O Legado de Prometeu aos Homens
Prometeu foi um dos maiores amigos dos homens. Graças a ele, o homem aprendeu as artes. Mas, por causa dele também, o homem conheceu a sua maior desgraça!
Zeus, depois de ter estabelecido a ordem cósmica do mundo ao derrotar o temível titã de nome Tifon, cansou-se da imobilidade e apatia do mundo. Resolveu, portanto, criar novos seres para povoá-lo. Valendo-se da terra e do fogo, Zeus teve a ideia de criar os animais e os homens para habitar a terra.
Após criá-los, ele encarregou os irmãos filhos do titã Japeto, Prometeu (cujo nome significa aquele que pensa antes) e Epimeteu (etimologicamente, aquele que pensa depois), de distribuir as habilidades necessárias para a sobrevivência desses novos seres.
Prometeu e Epimeteu entraram em acordo. Epimeteu cuidaria das habilidades dos animais; Prometeu, as dos homens.
Epimeteu, contrariando a origem do seu nome, cometeu um trabalho primoroso com os animais. Ele criou um verdadeiro "ecossistema", uma representação quase fiel à ordem cosmológica estabelecida pelo próprio Zeus.
Seu trabalho consistiu em igualar as oportunidades para evitar que cada raça se extinguisse. Uns ele proveu de espesso pelo ou de sólidas carapaças, próprias para protegê-los do frio, mas também capazes de protegê-los dos calores tórridos. Ele calçou determinada raça com cascos; outra com garras. Escolheu alimentos diferentes para as diferentes raças: algumas se alimentariam de grama; outras, com os frutos das árvores; aquelas caberiam alimentar-se com raízes; a esta outra sobrou a carne de outros animais; contudo, sem esquecer-se de atribuir-lhes fecundidade restrita, enquanto a outros deu-lhes fecundidade abundante. Com isso, manteve-se o total equilíbrio, garantindo a todas as espécies a sua devida salvaguarda.
Contudo, o nome de Epimeteu não seria "aquele que pensa depois" por mero acaso. Todas as espécies, de fato, foram munidas com habilidades necessárias à sua subsistência, mas e os humanos?
Epimeteu havia gastado todas as habilidades disponíveis com os animais e não deixou nenhuma para Prometeu dar aos humanos. Sorte dos homens que Prometeu tem tanta argúcia quanto Epimeteu de estupidez.
Prometeu não poderia deixar seus amados e protegidos homens desprovidos de habilidades. Para resolver esse problema, Prometeu teve a "brilhante" ideia de roubar o fogo do deus Hefesto e a arte da deusa Atena, e dá-los aos homens.
Com isso, os humanos seriam capazes não só de construir e criar suas ferramentas, como também poderiam cozinhar seus alimentos.
Desta forma, o ser humano passou de desprovido de qualquer capacidade ao animal "criador" por excelência. Habilidade só encontrada nos próprios deuses do Olimpo.
Ah, mas o roubo custaria caro ao amigo dos homens.
Zeus, vendo-se ofendido pela ousadia de Prometeu em equiparar reles mortais aos deuses, possibilitando-os a arte da criação, resolve puni-lo severamente, juntamente com os homens.
Zeus decide colocá-lo no alto de uma grande montanha, onde uma ave surge para lhe comer o fígado. Como Prometeu também é um deus e não pode morrer, isso se torna um grande inconveniente, uma vez que seu fígado se restaurava todo santo dia e a gralha toda vez voltava a lhe dilacerar as entranhas, ad eternum. Até um dia em que Hércules, um semideus, resolve libertá-lo.
Já aos homens coube a maior das desgraças como punição: a mulher. Ou pior. A mais bonita, a mais dissimulada, a mais sedutora das mulheres: Pandora.
Pandora foi criada por Zeus, que ordenou que cada deus do Olimpo lhe ofertasse uma capacidade. Atena ensina-a a arte de tecer; Afrodite oferece beleza absoluta; Hermes lhe dá a capacidade da dissimulação. O resultado foi uma mulher estonteantemente bela, mas também enganadora e insaciável.
A primeira sedução de Pandora é o pobre Epimeteu, que se apaixona por ela. Com ela, ele teve diversos filhos: eis a origem das outras mulheres. Mas o pior ainda estaria por vir.
Os deuses também deram a Pandora uma caixa contendo todos os males da humanidade, a chamada Caixa de Pandora. Ela abriu a caixa e depositou todos os males do mundo: a fome, a doença, o trabalho, etc. No fundo da caixa, só sobrou um mal: a esperança. Portanto, aos homens só resta a esperança.
Para além da óbvia misoginia revelada por este mito que Platão conta no seu diálogo Protágoras, ele revela consequências, pensamentos e crenças que são atuais até os dias de hoje.
Através desse mito, podemos conceber as principais premissas daquilo que conhecemos como o humanismo moderno.
Por exemplo, o ser humano não é como os outros animais, por ser capaz da criação, presente ofertado por Prometeu.
Também podemos ver aquilo que Picolo Della Mirandola, então com apenas 25 anos de idade, esboça em 1486 em seu "Discurso Sobre a Dignidade Humana", onde defende que é justamente pelo ser humano não dispor de nenhum dom natural, como os outros animais, que ele é livre para ser o que quiser.
Ele pode valer-se de seu livre-arbítrio e sua capacidade de criar para dar a si mesmo a sua forma e demais características. Não é como os animais que já nascem condenados por toda vida a ser como são, por deterem uma espécie de "software de fábrica" ou "arquétipo" que define seu agir. Desta forma, o homem, através da capacidade de criar, só encontrada nos deuses, está à frente dos animais na hierarquia do universo.
Diferentemente do animal, o ser humano é capaz da linguagem, da ética, da moral, da política.
Essa ideia, que tem origem no mito de Protágoras, também tem influência no humanismo de Kant, que se vale da mesma conclusão de Picolo para afirmar que o ser humano é o único animal capaz de agir desinteressadamente.
Ele é capaz de contrariar seus instintos naturais, animalescos. Ele é capaz de ter vontade. Ele é capaz de ter a boa vontade, aquilo que Kant chama de "imperativo categórico", ou seja, uma norma de conduta onde o ser humano deve se perguntar: se todos os outros seres humanos agirem da mesma forma que eu, numa regra universal, isso será bom para a humanidade? Nenhum outro animal é capaz disso. Por isso, o ser humano está no centro do universo, no chamado "antropocentrismo".
Essa verdade fundamenta o humanismo. O ser humano não é nada. E por ser nada, ele é capaz de dar a si mesmo o seu próprio futuro e destino, valendo-se de sua capacidade de criar, legado ofertado aos homens por Prometeu, presente máximo dado em benefício de toda a humanidade.
Agora, devemos nos questionar se isso é uma bênção ou apenas mais outra condenação.