Como os Boêmios Viraram Burgueses
A boemia é um movimento cultural caracterizado pelo culto à juventude e à marginalidade, representando a aspiração dos jovens por uma existência "não burguesa", desejando uma vida livre que se desprende das convenções e rompe com as tradições.
No entanto, ironicamente, esses mesmos preceitos da boemia foram responsáveis pelo surgimento da nova burguesia, tal como a conhecemos atualmente.
A princípio, o que estimula o boêmio não é o dinheiro, nem tampouco o sucesso social, valores intrinsecamente burgueses.
Ele zomba de tudo o que representa valor para os burgueses. Seu desejo é esvaziar o passado, destruir os valores convencionais, os hábitos e as autoridades estabelecidas; em resumo, derrubar todo o antigo regime. E por quê? Porque ele acredita que essa é a primeira condição para uma criação autêntica, uma inovação original, sem a qual a arte não tem valor, tornando-se "acadêmica" e sem qualquer chance de ser genial. O boêmio, convicto de que a "verdadeira vida está em outro lugar", ambiciona ser um gênio.
O boêmio, acima de tudo, diferencia-se do burguês por ser comumente pobre. Como retratados no livro "Cenas da vida Boêmia" (1845-1848 - de Heinrich Murger), vivem na pobreza, para não dizer na miséria, habitando sótãos e mansardas de edifícios parisienses. Buscam o que eles chamam de "arte pela arte", a criação pura, a inovação genial e inigualável. Trajam-se propositalmente com um ar de desleixo, vestindo-se "diferentemente de todos", de modo falsamente relaxado, mas propositadamente excêntrico. Vivem à margem, entregando-se ao consumo excessivo de tabaco e ópio.
Tendo inspiração nos cínicos gregos, que podem ser considerados os primeiros boêmios, eles não ligam para a opinião alheia.
Um clássico movimento boêmio foi o grupo dirigido por Jules Levy, conhecidos como os “incoerentes”, que inventaram os primeiros objetos “surrealistas”, como “pentes para careca” ou “balanços de parede” para acalmar as crianças agitadas.
Evidentemente, ao longo dessa longa história, existem vários tipos de boêmios. Há boêmios ricos e esnobes, boêmios de sótãos, miseráveis mas puros, boêmios românticos, neoparnasianos, revolucionários e anarquistas, todos compartilhando um ponto em comum além do espírito e do ódio aos burgueses: a juventude. Quando um boêmio envelhecia, dizia-se que ele se aposentava.
Contudo, apesar de sua aparente oposição aos burgueses, os boêmios desempenharam um papel fundamental na fundação das bases de um novo capitalismo. Isso ocorreu porque os valores que eles questionavam eram exatamente aqueles que deveriam ser superados para que uma nova ordem econômica se estabelecesse.
A ideia por trás dessa desconstrução é a seguinte: era necessário que os valores e as autoridades tradicionais fossem desconstruídos pelos boêmios para que o capitalismo, agora também moderno, pudesse entrar na era do grande consumo, sem o qual sua expansão seria simplesmente impossível. Em outras palavras, se as pessoas atualmente mantivessem os mesmos valores que seus bisavós, elas não estariam tão propensas a investir na aquisição de três celulares por ano e outros aparelhos de entretenimento. Antigamente, as pessoas se contentavam apenas com o básico para suas necessidades.
Portanto, era necessário desconstruir inteiramente essa visão tradicional de consumo para que, finalmente, pudéssemos nos entregar ao consumo sem restrições, diferentemente dos tempos passados em que livros e outras coisas freavam o desejo consumista.
A hipótese que podemos defender é que os desconstrutores, isto é, os boêmios, realizaram objetivamente a obra dos burgueses. O esvaziamento dos valores antigos promovido por eles foi essencial para o surgimento do mundo moderno, pautado pelo consumo, criatividade e inovação permanente.
Uma das consequências dessa desconstrução de valores é que os boêmios se tornaram grandes artistas, cujas obras disruptivas e geniais passaram a ser consumidas pelos próprios burgueses.
Além de influenciar a arte, a cultura da inovação permanente disseminada pelos boêmios se tornou a motriz da lógica da competição burguesa, onde a inovação é fundamental para a sobrevivência no mercado.
Assim, os boêmios, inicialmente contestadores da ordem burguesa, viram seus valores incorporados pelos próprios burgueses na fundação de um novo capitalismo. Até artistas burgueses foram absorvidos pelas grandes corporações, especialmente na era tecnológica (como o caso de Steve Jobs, um boêmio que se tornou uma referência na área), impulsionando a busca por inovação.
Concluindo, os boêmios foram fundamentais não apenas em desconstruir os valores de consumo do passado, mas também para criar as inovações essenciais à vida burguesa. Seu dilema - "Abaixo do calçamento: a praia" - revelou que, na verdade, o que estava para além do calçamento era o surgimento da globalização burguesa.