade, pressão e sobrecarga na paciente. Ela e a filha e tiveram Covid, sua pressão arterial chegou a 21/14 e ela foi ao hospital, sem o ex-marido. ‘Tenho certeza de que ele tá com outra mulher. Sinto a ingratidão e a injustiça de ele ter ido embora, porque eu participei do sonho dele de arrumar um novo trabalho e, hoje, outra mulher tá ajudando ele. Eu me sinto imprestável, um estorvo’. Sua desconfiança de que ele tem outra te leva a pesquisar insistentemente nas redes sociais, até você se afundar nessa tortura. ‘Tenho muito medo de perder esse homem que eu amo. Nesses trinta anos, um sempre cuidou do outro, quando ele tava frágil como na operação de coluna e quando eu retirei um tumor’. Eu segurei a bomba, segurei os rojões’. Você fica a ponto de explodir. A carga das situações que te pressionam vai aumentando e algo dentro de você explode. ‘Eu posso explodir’. Você está rompendo a imagem idealizada do J. como forte, poderoso, protetor, independente e de você como fraca, dependente, perseguidora, que pode explodir. ‘Mesmo hoje, eu cuidaria dele se ele ficasse doente’. Você é generosa e forte ao cuidar dele, quando ele fica vulnerável; só que aí seu eu se mistura com o eu dele e você sente que ele é o forte, poderoso e você, a fraca e dependente. ‘Eu posso seguir com a minha vida, sou confiável, compromissada, capaz de me cuidar, de cuidar do outro e tenho meu próprio valor’. Em anos de análise, essa é a primeira vez que você enumera suas qualidades, uma nova forma de se representar. ‘Quando eu tava falando, era com posse disso tudo’.

‘Tive uma briga feia com o J., ele disse que eu tava prejudicando meus filhos, que eu tava numa posição confortável. Eu me senti inútil’. E aí surgiu um furacão de ódio dentro de mim e eu fui muito agressiva - repete três vezes - bati no braço dele, falei pra ele que aquela prostituta vale mais que eu, que uma qualquer vale mais que eu’. Você desvaloriza essas mulheres, mas se coloca abaixo delas. ‘Ele foi aumentando o tom de voz. Eu me senti louca, cheguei à insanidade. Eu pedi, chorei, me humilhei, agora chega, não quero mais nada dele’. Você tem saído bem das sessões e aí se desestabiliza. ‘Ele me desestabiliza. Tenho um núcleo de rejeição e abandono muito enraizado, que aumentou com a morte do meu pai. É como se eu tivesse me perdido, rodo, rodo, rodo e volto pro mesmo lugar. J. disse que eu tava acomodada no consultório. Trabalho muito, mas ganho pouco. Trabalhar noutra cidade é ir pra outro universo. Tenho vontade de desaparecer, sumir; ser psicóloga me sustenta’. As formas de sustentação de seu eu é ser uma boa psicóloga e uma boa mãe. Quando você bateu nele, é como se derrubasse a psicóloga. Como você bateu nele? À medida que ela fala, vai ficando claro que ela tentou bater nele, mas ele se defendeu e ela não bateu nele. ‘Não me arrependo, se eu não tivesse feito o que fiz, teria me sentido reduzida a nada’.

Discussão

Na organização desta seção, os domínios a partir dos quais as representações do sofrimento psíquico foram obtidas - a literatura, o cotidiano e a clínica psicanalítica - são retomados nessa sequência. Essa organização geral sofre mudanças quando da comparação entre seus tópicos.

Na seara da literatura, as frases dos três autores são pensadas com base na teoria psicanalítica. As hipóteses aventadas guardam o devido respeito ao mundo interior dos autores, visto que nada de profundamente íntimo aparece nelas.

Clarice Lispector pontua que: ‘Escrever é procurar entender [...] o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é abençoar uma vida que não foi abençoada’ e ‘A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro...’. Logo, a escrita serve para ela entender seus sentimentos, então nomeados de modo mais claro e libertador. Talvez, a escrita ajude a rever maldições familiares, transformando-as em bênçãos e em novas vidas mais belas e coloridas, como flores que desabrocham. Porém, a labuta com as palavras demanda enfrentar conteúdos inconscientes.

