Por que é tão difícil criar um herói

Hoje, com certeza, uma das grandes dificuldades enfrentadas por um escritor é criar um herói que conquiste o público, levando-o a se identificar com ele. Podemos nota-lo principalmente quando vemos a grande popularidade dos vilões e dos anti-heróis. Não é raro que o vilão ou anti-herói termine por “roubar a cena” do mocinho ou mocinha da história, chegando a se tornar mais popular. E, infelizmente, o mocinho acaba ficando com a imagem de alguém idiota e sem graça ao passo que o vilão ou anti-herói conquista o público por ser mais “interessante”, “inteligente” e “charmoso”.

Um fato que merece ser mencionado é que não é raro o roteirista de um filme, autor de uma novela ou escritor de um romance fazer com que o vilão ou anti-herói tenha uma história de vida mais complexa, que explique o caminho que o levou à vilania ou a caminhar pela zona cinzenta. E isso faz com que o público termine por se identificar com personagens que não chamaríamos de heróis.

O que é exatamente um herói? Nas narrativas míticas da Grécia antiga, os heróis eram semideuses, filhos de deuses com mortais, dotados de poderes místicos ou de qualidades sobre-humanas. Esses heróis venciam monstros e realizavam verdadeiras façanhas. Entre os vários exemplos de heróis podemos citar Hércules(ou Heracles), que realizou doze trabalhos, Perseu que venceu a Medusa e Teseu, que venceu o Minotauro. Podemos conceber o herói como alguém dotado de sentimentos nobres, capaz de se sacrificar pela causa que defende e, por muito tempo, o público se identificou com eles. E o sucesso de personagens como o Superman pode comprovar isso. Já o vilão era alguém perverso, que queria destruir ou conquistar o mundo para submetê-lo à sua vontade. Dessa forma, o público sempre torcia para que o bem vencesse o mal, visto que a luta do bem contra o mal era bastante clara. O preto e o branco estavam bem distintos, sem que houvesse zonas cinzentas entre eles.

Porém, com o tempo, vilões foram ganhando espaço. As histórias deixaram de ser tão unidimensionais e ganharam tramas mais complexas. Isso refletiu na maneira como vilões passaram a ser retratados, ganhando um certo grau de humanização. E foi surgindo um novo tipo, que não pode ser classificado nem como herói nem como vilão. Esse tipo é chamado de anti-herói. O anti-herói muitas vezes age movido por vingança ou revolta. Ele não quer conquistar o mundo como o vilão nem é alguém movido por sentimentos nobres como o herói.

Vemos o quanto os anti-heróis são populares principalmente no universo dos quadrinhos. Eles diferem dos heróis e vilões por não serem exatamente bons nem maus. Alguns até chegam a dizer que lutam por uma causa justa, embora usem métodos nada ortodoxos e ultrapassem limites que os heróis não ousariam ultrapassar. Entre muitos anti-heróis podemos citar o Rorschach(de Watchmen), Wolverine, Spawn e O justiceiro. Mesmo que estes quatro digam estar lutando pelo que é certo, não raro abusam de métodos violentos e ilícitos. E ninguém pode negar que eles são bastante populares.

Na indústria cinematográfica, temos um exemplo clássico de como os anti-heróis podem conquistar o público: ...E o vento levou, que consagrou os personagens Scarlett O’Hara e Rhett Butler no imaginário popular. Não dá para negar que se por um lado a anti-heroína vivida por Vivien Leigh tinha um caráter bastante duvidoso, chegando a flertar descaradamente com Ashley Wilkes – o personagem honrado e cavalheiresco – por outro não podemos deixar de admirar sua perseverança. E muita gente que assistiu ao filme, com certeza, deve ter se perguntado o que ela via em Ashley (vivido por Leslie Howard) que, com toda sua integridade, não passava de um abobalhado, quando tinha ao seu lado o charmoso Rhett Butler, um anti-herói que encantava com seu descarado cinismo.

Também não é de hoje que os vilões têm conquistado um amplo espaço. É graças a eles que existem os conflitos e podemos mesmo dizer que, sem os vilões, os heróis não teriam razões para existir. O que seria do Batman se não fosse o Coringa ou do Superman sem o Lex Luthor, não é mesmo? Boa parte do sucesso da novela Vale tudo se deve às vilãs Maria de Fátima e Odete Roitman e, na novela Amor à vida, o vilão Félix vivido por Mateus Solano se tornou mais querido do que a mocinha Paloma de Paolla Oliveira, que ficou marcada como insossa e apática.

Vale citarmos as novelas mexicanas, em que os vilões costumam ser muito mais inteligentes e os heróis chegam a nos causar raiva, de tão patetas. Um bom exemplo é a novela A usurpadora, em que a vilã Paola fazia de tudo para prejudicar a heroína Paulina, na qual tínhamos vontade de dar uma boa surra para deixar de ser tão otária. Aliás, as vilãs das novelas mexicanas são realmente antológicas. Não podemos esquecer Angélica (de Marimar), Soraya(de Maria do Bairro) e Rubi(de Rubi). Enquanto as vilãs mencionadas encantam com seu charme, as mocinhas são choronas e sofredoras. Um caso raro de heroína que deu a volta por cima e se tornou ardilosa e vingativa é o da protagonista Marimar que, depois de ser humilhada e maltratada por todos – até mesmo pelo mocinho da história – transformou-se numa mulher rancorosa e foi até o limite para se vingar de todos.

