Da terra de Iberê Camargo - que Iberê?

Iberê Camargo nasceu em Restinga Seca, uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul, em uma época que a pequena vila era dependência administrativa de outro município, portanto, o nome de Restinga Seca não é exatamente aquele que ganhou relevo em seu registro de nascimento. Ainda assim, um dos mais importantes pintores modernistas da segunda metade do século XX referia a minha cidade natal como o seu lugar de nascimento. Há, entre nós, um vínculo de pertencimento e isso me leva a escrever sobre ele.

Nossa primeira infância foi vivida nas cercanias de um córrego, a Sanga da Restinga, que fora usada desde meados do século XIX para o abastecimento das velhas locomotivas a vapor, justificando o surgimento de uma caixa d’água e, mais tarde, uma estação ferroviária. A própria estação de trens, a linha férrea, os trens unem-nos, ainda que o façam com 50 anos de distância temporal.

A estrada de ferro que fez surgir a cidade de Restinga Seca é parte da linha férrea que liga a capital do estado, Porto Alegre, à fronteira Oeste, na divisa com a Argentina, entre Uruguaiana e Passo de los Libres. São dormentes e trilhos colocados no meio da campina, entre várzeas e coxilhas do Rio Grande do Sul. A solidão da campanha, os gritos de quero-queros são notas dominantes nesses espaços, mesmo a par da ocupação humana.

A influência do meio em que viveu o artista é destacada por Ribeiro (2013, p. 32): “tempo e solidão das paisagens da infância haviam deixado marcas profundas em sua alma, formas determinantes para o seu trabalho”. Esse argumento é corroborado por Peixoto (2014, p. 138) que, em seu estudo “identificou os elementos que fazem referência ao passado do pintor (suas lembranças da infância no meio ferroviário e das paisagens da campanha gaúcha)”. Temos, assim, uma primeira aproximação com a história do pintor e os motivos que desencadearam a sua Arte.

O ensaísta Paulo Reis (2011), por sua vez, afirma que Iberê Camargo principiou a pintar paisagens, mas, nos anos 40, passou à figuração dos carretéis, lembrança dos serões familiares em que a mãe, que era também telegrafista, costurava as roupas da família. Reis (2011), porém, acresce que, mais tarde, Iberê chegaria a uma fase de abstração expansiva, que desembocaria nos conhecidos ciclistas, que Peixoto (2014, p. 138) define como “figuras retiradas diretamente de um parque popular de Porto Alegre”, representações do homem urbano, trabalhador e solitário, indicativo de um artista crítico da sociedade de seu tempo.

Reis (2011) ainda assinala que a obra do pintor restinguense é pontuada por fantasmagorias, reminiscências, tons azuis, frios e paisagens estéreis, até que, nos anos 90, emergiriam as idiotas.

Cabe, dessa forma, registrar o pensamento evidenciado por Resende Filho (2020, p.19), ao enfocar, separadamente, a produção das séries carretéis, ciclistas e idiotas, o qual afirma que:

Até em seus escritos existe uma coerência, sobretudo na maturidade, entre a solidão e a existência, uma espécie de combate que irá permear toda a sua existência.

Esse sentimento e a percepção do artista levarão o argumento da solidão às últimas consequências pictóricas, direcionando-o para a desolação humana. A figura dos indivíduos é distorcida, desconstruída, e os personagens parecem ser seres esquecidos e alienados pelo tempo (...). Iberê demonstra - como intelectual na sociedade da época, bem como em sua obra e produção artística – um grito de repúdio contra variadas injustiças.

Entendemos, neste sentido, que a solidão vivida na estação ferroviária de Restinga Seca, circundada pelos trilhos do trem, pelo córrego, pelas árvores no seu entorno, pela sua várzea, pela coxilha que se estendia em volta, aliada às experiências em outras estações férreas em que a família morou – o pai de Iberê Camargo era agente ferroviário e a mãe, telegrafista -, determinou uma percepção própria do mundo, que foi expressa em suas obras, expostas em bienais em Nova Iorque, Madrid, Tóquio, Milão, levando o nome da pequena cidade do interior gaúcho para o sucesso internacional.

Ainda que a sua obra traga traços fundamentalmente expressionistas e, talvez, por isso, não seja “compreensível” aos olhos do leigo, cabe-nos o esforço de, em um país em que a cultura sempre foi reservada a uma elite econômica, dizer à população em geral que o filho do trabalhador é capaz de fazer Arte e “falar” sobre sentimentos universais, em particular, nesse caso, a solidão, mas também a despersonalização do homem, que, sobretudo, na série denominada os ciclistas, aparece com destaque, configurada no meio urbano.

Referências:

REIS, P. Entrevista com Iberê Camargo. ARS (São Paulo). São Paulo: volume 1, número 2, p. 118-123, 2003. Disponível em https://www.scielo.br/j/ars/i/2003.v1n2/ Acesso em 27. Jan. 2022.

RESENDE FILHO, A.A. “A poética inquietante do artista Iberê Camargo e sua extensão no campo de ensino”. Monografia (Especialização em Ensino de Artes Visuais e Tecnologias Contemporâneas). Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, p. 94, 2020.

RIBEIRO, M. I.B. “Iberê Camargo”. Iberê Camargo. São Paulo. Folha de São Paulo; Instituto Cultural Itaú, 2013. (Coleção Folha Grandes Pintores Brasileiros).

Elaine dos Santos
Enviado por Elaine dos Santos em 15/07/2023
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