‘Tenho medo de escrever. É tão perigoso. [...]. Perigo de mexer no que está oculto [...]. Para escrever tenho que me colocar no vazio. [...] um vazio extremamente perigoso. Escrever é uma pedra lançada no fundo do poço’. ‘Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente minha própria vida’. ‘Quando eu não escrevo, estou morta’.

Certo nível de mudança psíquica, favorecida pela escrita, demanda enfrentar o medo suscitado pelos perigos do acesso ao mundo inconsciente. A escrita permite o acesso ao vazio de sua existência. Ela permite, ainda, atingir o fundo do poço e salvar sua vida - como em Vila-Matas.

No universo de Vila-Matas (2000), o abismo constitui um tema repetido e insistente nos personagens de Suicídios exemplares, A viagem vertical e Exploradores do abismo. Em relação a isso, Freud (1908) aponta que, no romance psicológico, o escritor divide seu ego em egos parciais, personificando correntes conflitantes de sua vida mental, por meio dos personagens. Certa experiência no presente relembra uma experiência infantil, que origina um desejo realizado mediante sua obra criativa.

Na prosa de Vila-Matas, ‘Sou um autor, que desenvolve [...] uma investigação apaixonada e complexa sobre sua própria identidade. Meus temas são: a impostura/falsa identidade e o desaparecimento/morte’. Soma-se a isso: ‘... um livro [...] nasce de um vazio [...]. Escrever é preencher esse vazio’. ‘Escrever é corrigir a vida, é a única coisa que nos protege das feridas e dos golpes da vida’. ‘[...] a escrita é um recurso para se preencher o tenebroso buraco chamado vida’. A esse respeito, Freud (1908) considera que a fantasia consiste na realização de desejos insatisfeitos, uma correção da realidade insatisfatória. Determinado desejo infantil reprimido pode ser simbolicamente realizado mediante uma obra criativa na vida adulta.

A relação entre o vazio e a escrita é referida por Lispector e Vila-Matas. Descritos por Lispector, o fundo do poço e o abismo dialogam com o abismo e o precipício relatados por Vila-Matas e com o precipício narrado por Salinger. Em seu sentido figurado, abismo e precipício designam uma situação ou uma circunstância extremamente complicada, um evento incompreensível, o caos. No sentido psicológico, evidenciam o sofrimento psíquico do sujeito.

Quanto a isso, Lispector enuncia: ‘Sou o abismo perdido entre o não ser e a escuridão. Ao que parece, ela associa o abismo ao seu eu imerso no intervalo entre conteúdos não claros e não delimitados.

Em Vila-Matas, o abismo é interligado ao suicídio e à proximidade da morte. Além disso, seus livros constituem um salto no vazio e uma corda sobre o precipício - abismo. Ademais, o vazio é associado ao tenebroso buraco-vida. Nessa medida, o livro parece ser o meio ambíguo, contraditório e confuso para sua morte como no salto no vazio ou para salvar sua vida como a corda sobre o precipício. Igualmente, o trecho ‘os exploradores [...] à beira de um precipício fatal’ indaga o que há além dos limites conhecidos, entrelaçando-se à morte. O extrato ‘um estranho panorama para depois dessa batalha perdida que é a infância [...] podemos ver um velho caminho no qual o Tempo escreveu o fim abrupto do mundo [...]; é o fim do mundo, se avançarmos’ sugere que ir além do velho caminho conhecido equivale ao fim catastrófico do mundo. Nesse sentido, a transição do mundo infantil para o adulto é vivenciada como caótica e catastrófica pelo personagem/escritor.

Retomando-se Salinger (2019): ‘Ninguém adulto por perto - a não ser eu. E eu fico na beira de um precipício maluco. Tenho que pegar todo mundo [milhares de criancinhas] que vai cair no abismo’. Seu personagem adolescente se encontra na posição dúbia de adolescente/adulto responsável por ser o salvador de milhares de criancinhas diante do abismo. Essa tarefa hercúlea e impossível o deixaria maluco, pois a passagem do mundo infantil para o mundo adolescente e adulto parece ser vivenciada como maluca/enlouquecedora - dada sua metáfora do precipício maluco.

