A Sabedoria do Mito de Ulisses
A sabedoria do mito de Ulisses é indissociável da grande questão dos gregos da antiguidade: o que uma vida precisa ter para ser considerada boa?
É a essa pergunta que pretendo responder, e, por fim, se Ulisses, apesar de não ser necessariamente belo, possuir um corpo bonito ou ser necessariamente rico, poderia ser considerado, pelos padrões atuais, um "bom partido".
Para os gregos, a vida boa, isto é, a existência bem-sucedida, é aquela ajustada à ordem cósmica (diké), da qual Ulisses é o legítimo representante. Nesse sentido, ele pode ser considerado o arquétipo do homem autêntico, do sábio que sabe o que quer e para onde vai, pois reconhece seu lugar natural na escala do cosmo. Homero, autor da Odisseia, que narra a jornada de Ulisses rumo à sabedoria, refere-se a ele como "divino Ulisses", o que dá dimensão ao caráter divino que esse herói assume para os gregos.
A Odisseia narra o périplo de Ulisses durante a guerra de Troia e sua saga para retornar a Ítaca, seu lar, sua casa (oikos). Ulisses fez de tudo para não participar dessa guerra, pois, sendo sábio e conhecendo seu lugar no mundo, não queria deixar sua pátria, Ítaca, a cidade em que é rei; seu recém-nascido filho, Telêmaco; seu pai, Laerte; e sua esposa, o grande amor de sua vida, Penélope.
A guerra de Troia começou devido a uma discórdia causada pela deusa Eris (a deusa da discórdia) no dia do casamento dos futuros pais de Aquiles, porque ela não foi convidada para a celebração. Eris, movida pelo despeito, lançou durante a festa uma magnífica maçã de ouro, na qual estava escrito: "para a mais bela do Olimpo". As mais belas deusas do Olimpo, Atena (Minerva em latim), Hera (Juno) e Afrodite (Vênus), disputaram a maçã, iniciando uma confusão intermediada por Zeus. Temendo tomar partido em detrimento de uma delas, Zeus decidiu enviar Hermes, seu mensageiro, para buscar um jovem inocente que julgasse entre as três deusas.
Hermes retornou com um simples pastor troiano, que na verdade era Páris, um dos filhos de Príamo, rei de Troia. Páris havia sido abandonado por seus pais ao nascer porque um oráculo previu que ele seria o responsável pela destruição de Troia. O jovem aceitou ser o juiz da disputa. Cada deusa ofereceu a ele um presente para conquistá-lo. Hera, que reinava ao lado de Zeus, ofereceu-lhe um reino semelhante na Terra; Atena, deusa das artes e da guerra, garantiu-lhe vitória em todas as batalhas; e Afrodite, deusa do amor, prometeu-lhe a sedução da mulher mais bonita do mundo, caso a escolhesse.
Páris, claro, acaba escolhendo Afrodite. Com seu novo dom em mãos, Páris escolhe seduzir a mais bela criatura na face da terra, que é Helena, a mulher do rei da cidade de Esparta, Menelau. Helena apaixona-se por ele e resolve fugir ao seu lado. Por isso, Menelau começa a guerra com os troianos, iniciando a guerra entre gregos e troianos, a qual Ulisses é convocado.
A guerra é vencida pelos gregos graças a um ardil de Ulisses, que tem a ideia de pedir trégua aos troianos, dando-lhes de presente um cavalo de madeira, mas que na verdade guardava encerrado em si inúmeros guerreiros, que, na calada da noite, saíram do seu esconderijo e invadiram a cidade de Troia, em um elemento surpresa e conquistando-a de vez.
A guerra de Troia durou 10 anos, nos quais Ulisses se viu impedido de voltar para casa. No entanto, mal sabia ele que, mesmo depois de vencer a guerra, levaria mais 10 anos no trajeto de volta para sua casa.
Acontece que Ulisses passou por diversos percalços que tentavam tirá-lo de seu propósito de voltar para seu lugar natural, que era sua casa. Esses empecilhos visavam seu esquecimento e afetar sua memória, e, por conseguinte, sua sabedoria. E, como se não bastasse, Ulisses arrumou confusão com Poseidon, deus do mar, porque cegou um dos seus filhos, um ciclope chamado Polifemo, com uma lança. Poseidon fez de tudo para desviar Ulisses de seu objetivo, uma vez que seu único caminho de volta era pelo mar, seu principal domínio. São em torno de 11 obstáculos que Ulisses passa até retornar a Ítaca, dentre os quais os mais famosos são:
A ilha de Calipso, uma espécie de divindade marinha que se apaixona perdidamente por Ulisses, propondo-lhe até a imortalidade, mantendo um corpo jovem. Ulisses fica cerca de 7 anos preso nessa paradisíaca ilha.
