O BRIGUE "PALHAÇO"

O BRIGUE "PALHAÇO"

Eis um texto que não gostaria de escrever, porém o Destino me poz nas mãos raro livro (autografado) de JORGE HURLEY, o "Belém do Pará sob o domínio Português - 1616 a 1823", (da Livraria Clássica, 1940), impresso como homenagem a Portugal e, junto, a Getúlio Vargas. Esta obra trata com minúcias sobre a presença do então 1º tenente João Pascoe Grenfell (*1) no Pará, tendo chegado a Salinas em 7 de agosto de 1823 (pag. 184)... "envestido do comando do brigue "Maranhão", que é guarnecido de 96 homens", etc. Esse brigue era, na verdade, um certo "São Miguel" que abordara em São Luís, semanas antes, a nau-capitânea de Lord Cochrane, uma espécie de "ministro da Marinha" de Dom Pedro I e que fôra encarregado de "subjugar" Maranhão e Pará, sublevados na época.

Assim que a caravela maranhense aproximou-se, o "conde Dundonald" (é o mesmo Cochrane) rendeu sua tripulação e, rebatizou-a, entregando-a para Grenfell com ordem de ir "pacificar" a rebelde Belém. No livro não há registro de lutas... Belém rendeu-se baseada em cópias de declarações de que o Maranhão já o fizera e, a partir de delação de um major, com a imediata prisão de 2 oficiais reinóis -- favoráveis a Dom João VI -- e que tramavam um enfrentamento com a "Armada de um navio só"... lá como cá usaram como "fake news" a lorota de que aquele navio era "só o primeiro" de muitos outros que estariam para chegar. Em Assembléia, a população de Belém exigiu a rendição da cidade, quando o assunto foi votado na Câmara, de noite.

Então, o brigue "Palhaço" NEM EXISTIU na História das lutas em Belém ?! Não é bem assim... em 1989/90 li às pressas e sem muito interesse diversas obras históricas, entre elas o "Compêndio das Eras" do oficial português Antônio Baena e o "livrão" de Domingos A. Rayol, quase todo sobre a Cabanagem. Meu objetivo era encontrar as raízes seculares da Capoeira local, pelo menos na capital. Que eu me lembre, não vi uma só linha sobre o terrível assassinato de 252 revoltosos no porão do brigue "Palhaço", justamente pelas mãos -- ou quase isso -- desse João (ou John) Grenfell. Dificilmente um pesquisador cuidadoso -- como parece ser esse autor, Jorge Hurley -- deixaria tal fato "passar em branco". Há, sim, citação ao brigue "Palhaço", entre outros navios da época -- galeras, escunas, fragatas, sumacas, caravelas -- nas páginas finais do citado livro: "A 17 de Abril de 1818 aporta a Belém o brigue "Palhaço" trazendo a seu bordo Dona Maria José do Livramento Mello, condessa de Villa Flor. Belém recebeu-a com deslumbrantes festas. A condessa, porém, adoece gravemente e vem a falecer a 1º de julho (...). Viúvo, o Conde Villa Flor, com licença da Metrópole, segue ao Rio de Janeiro a 1º de Julho de 1820 afim de casar-se com uma filha do Marquês de Loulé". (pag. 259) Ora, ora... se voltou no tal brigue, o famoso "Palhaço" findou seus dias na Corte ! (OBS: "êle seguiu no brigue de guerra "Promptidão", deixando Belém sob os cuidados de uma Junta (governo provisório), que foi razão e causa de rebelião em várias regiões e justificou a vinda de Grenfell em 7 de agosto de 1823.)

Nesse mesmo livro há citação de revoltosos encarcerados em navios... diz o livro sobre o levante de 14 de abril de 1823: "... nessa madrugada os revoltosos chegaram a tomar o quartel e parque de artilharia, contando ainda além disso com um batalhão de infantaria e um esquadrão de cavallaria", etc (pag. 176) segundo o historiador Arthur Vianna. Sem a adesão do 3º Regimento de Infantaria, conforme fôra combinado, DESISTIRAM todos da rebelião. Prendeu-se... "270 cidadãos implicados na revolta, [que] foram condenados a morte (...). Da morte os livrou o cônego Romualdo Antõnio de Seixas (...) conseguindo que os rebeldes fossem enviados a Lisboa e lá justiçados". (pag. 168)

"A 11 de Junho desembarcaram em Belém 145 revolucionários presos em Muaná com armas nas mãos. Foi um espetáculo triste... (pag. 176) Os revolucionários de Muaná foram recolhidos aos porões da fragata "Leopoldina" e aos da charrua "Gentil Americana", onde também estavam os rebeldes de 14 de Abril. O governo freta a galera "Andorinha do Tejo" para os conduzir revolucionários paraenses de Belém e Muaná a Portugal, onde esperava(-se) (...0 fosse executada a sentença de morte", etc. "Partiu a galera "Andorinha do Tejo" do porto de Belém a 13 de julho chegando a 15 de setembro de 1823 a Lisboa. Todos os presos foram encarcerados nas masmorras da "Torre de São Julião da Barra", onde ocorreram muitos casos de varíola, que fizeram numerosas victimas entre os paraenses". (pag. 177)

A pergunta que não quer calar... esses presos todos -- os 270 de Belém e os 145 de Muaná -- estavam em alto-mar quando Grenfell aportou em Salinas, em agosto de 1823. QUEM FORAM então os barbaramente chacinados no porão do brigue "Palhaço" ?! Sendo este livro de 1940, seria o sufocamento no brigue "Palhaço" uma "lenda urbana" (?!) surgida depois ? De onde saiu o navio "Diligente", que o diretor de peça teatral local inclui na história desse pavoroso "genocídio" ?! O brigue está sob as águas do Guajará, no cais do "Ver-o-Peso", aguardando há 2 SÉCULOS alguém com coragem para desvendar sua História e dar túmulo decente aos anônimos HERÓIS da luta pela Independência. Com a palavra nossa futura Senadora, ainda Secretária de Cultura, ou o Prefeito mais preocupado com bondes do que com o povo que LUTA e sofre por dias melhores.