A indústria do entretenimento tornou-se pródiga em criar vilões que chegam a ser muito mais interessantes do que os mocinhos, tornando-se verdadeiros ícones do universo dos quadrinhos, filmes, livros e novelas. Não dá para falar de Star Wars sem mencionar o vilão Darth Vader (e o anti-herói Han Solo) de Batman sem citar o Coringa ou a Mulher-gato ou de Sexta-feira 13 ou a Hora do Pesadelo sem falar de Jason Voorhees ou Freddy Krueger. E nossas novelas tem vilões realmente carismáticos como a Branca de Por amor, a Bia Falcão de Belíssima, a Nazaré de Senhora do Destino e Felipe Barreto de O dono do mundo. Aliás, quando muitas dessas novelas foram exibidas, o público classificou os protagonistas como bobos e desprovidos de personalidade, ao passo que os vilões, por contestarem a ordem e serem subversivos, atraíam mais a atenção.

Observando tudo isso, nós, escritores, constatamos que o público cada vez mais tem se encantado por tipos não muito certinhos e nos perguntamos como compor heróis íntegros sem que estes pareçam idiotas e insossos. Está certo que, na vida real, nem tudo é sempre tão preto e branco e existem muitas tonalidades de cinza, o que torna mais árdua a tarefa do escritor em compor um herói ou heroína com a qual o público possa se identificar. O herói não precisa ser um modelo de perfeição, claro, pois todo mundo tem defeitos e, sendo ele humano, ele pode cometer erros. Mas deverá aprender com os mesmos e manter sua integridade.

O herói não precisa mais ser tão perfeito e invencível como Beowulf* e Aquiles**, da Ilíada. Ele pode ser vulnerável, ter dúvidas e fragilidades, assim como qualquer um de nós. Mas o escritor que o cria, além de cria-lo como alguém com um lado frágil, precisa tomar cuidado para que ele seja uma pessoa forte, capaz de vencer as adversidades. E o que muitas vezes vemos é que, ultimamente, os criadores de histórias parecem se esmerar mais na criação de vilões e anti-heróis do que na dos heróis propriamente ditos. Com frequência, os heróis e heroínas podem parecer frágeis, hesitantes e tolos ao passo que os vilões e anti-heróis são mais fortes e espertos.

A dificuldade em criar heróis tem feito com que muitos escritores de romances, filmes, séries, histórias em quadrinhos e mesmo de novelas tenham passado a criar heróis um tanto sombrios e cinzentos ou até mesmo mudado o perfil de heróis antigos, como o Batman, que ficou bastante sombrio e cheio de conflitos internos. Em certos momentos, podemos dizer que o Batman está mais para anti-herói do que para um herói.

Se antes podíamos fazer os heróis quase perfeitos, cheios de superpoderes e verdadeiros modelos de virtude e integridade, hoje esta é uma estratégia que pode levar o público a considera-los certinhos demais e mesmo chatos. Um exemplo de herói criado pelos quadrinhos que antes era perfeito demais e hoje se tornou conflituoso é o do Superman. Suas histórias, que antes eram mais inocentes, hoje são mais sombrias e violentas.

Então, nós, como escritores, precisamos admitir que criar heróis e heroínas não é fácil, ainda mais se eles forem seres humanos, com todos os defeitos que nós possuímos. Como criar um herói íntegro sem que este se transforme num chato? Como fazer com que o público se identifique com ele? Precisamos ter estas perguntas em mente enquanto escrevemos para que o personagem tenha um perfil real e plausível e não fique estigmatizado como um imbecil sem graça.

Os vilões e anti-heróis possuem um charme o qual não podemos negar. E todos nós, em nosso íntimo, temos instintos perversos e sentimos vontade de transgredir regras e isso com certeza se reflete no fato de que os vilões e anti-heróis têm conquistado cada vez mais espaço na ficção. Não é raro que, em séries que passam na televisão – como Os diários do vampiro – o público torça para que a mocinha da história fique com o cara que não é tão certinho assim e outro fato que pode ser ressaltado é o de que vilões e anti-heróis têm estrelado seus próprios filmes ou séries. Bons exemplos são o filme Malévola (estrelado por Angelina Jolie) e Esquadrão Suicida, que dá bastante ênfase à vilã Arlequina (das histórias do Batman). Wolverine e Deadpool, que são anti-heróis, há tempos ganharam o direito de estrelar suas próprias produções.

Então, como criar um mocinho ou mocinha que seja convincente ? Ele ou ela não precisa ser perfeito demais, até para não ficar artificial. E é necessário que seja inteligente e esperto ou esperta para não ficar marcado como boboca. Heróis e heroínas passivos e bobocas são bastante cansativos e não despertam(com razão) a simpatia do público leitor e/ou espectador. Um outro fator a ponderar é que deve ser ressaltado que não é fácil ser íntegro, honesto e decente em um mundo que tem tantas tentações e onde ser bom nem sempre é reconhecido. No caso do herói ser alguém que sofre injustiças, o escritor ou roteirista deve ter a cautela de não fazê-lo ser alguém que vive a se lamuriar pelas coisas não terem dado certo em sua vida, visto que o público se identifica com pessoas que enfrentam e vencem as adversidades.

Não há fórmulas prontas para criar heróis verossímeis, o que torna o trabalho de quem deseja cria-los bastante difícil. Então, o escritor deverá lançar mão de bastante criatividade e sempre manter em mente que precisa criar alguém com um perfil real.

• Beowulf é um poema épico da literatura inglesa e narra as aventuras do herói Beowulf, que mata o monstro Grendel.

** Aquiles é um herói da mitologia grega e exerce importante papel na Guerra de Tróia.