Assim, Clarice Lispector - referindo-se a si mesma - e Vila-Matas e Salinger - descrevendo seus personagens - revelam representações de seu sofrimento psíquico.

No que tange ao abismo, Crespo (1984) refere que ele adquire as conotações de vazio, morte, pânico, vertigem, na obra freudiana. ‘Cada pessoa é um abismo. Dá vertigem olhar dentro delas’ - frase freudiana que serve de epígrafe para este estudo - se articula à reflexão desse autor.

Passando-se do plano da literatura para o cotidiano, as pessoas e as situações vivenciadas por elas são analisadas.

Frente às limitações e insuficiências da pobreza em sua vida real, o adolescente encontra na dança um mundo irreal delicioso: ‘Quando eu tô dançando, eu me sinto em outro mundo, é mágico’. Passando da segurança financeira para a precariedade da pobreza e das perdas amorosa e financeira, o senhor ludibriado num golpe de amor diz: ‘Estou falido. Você se sente derrotado, devastado, acabado.’ Logo, ao falar de sua falência no sentido financeiro objetivo, o pronome pessoal eu fica subentendido. Porém, ao mudar do nível objetivo para o subjetivo, as representações de sofrimento são articuladas a você: projeção que o distancia de seu sofrimento.

Conflitos entre pais e filhos podem, outrossim, produzir sofrimento psíquico. No caso do pastor, que cria seus filhos em meio à grande precariedade de comida, higiene, roupas e moradia, sua responsabilidade quanto a eles é delegada a Deus. ‘São filhos de Deus. Sou apenas instrumento de Deus, à noite, no escuro’. Porquanto, sua negação da paternidade se mesclaria à falta de clareza de sua consciência - à noite, no escuro - quanto a ele ser o gerador responsável por seus filhos. No caso do garoto do supermercado, o distanciamento afetivo do pai - que vive com os outros filhos - favorece que eles sejam os ‘irmãos que a vida deu’. Nessa frase, eles não seriam filhos de seu pai e seus meio-irmãos, denunciando seus conflitos quanto a sua filiação.

Em se pensando a relação da modelo com sua beleza, ressaltam-se seu conflito e a divisão de seu eu quanto a isso. Por um lado, ela ganha dinheiro com sua beleza, mas, por outro, ela se descreve como um alien e um alienígena. ‘Eles pensam que sou um robô de inteligência artificial ou um impostor. As pessoas não acreditam que eu existo’. Tanto um robô quanto um alien são seres deste ou de outro planeta, cuja aparência os diferencia dos humanos, reiterando seu conflito com sua aparência. Ser inexistente se contrapõe a ser existente, tendo-se em vista seus milhões de seguidores no Instagram, dada a sua bela aparência. Ser bela e ser existente operam no plano sensorial e objetivo, ao passo que ser inexistente se impõe no plano psíquico e subjetivo. Neste, sentir-se inexistente equivaleria, quiçá, a não ser amada, não ser valorizada, não ser vista e não ser reconhecida pelos pais.

Além do mais, ela parece ter a síndrome do impostor. Esta advém da crença de ser uma fraude, mesmo tendo trabalhado muito para obter sucesso. Incapaz de aceitá-lo, ela se sente uma fraude ao ocupar uma posição, por ter feito seus pares acreditar que é mais inteligente ou competente do que é realmente. Nessa autossabotagem profissional, por medo de falhar, adota posturas, que decepcionam os demais (Fidelis, 2005).

Por sua vez, o homem desempregado associaria ser inexistente à falta de dinheiro e de importância no mundo.