"NATO" AZEVEDO (em 16/fev. 2022, 21hs)

OBS: (*1) - o Barão de Guajará anota em seu livro... John Pascoe GREENFELL, o nome correto do capitão-tenente.

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NOTA DO AUTOR (em 13/junho 2022) - somente agora tive acesso a extensa obra de Domingos Antônio Raiol -- "MOTINS POLÍTICOS", escrita entre 1865 e 68 -- que viveu a época e suponho que presenciou tais acontecimentos. Seguem trechos das páginas 49-50 e 51 de livro editado em 1970, no Rio, por encomenda da UFPA, a "Coleção Amazônica" e que referem-se aos dias iniciais de outubro de 1823. A partir dele "se explica" como o polêmico brigue "PALHAÇO" -- que devia estar no Rio, para onde seguira tempos antes -- estava EM BELÉM:

"Continuemos na narração dos acontecimentos que tiveram lugar na manhã do dia 17. Depois de terem sido espingardeados os cinco indivíduos de quem já falamos, os infelizes soldados foram, em número de 256, inclusive os cidadãos presos na noite do dia anterior às enxovias da cadeia até o dia 20, em que foram transferidos para bordo de um brigue denominado DILIGENTE e depois "PALHAÇO", comandado pelo tenente Joaquim Lúcio de Araújo, conforme a requisição que a Junta Provisória fizera a Greenfell (...). Ali, em um dos dias de maior calor neste clima, foram lançados no porão ou em um espaço de 30 PALMOS de comprimento (***OBS: o escritor deve referir-se a METROS), vinte de largura e doze de alto, fechando-se as escotilhas e deixando-se apenas aberta uma pequena fresta para a entrada de ar. (...) Por espaço de duas horas ainda se ouviu um rumor surdo e agonizante, que se foi extinguindo aos poucos, e às três horas de encerramento completo, que foi ao escurecer, reinou no porão o silêncio dos túmulos. Eram sete horas da manhã do dia 22, quando se correu a escotilha do navio em presença do comandante... E o que viu ele ? Um montão de 252 mortos, lívidos, cobertos de sangue, dilacerados (...)" (pag. 51).

Segundo a obra, a água que se deu aos amotinados estaria envenenada, além de tiros de mosquetão "para acalmar" os mais exaltados. Dos 4 ainda vivos, três faleceram a caminho do hospital e o único que sobreviveu tornou-se inválido. Ao contrário do "saber popular" e da "crença" de que tal fato teria sucedido no final das lutas da revolta da Cabanagem (de 1835 a 1840) o brigue "Palhaço" não foi afundado por tiros de canhão nas águas do rio Guajará, em frente ao mercado Ver-o-Peso. O futuro Barão de Guajará continua seu relato:

"Arrojados os corpos na lancha do navio (OBS: com mais um lanchão, este do Arsenal da Marinha, cita o escritor, ao pé da página) foram levados para a margem do rio, no sítio chamado Pénacova e aí sepultados em uma grande vala, que para isso se abriu", etc (pag. 51) Portanto, tudo leva a crer que existiram 2 navios com igual nome e, enquanto um atuou na Guerra Farroupilha (de 1835 a 45/46) no RS, o outro quase na mesma época se fazia presente em Belém do Pará.

"NATO" AZEVEDO (pela transcrição, em 13/junho 2022)

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NOTAS RECENTES (acréscimos)

Em meus primeiros dias no Pará (1984/85), quando pesquisei sobre o Passado de Belém a minha intenção era somente identificar a presença de "capoeiras" de antanho nas tropas do Exército e das Guardas imperiais daquela época. Assim, li "por alto" sobre as revoltas e nem percebi o trecho no qual Domingos Antônio Raiol cita mais uma rebelião, bem próxima da que teve o brigue "Palhaço" como referência e túmulo.

Nesta, de 14 a 17 de abril de 1823, foram presos... "em consequência os 271 cidadãos, condenados à morte por acórdão da junta de justiça (...) recolhidos ao porão da charrua Gentil Americana e da fragata Leopoldina no dia 7 de junho e, passados depois para a galera Andorinha do Tejo, seguiram presos para Lisboa", (pag. 37, in "MOTINS POLÍTICOS") Segundo o futuro Barão de Guajará, muitos morreram durante a viagem e, na pesquisa de Jorge Hurley, outros mais durante os quase 80 dias na prisão da Torre. Domingos Raiol declara que lá ficaram apenas 6 dias, sendo soltos graças ao empenho do "conde de Vila Flor... o maior defensor dos paraenses em Portugal". (idem, pag 37) É aí que "a porca torce o rabo"... o "advogado" dos revoltosos é, sem dúvida, o cônego Romualdo Antônio de Seixas, porém esse "conde de Vila Flor" seria outra pessoa, um nobre que governou Belém e que daqui saiu bem antes dos incidentes retratados.

A estranhar na obra de Jorge Hurley o fato de que a tragédia dos 255 assassinados no brigue "Palhaço" (1 sobreviveu) não ter sido citada. O que houve ? Um absurdo "lapso de memória" ?!

"NATO" AZEVEDO (em 19 de junho de 2022)