Esta crônica é uma homenagem ao desenhista Maurício de Souza, orgulho de Mogi das Cruzes e patrono da AMHAL (Academia Mogiana de História, Artes e Letras), pela feliz iniciativa de lançar um livro sobre o nosso rio Tietê.


    " O límpido riacho descia celeremente pelas fendas da montanha, cantando feliz a sua canção de águas cristalinas e ligeiras.

Serpenteando entre pedras e árvores ele parecia um menino feliz, pulando barrancos e formações rochosas, formando pequenas e lindas cachoeiras, que pareciam véus de noiva a dançar sobre a luz do luar.

Feliz, rápido como um cabrito montês, ele seguia seu caminho até um grande rio, dezenas de quilômetros abaixo, no qual se incorporava e depois seguia até o mar.

Era uma existência feliz e tranquila, que ele viveu por centenas de anos.

Um dia, um pequeno abalo sísmico deslocou uma grande pedra na montanha e ela caiu justamente no meio de uma pequena garganta, por onde o riacho passava. Obstruindo totalmente a passagem das águas, elas tiveram que escorrer para um dos lados, buscando um novo curso. 

O lépido riacho logo achou um novo caminho e recomeçou a sua marcha para chegar ao mar, que é o objetivo de todos os cursos de água do mundo.

Mas esse novo caminho era mais longo, e em determinado trecho ele tinha que passar por um pântano fétido e imundo, cheio de matéria morta e estranhas formas de vida. Ele, que só hospedava em suas águas cristalinas, lindos e gordos peixinhos coloridos, logo se viu invadido por criaturas feias, cascudas e mal cheirosas, que traziam para suas límpidas águas uma coloração ocre e um cheiro de matéria pútrida. 

Transtornado, o riacho reclamou ao deus das águas pela sorte tirana e ingrata que pusera aquela pedra no seu caminho. Ela o obrigara a mudar de curso e vir parar naquele pântano horroroso. Como poderia, agora, manter sua pureza num ambiente daqueles? 

“ Você pode misturar-se às águas do pântano” disse o deus das águas, “mas não precisa, obrigatoriamente, tornar-se como elas. Quando a pedra obstruiu o seu  leito, você procurou um caminho para sair e encontrou”, continuou ele. “Faça o mesmo agora. Lute. Movimente-se. Continue a procurar o seu caminho para o mar. Se você se conformar a esse pântano, logo morrerá e também apodrecerá, como tudo que tem nele."

O riacho olhou para todos os lados e ficou desesperado. Parecia não haver meio de atravessar aquelas paisagens lodosas e nauseabundas sem se misturar à elas. Por toda parte era a mesma coisa. Uma imensa massa líquida de águas estagnadas.

No entanto, continuava a se movimentar, à procura de um caminho para o mar. E foi então que percebeu que as suas águas, embora tivessem se tornado um tanto turvas, não estavam se misturando às do pântano. Nem tinham aquele cheiro fétido.

Entendeu que as águas do pântano tinham aquela cor e exalavam aquele cheiro porque estavam paradas. Haviam se estagnado em meio a uma floresta de madeira podre e organismos mortos, que servia de pasto para todas as criaturas que se alimentam da matéria decomposta. 

Ele então acelerou a sua marcha e passou a se movimentar mais rápido dentro daquele pântano. Imediatamente, formou-se ali um canal por onde a sua água começou a fluir. E era fácil perceber que naquele lugar do pântano não havia estagnação. As águas corriam.

Logo, aquela parte do pântano passou a ser um guia para quem nele se perdesse e quisesse encontrar um caminho para sair daquele lugar horrível. Era só seguir as folhas de árvores que rolavam mansamente em meio aquele imenso lodaçal, acompanhando o movimento do imperceptível curso de água, que encontrara um caminho para escapar daquela podridão. 

Depois de alguns quilômetros serpenteando em meio à massa lodosa, finalmente, suas águas escapavam do pântano e se ele tornava um vistoso igarapé.

Suas águas não eram tão límpidas quanto eram na serra, mas estavam puras e sadias. Apresentavam-se prenhes de vida, com muitas espécies novas. Estava mais encorpado também. Depois de mais alguns quilômetros transformara-se em um rio bem maior. Já não precisava se integrar a outro curso de água para fazer o caminho até o mar. Ele, que antes era tributário de outro rio, passou a ser tronco principal para centenas de outros rios e riachos que afluíam ao seu leito em busca de um caminho para o mar.  

Feliz, ele seguiu o seu caminho, sabendo que tinha cumprido, com galhardia e eficiência, a sua missão. Não se deixara vencer pelos obstáculos nem se contaminara pela podridão com a qual teve que conviver. Tornara-se um caminho seguro em meio a um escuro e fétido pântano. Tudo porque aprendera a agir em vez de conformar-se e se deixar apodrecer.

"Só os mortos apodrecem", era  a frase que suas águas pareciam murmurar, quando recebiam o abraço do  mar.