Do campo do cotidiano passa-se à arena clínica, com foco em uma paciente. Faz-se necessário atentar para as representações de limites, de fim do mundo e de coisa do outro mundo enunciadas por ela. No início da sessão, ‘não tô aguentando lidar com limites’ se relaciona a ser impotente frente ao possível suicídio do filho: ‘eu não posso fazer nada, é o fim do mundo’. O que é o fim do mundo? ‘É meu pai falido e eu um peixe, que nada, nada, nada e morre na praia’. Porém, no final da sessão, limites descreve sua profunda mudança no sentido de impor limites aos outros.

Dada sua dificuldade de delimitar fronteiras entre seu eu e o do marido somada a dor da separação, ela expressa: ‘ eu me sinto inexistente, é absurdo, parece coisa do outro mundo, tô ficando louca’. Ser inexistente tem o sentido de ela não ter vida independente do pai e do marido. Ser inexistente é confrontada pela razão, que o avalia como absurdo e sem sentido nesse mundo, a ponto de ela se sentir louca. Alia-se a ‘J. era minha vida’, que a posiciona como alguém sem vida própria, ligada a seu eu devastado, arrasado, infértil e impotente quanto a produzir afetos novos e melhores.

Suas representações do sofrimento psíquico encontram ressonância nas do senhor inglês: ‘Estou falido. Você se sente derrotado, devastado, acabado.’

A representação de limites em Vila-Matas e na paciente retrataria os limites entre seu eu e do outro, entre o passado sofrido e o presente no qual o desejo - diferenciado do outro - possa ser assumido com vigor. Entretanto, a transição entre limites pode gerar pânico e paralisia, haja vista o precipício fatal de Vila-Matas, o precipício maluco de Salinger e o fim do mundo da paciente.

Na literatura, o abismo interliga-se ao suicídio e à proximidade da morte em Vila-Matas e a estar perdido entre o não-ser e a escuridão em Lispector. Na clínica, o abismo envolve a falência do pai supostamente poderoso e ela se tornar pilar financeiro da família. Alude, portanto, à passagem da falência psíquico-financeira de seu pai para sua ascensão psíquica. Igualmente, o fim do mundo parece designar sua perda da ilusão do poder paterno. Para tanto, coube elaborar ser impotente como filha/criança e como mãe/adulta que se confundiam com ela ser um nada e ter um eu morto.

Nesse background, faz sentido a ideia de abismo como descontinuidade e separação entre os seres em Bataille (2020). E, ainda, ele dialoga com Crespo (1984) acerca do abismo em Freud - com suas conotações de vazio, morte e pânico.

De modo geral, as representações do sofrimento psíquico se fazem presentes nos diversos campos da vida humana, inclusive nos três destacados neste estudo.

Considerações finais

No que se refere às representações do sofrimento psíquico, depreende-se que a precariedade da pobreza, a vulnerabilidade fomentada pelas perdas amorosas e financeiras, os conflitos quanto a parentalidade e a filiação, a divisão do eu dadas as representações contraditórias sobre a aparência, advindas dos pais/demais e, ainda, a indiferenciação entre o eu e o outro parecem fundamentar sua produção.

Sob esse prisma, nos nichos da literatura, do cotidiano e da análise, o sujeito pode residir como inquilino eterno do sofrimento psíquico da família - estando seu desejo morto em vida. Enquanto sob a ótica cronológica ele é um ser do tempo fugaz do presente, sob a clave subjetiva ele pode se situar no tempo do outrora, que anula a força de seu desejo. Capturado pelos enredos ancestrais da família, ele pode vivenciar um perpétuo presente em convulsão, uma eternidade concentrada num instante do tempo, que o aprisiona em um abismo psíquico e bloqueia a realização de seu desejo.

Frente ao sofrimento psíquico, a escrita pode ser um meio de buscar a identidade e aliviá-lo. Outros podem se valer do trabalho criativo, do esporte, da musica, da dança e da arte para suavizá-lo. Contudo, no setting analítico, a mudança psíquica tende a alcançar sua excelência e apogeu, ao ultrapassar os abismos, enfrentando o fim do mundo conhecido - para adentrar num mundo de relações inéditas. Porquanto a análise reativa o fluxo vivo do desejo, para que ele possa pulsar no mundo com sua intensa vibração.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 29/09/2023
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