A ilha dos Lotófagos, ou seja, dos comedores de Lotos, que é uma espécie de tâmara entorpecente, o único alimento disponível no local, mas que, apesar do sentimento de prazer ao ser ingerido, tem como efeito colateral o esquecimento.
A ilha da outra bela feiticeira chamada Circe, que tem a capacidade de transformar seres humanos em porcos, sem estes perderem a alma e a identidade. A feiticeira também se apaixona por Ulisses; este também fica um período em sua companhia.
Como vimos, todos esses empecilhos têm como objetivo seduzir Ulisses para que ele acabe pecando por Hybris, ou seja, descomedimento, esquecendo-se de quem ele é e qual é seu lugar natural no mundo. Propõem a ele a imortalidade, proporcionam prazer com o esquecimento e o fazem esquecer o caminho de volta para casa, perdendo sua maior sabedoria, que é saber seu lugar natural no cosmos.
No entanto, a sabedoria de Ulisses não o deixa ser dissuadido, e após longos 10 anos, ele finalmente consegue voltar para casa. No entanto, ele encontra completa desordem lá. Enquanto esteve ausente, sua casa foi invadida por vários jovens que visavam roubar seu trono e seu lugar ao lado de Penélope, eles são chamados de "Pretendentes". Apesar de muitos deles serem mais bonitos e mais ricos que Ulisses, eles são verdadeiros arruaceiros. Penélope, eternamente apaixonada por seu marido, nunca o esquece mesmo durante o longo período de sua ausência. E quando Ulisses finalmente chega em casa, ela o recebe de braços abertos.
Essa é a história - beeem resumida - do "divino Ulisses", mas qual é a sua praticidade nos dias de hoje? Ainda hoje, Ulisses poderia ser considerado sábio ou um bom partido para casar?
Para me ajudar a responder a essa pergunta, convoco as opiniões de Ovídio, poeta romano, e do professor francês Luc Ferry:
Segundo Ovídio: "Ulisses não era bonito, mas sabia falar bem; isso bastou para que duas divindades marinhas sentissem tormento de amor por ele. Quantas vezes Calipso gemeu devido à sua pressa, dizendo-lhe que as águas não se prestariam ao movimento dos remos! Ela pedia sem cessar que ele contasse novamente a queda de Troia, e ele fazia a narrativa de uma maneira quase sempre diferente. Eles estavam sentados na margem: lá, também, a bela Calipso queria ouvir o fim sangrento do chefe dos ódrisas. Ele, com uma vareta (acontecia dele ter uma vareta), para satisfazê-la, desenha sobre a areia dura. 'Eis aqui Troia', disse (representando os muros na margem); 'aqui será o Simeonte; suponha que lá está meu acampamento. Havia ali uma planície (ele representa uma planície), onde derramamos o sangue de Dolão, enquanto à noite, ele queria os cavalos do herói da Hemônia. Lá se erguiam as tendas do sitoniano Reso; por lá eu voltei com os cavalos, roubados à noite.' Ele ia desenhar outros objetos, quando uma onda veio e levou Troia, o campo de Reso e o próprio Reso. Então a deusa disse: 'Que segurança para sua viagem você acredita encontrar nessas águas que, sob seus olhos, apagaram tão grandes nomes?' ".
Já Luc Ferry conta que, um dia, ao ser questionado por uma repórter brasileira se "ampliar o pensamento" (com estudos, viagens, leituras, etc.) era tão importante, uma vez que ali mesmo na praia, em Copacabana, havia muitos rapazes despreocupados e musculosos, bronzeados e felizes em levar suas vidas como uma brincadeira inocente e ininterrupta. Por que desviá-los de suas agradáveis diversões? Luc Ferry responde que nenhuma mulher consegue viver por muito tempo com um rapaz mimado que nada conhece, que nada tem a contar. Mesmo sendo jovem e bonito, ela pode querer trazê-lo para sua cama, como as ninfas fazem com os companheiros de Ulisses. Mas para uma deusa como Circe ou Calipso, ou para uma mulher forte como Penélope, isso não basta. Por essa mesma razão, Ulisses supera todos os pretendentes, que são jovens ricos e, sem dúvida, também fortes e bonitos; não é apenas pela astúcia e pelo vigor, mas pelo poder de sedução do homem completo, adquirido com suas viagens e estudos.
Com base nesses dois exemplos, fica claro por que Ulisses ainda hoje é um estereótipo de bom partido. E sua sabedoria para os dias atuais reside inteiramente no fato de que Ulisses nunca se esqueceu de seu lugar natural, de seu pertencimento, de suas raízes e do que lhe faz mal ou bem nessa terra, apesar de todas as tentações. E essa sabedoria é o que o torna um modelo de sábio até os dias de hoje. Todos deveríamos nos basear, pelo menos um pouco, em seu exemplo para termos uma vida boa, aquela que pode ser considerada de qualidade tanto para os gregos de outrora quanto para os homens modernos atualmente.