A maldição do espelho

Nestes tempos atuais, em que tanto se fala na luta contra a gordofobia e que cada pessoa é bonita à sua maneira, vale bastante a pena prestarmos atenção a algumas obras culturais que abordam como a busca obsessiva por um corpo considerado perfeito pelos padrões culturais e pela moda pode prejudicar tanto a saúde mental quanto a física e uma obra cultural que aborda como esta obsessão pode comprometer seriamente nossa saúde é o livro Espelho maldito, obra paradidática escrita pela autora Giselda Laporta Nicolelis. O livro aborda o tema dos distúrbios alimentares de forma muito contundente e faz, de forma implícita, vários questionamentos: por que temos de tentar nos enquadrar em um padrão culturalmente imposto? Por que não deveríamos nos aceitar e amar exatamente como somos? Vale a pena tentar de tudo para se encaixar em um tipo de corpo considerado ideal para se sentir realizado? Não se está fazendo apologia da gordura, que também não é saudável. O que se está dizendo é que deveríamos rever a maneira como a magreza nos é imposta. Associa-se a magreza ao sucesso e à realização pessoal e social ao passo que a pessoa gorda sempre acaba sendo vista como preguiçosa, sem força de vontade e gulosa, pois seria gorda por só pensar em comer.

Falemos então um pouco do livro. Em Espelho Maldito, as personagens principais são duas amigas, Anuska e Francine, que compartilham, além do desejo de emagrecer para se encaixar no padrão considerado ideal, sonhos e problemas familiares. Anuska deseja emagrecer pois sonha ser modelo e Francine, bailarina. As duas também têm problemas com suas mães. A mãe de Francine é ausente e a de Anuska, superprotetora. Ambas já tentaram vários regimes, sem sucesso e acabam por aderir a um regime que parece simples. Francine não consegue segui-lo, pois costuma descontar sua ansiedade na comida mas Anuska se entusiasma e pouco a pouco vai comendo menos. Com o tempo, vão ocorrendo mudanças. Todos dizem a Anuska que ela está muito magra e, embora os ponteiros da balança indiquem que ela emagreceu, ela se vê imensa de gorda sempre que se coloca diante do espelho. Quanto a Francine, ela não engorda embora continue comendo compulsivamente. Francine também vive com os dedos machucados e está sempre escovando os dentes embora estes vivam amarelados. As personalidades de ambas também mudam muito. Anuska, antes uma filha submissa de tão obediente, torna-se rebelde e Francine se torna arredia e agressiva. À medida que vamos lendo as páginas do livro vamos vendo as consequências de se tentar ser magro a todo custo. Giselda, através do livro, aborda com realismo como os distúrbios alimentares são perigosos e colocam em risco a vida de quem sofre deles, seja de bulimia ou anorexia. Ao final da leitura, nós somos invadidos por um monte de perguntas: por que o valor de uma pessoa deveria ser definido pelo tamanho da roupa que usa? Deve-se mesmo tentar ser magro a todo custo? Uma pessoa não é muito mais do que seus quilos a mais ou a menos?

Outra obra cultural que fala sobre distúrbios alimentares é o filme Anorexia, a ilusão da beleza (que pode ser assistido no Youtube). Neste filme, mostra-se como jovens que sofrem de anorexia e bulimia criam comunidades na internet para ensinar a outros jovens que sofrem desses distúrbios como enganar os pais, comer cada vez menos, usar laxantes, etc. Nestes sites, a anorexia é apelidada de Ana e a bulimia, de Mia. A protagonista é uma jovem chamada Hannah. Em uma cena bastante tocante do filme, a terapeuta, tentando alertar Hannah, fala sobre as consequências dos distúrbios na saúde e de como muitos jovens* acometidos pela anorexia morrem de fome. A terapeuta chega a citar que uma paciente dela, por causa da bulimia, tem que usar dentadura pois os dentes foram destruídos em consequência de tantos vômitos e menciona que outra não pode ter filhos por causa da anorexia. Como vemos, tanto a anorexia quanto a bulimia podem levar a tragédias pois o corpo de quem sofre desses distúrbios fica enfraquecido. Porém, Hannah não se convence e diz que a Ana é sua amiga. A terapeuta rebate que a Ana é um demônio que grita no ombro de Hannah.

Na vida real, há casos de pessoas famosas que sofreram de distúrbios alimentares. Sissi, que foi imperatriz da Aústria, vivia fazendo dietas numa época em que magreza não era um padrão de beleza. A princesa Diana, primeira esposa do então príncipe Charles, sofreu de bulimia e um caso que comoveu a muitos foi o da cantora Karen Carpenter, que morreu de insuficiência cardíaca em decorrência da anorexia em 1983, aos 32 anos, numa época em que pouco se sabia sobre a doença. Então, cabe-nos uma última pergunta: será que ser magro é tão importante assim?

Vivemos numa cultura que por muito tempo associou a magreza ao sucesso e felicidade e os gordos sempre foram ridicularizados, principalmente em produções culturais. Quem não pode mencionar algum filme ou seriado no qual o gordo não é sempre colocado como uma figura ridícula e bonachona? Com certeza, esta hipervalorização da magreza pode ter influenciado muitas pessoas a desenvolver tais distúrbios e, reforçando que não se está fazendo apologia da gordura, devemos deixar claro que uma pessoa deve se amar tal como é e jamais achar que tem que corresponder a um determinado padrão para se sentir bem consigo mesma.

• Embora a bulimia e a anorexia, na maioria, afetem adolescentes do sexo feminino, também podem afetar rapazes.