Ladrão que rouba ladrão, tem 100 anos de perdão?

Ladrão que rouba ladrão...

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“Ladrão que furta ladrão, tem cem anos de perdão; – adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil.” Esta afirmação aparece no capítulo XII da obra ‘O alienista’, de Machado de Assis (1882).

O dito popular é usado até hoje para amenizar delitos quando cometidos contra malfeitores. Roubar é crime, segundo o Artigo 157 do Código Penal Brasileiro, e pecado, segundo o sétimo dos Dez Mandamentos, mas, pela sabedoria popular, roubar de um roubador é, digamos, diferente...

Quem rouba do ladrão não só é digno de perdão, mas de exatos 100 anos de perdão. Cem anos! Nisso, algumas perguntas me afloram: Perdão não é para sempre? Por que 100 anos? E se a pessoa morrer antes de curtir esse século de indulto? Ou, por outro lado, o que aconteceria ao pecador que cometesse o ato ilegal aos 15 anos e vivesse mais de 115 anos? O perdão expiraria? Investiguemos!

O Padre Domingos Vieira, no ‘Grande diccionario portuguez’, de 1873, apresentou duas versões do adágio: “Quem engana ao ladrão, cem dias merece de perdão” e “Quem rouba a ladrão, tem cem annos de perdão”. Típico dos ditados portugueses, as frases aí apresentam rimas, ladrão e perdão, mas a origem não é portuguesa.

Na obra ‘La pícara Justina’, novela de 1605 atribuída ao escritor espanhol Francisco López de Úbeda, há a expressão “quien hurta al ladrón gana cien días de perdón”. Já Íñigo López de Mendoza, o Marquês de Santillana, que coletou os ditos populares espanhóis do século XV, registrou “Quien burla al burlador cien días gana de perdón”.

Na obra ‘La Celestina’, de 1499, escrita pelo dramaturgo espanhol Fernando de Rojas, aparece “Quien engaña al engañador cien años de perdón”. Então, vemos que o sujeito podia ser um ladrão, um burlador ou um enganador e que o perdão oscilava entre 100 dias e 100 anos. Mudavam-se as palavras, mas o sentido era o mesmo, o de desculpar quem comete uma má ação contra alguém malvado.

Falar em ‘cem anos de perdão’ naquela época fazia bastante sentido. Não eram 100 anos neste plano espiritual, mas no Purgatório. Segundo a Igreja Católica, quem comete erros leves, se arrepende e pede perdão, pode até ser perdoado, mas a alma continua a carregar a macha do pecado, da impureza. Então, para muitos, seria necessário dar um tempo no Purgatório, um lugar onde essas almas seriam purificadas antes de ir para o Paraíso. Tá, mas quanto tempo?

Além do tormento da dúvida dos cristãos em se saber se o seu destino pós-morte seria o colo do capeta ou os braços do Senhor, havia uma expectativa sobre quanto tempo essa estadia no Purgatório demoraria. Se a vida eterna é eterna, a temporada purgatorial poderia ser absurdamente grande.

Para diminuir esse tempo, a Igreja da Idade Média considerava as famosas indulgências, ações como orações, reclusões, esmolas e jejuns, que visavam abater os anos de permanência no Purgatório. Quem rezasse o terço em outubro, por exemplo, ganhava 7 anos de perdão, ou seja, 7 anos a menos no Purgatório.

A partir do século XIII, as indulgências estavam com tudo! Aos fiéis, a Igreja pedia doações, recomendava peregrinações e visitas aos templos sagrados para lhes aliviar a pena a ser cumprida após a morte.

Havia vários catálogos de indulgências, publicados pelas ordens religiosas, mas trago aqui, como exemplo, a do frei Nicolau Dias, de 1583. Segundo o livro, o fiel que visitasse o templo de Roma no Dia de São Pantaleão (27 de julho), por exemplo, ganharia 40 anos de perdão. A lista vai subindo:

▪ Dia de Santa Clara: 100 anos de perdão;

▪ Dia de São Bento: 155 anos;

▪ Dia de Santa Inês: 200 anos;

▪ Dia de São Barnabé: 600 anos;

▪ Dia de São Gregório: mil anos;

▪ Dia de São Paulino: 7 mil anos;

▪ Dia de São Tiago: 58 mil anos;

▪ Dia de São Benito: 190 mil anos (!).

Se fosse em 22 de fevereiro, Dia da Cadeira de São Pedro, o fiel recebia exatos 159 998 anos e 258 dias de perdão. Como era calculado esse sistema de pontinhos, eu não faço ideia.

Só em 1967, com a constituição ‘Indulgentiarum doctrina’, do papa João VI, a indicação de tempo nas indulgências foi abolida. Os 100 anos de perdão, no entanto, persistem no dito popular do ladrão.

De todo modo, eu prefiro deixar aquela passagem de Machado de Assis de lado e ficar com a de Aluísio Azevedo, em ‘Mysterio da Tijuca’ (1882). No conto, após se apoderar do dinheiro do ladrão Ruivo, o personagem Talha-Certo diz ao seu parceiro Tubarão: “Quem rouba a ladrão, tem cem anos de perdão!” Tubarão lhe retruca: “Estás enganado! Quem rouba a ladrão, fica ladrão como ele!”.

📚 Referências: ‘Regra da ordem terceira de N. Senhora do Carmo’, pelo frei Manoel da Encarnação (1685); ‘A que equivalem os 100 dias, os 365 dias, os 7 anos etc. das fórmulas de indulgências?’, por Estêvão Tavares Bettencourt, na página ‘Veritatis Splendor’ (mar. 2014); e ‘Analyse syntaxique et sémantique de quelques proverbes français et espagnols du XIVe au XXIe siècle’, por Sonia Gómez-Jordana Ferary, no ‘Bulletin Hispanique’ (dez. 2009).

CIDA MOURA
Enviado por CIDA MOURA em 06/12/2022
Código do texto: T7665575
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