Talvez a frase mais famosa da filosofia seja “Penso, logo existo.” Mas apesar de toda a fama, pouco se fala fora dos círculos acadêmicos acerca do contexto em que ela foi escrita, com qual objetivo, e como ela foi recebida nestes 400 anos desde que foi escrita. Por isto talvez ela seja tão mal compreendida. Neste texto pretendo apresentar algumas linhas rápidas explicando, e depois questionado Descartes. E, assim espero, levar meus três leitores que terminarem o texto a uma crise existencial.

 

A frase é a pedra fundamental do método que Descartes propõe para conhecer a verdade, na sua obra mais famosa, o “Discurso sobre o método”. Para o filósofo, jamais deveríamos aceitar algo como verdadeiro a menos que a verdade fosse evidente e clara. Para os problemas mais complexos, seria preciso dividir este processo em parcelas, as mais detalhadas possíveis, partindo das mais simples, e assim ir construindo o conhecimento. Basicamente o que chamamos de análise: dividir um problema complexo em suas partes fundamentais, e abordá-las uma a uma.

 

Mas como ponto de partida Descartes recusa tudo aquilo que lhe foi ensinado como verdadeiro, mas sem a devida análise. Algo como aquela outra frase famosa, de Sócrates: “Só sei que nada sei”.

 

E partindo deste estado de completa ignorância, Descartes tenta descobrir a verdade. Descartes se volta para o que ele estava fazendo: pensando sobre a verdade. E daí nasce a frase: “Penso, logo existo”. Visto que Descartes pensava sobre a verdade, ele tinha que admitir que Descartes existia. Se há alguma coisa que eu posso ter certeza, é da existência de mim mesmo, certo? E esta é a pedra fundamental sobre qual Descartes constrói toda sua proposta filosófica.

 

Mas será mesmo que temos que admitir como verdade evidente a frase “Penso, logo existo.”? Muitos filósofos apontaram alguns problemas nesta afirmação, e quase todos questionaram o mesmo ponto. O sujeito oculto na frase: (eu) penso, logo existo. A afirmação do eu seria um elemento de subjetividade, portanto questionável. Bom, com certeza você deve estar pensando agora que alguém tem de ser muito louco para duvidar da existência de si próprio. Só gente muito desregulada vai ficar em dúvida se ele existe ou não. Será?

 

Muitas vezes a melhor forma de questionar se o que parece óbvio é enganoso é por meio de analogias. E temos duas analogias da filosofia antiga que aborda a questão do eu.

 

Diz a lenda que o sábio taoísta Chuang Tzu certa noite sonhou ser uma borboleta. E ao acordar, entrou em um dilema. Será que ele era Chuang Tzu, que sonhou ser uma borboleta, ou será que ele era uma borboleta que agora estava sonhando ser Chuang Tzu?

 

Em última instância tudo o que nós vivenciamos são nossas sensações, e nada garante que todas elas não sejam ilusórias. Você pode ser uma borboleta que esta sonhando ler um texto chato, e não sabe por que continua lendo. Se preferir uma forma mais moderna para a mesma questão, pense no seguinte: se Morpheus jamais tivesse encontrado com Neo e oferecido para ele a opção de tomar a pílula azul ou a pílula vermelha, Neo jamais saberia que ele não era um programador em uma empresa do fim do século XX, mas sim uma bateria humana presa em uma Matrix.

 

Mas a coisa complica ainda mais com outro dilema filosófico clássico, conhecido como o Navio de Teseu. O dilema do Navio de Teseu foi proposto por Plutarco, filósofo grego. Teseu foi um dos heróis mais importantes da mitologia grega, e entre seus feitos esta a vitória sobre o Minotauro. Em sua história Teseu viajou em seu barco por 50 anos. Ao longo desta viagem, o navio enfrentou várias tempestades, algumas batalhas, e com certeza sofreu várias e várias avarias.

 

Então imaginemos que a cada viagem Teseu tivesse que trocar uma ou duas tábuas de seu navio. Ao chegar em um porto, Teseu comprava novas tábuas, e fazia os reparos. Em 50 anos de viagem, nenhuma das tábuas que faziam parte do navio original chegou ao fim da viagem. Podemos chamar um navio que não tem nenhuma peça original como o mesmo navio do inicial? O navio de que Teseu navegava no final da viagem ainda era o navio de Teseu?

 

Podemos piorar a questão se imaginarmos que um companheiro de viagem de Teseu foi coletando todas as tábuas avariadas do navio e enviando para um construtor de navio no porto do qual partiram. E este construtor de navio reparou as tábuas, e construiu com elas um navio. Um navio feito com todas as tábuas do navio de Teseu, mas que Teseu nunca utilizou. Qual então é o navio de Teseu? Nenhum? Os dois?

 

Obviamente não estamos falando de navios, mas sim daquilo que nos faz ser um indivíduo. Porque eu, Aniello, afirmo que sou a mesma pessoa que eu era a 48 anos atrás? Nenhum dos átomos que hoje compõem meu corpo estavam no corpo que saiu do útero de minha mãe. E com certeza hoje sou uma pessoa muito diferente de um bebê recém nascido, ou de um adolescente de 16 anos que ouvia Legião Urbana e Pink Floyd todo dia. Ou até mesmo de quem eu era antes da pandemia de Covid-19. Como então eu chamo todas aquelas pessoas tão diferentes de eu?

 

Há várias respostas para estes dilemas, e cada uma delas tem seus méritos e defeitos. Mas diante destes dois dilemas antigos podemos perceber que até mesmo o “Penso, logo existo.” cartesiano é questionável.

 

Isto transforma então toda a obra de Descartes em uma farsa, visto que sua pedra fundamental era questionável? Não. Todo e qualquer raciocínio tem dois lados a serem analisados. A sua veracidade, ou seja, se o que o raciocínio propõe é verdadeiro, e a sua consistência. O método cartesiano tem suas falhas, mas no geral foi uma proposta bem consistente de como construir um conhecimento racional por meio de um método analítico e racional.

 

Mas a que conclusões chegamos? Sinto muito, aqui citarei novamente Sócrates: só sei que nada sei. Ou outro grande sábio, o Chicó: “Não sei, só sei que foi assim”. Penso, logo acho bom terminar por aqui.