A mudança psíquica em dois traumas

Introdução

Mudar é difícil, não mudar é fatal

W. Pollard

Este artigo almeja analisar as dificuldades de mudança psíquica em dois traumas: o trauma do absoluto e outro. Em ambos, certas representações impedem que o desejo do sujeito seja efetivado na vida adulta – em razão das falhas do sistema das representações de representar os traumas. Nesse contexto, a mudança psíquica é estudada sob o prisma das representações e dos afetos do desejo, que vão mudando ao longo da análise. Para estudá-la, primeiramente, aportes teóricos de vários psicanalistas constituem as bases para pensar esse tema. Algumas propostas teóricas da autora se articulam a esses aportes e a dois casos clínicos – trabalhados por meio do método clínico psicanalítico.

Foco central do trabalho analítico, a mudança psíquica revela-se deveras complexa. Na análise, o relato do paciente permite depreender questões significativas para seu desejo. Este pode se configurar a partir de conteúdos traumáticos herdados por ele, mas com a análise eles podem dar lugar a conteúdos harmônicos quanto a seu desejo. No trauma do absoluto, os fatores que embargam a mudança psíquica são: o sobre-investimento das representações por ódio e horror, a identificação e a contra-identificação, bem como a confusão mental ligada às proto-representações, à indiscriminação entre as representações e aos paradoxos mentais. Por sua vez, o segundo trauma revela representações de si, que se coadunam com os valores da cultura contemporânea. Nesse trauma, a influência da ancestralidade não fica evidente e o bloqueio contra a satisfação do desejo é moderado.

De antemão, alguns preceitos sobre a mudança psíquica são pensados em psicanálise. Zimerman (1999) descreve alguns critérios sobre a ‘cura’ analítica, que caracterizam a mudança psíquica. São eles: modificações na qualidade das relações objetais; menor uso de mecanismos primitivos de defesa; renuncia às ilusões narcísicas; integração de partes reprimidas do eu; capacidade de lidar com frustrações, perdas e luto; consideração pelas outras pessoas e capacidade de reparação pelos possíveis danos infligidos a elas; abrandamento do superego; liberação de áreas autônomas do ego e uso de suas capacidades: pensamento,

linguagem, juízo crítico, comunicação, criatividade e ação; senso de identidade; aceitação da dependência do outro; autenticidade e autonomia; independência das expectativas e regras do outro junto com a capacidade de vivenciar relações afetivas inteiras, livres e diferenciadas de si.

Elementos psicanalíticos acerca dos traumas

Para examinar os traumas que atingem o desejo, cabe começar com um psicanalista que trabalha com esses conceitos e com outro que estuda os traumas de natureza ancestral.

Herrmann (2001) diz que o desejo constitui a fonte interior que determina as emoções, bem como a forma geral de relação com o mundo. O exercício de diferentes possibilidades do desejo não se efetiva porque certos nós traumáticos se formaram nele, impedindo seu fluxo. No que diz respeito ao trauma transgeracional, Eiguer (1997) aponta os lutos muito difíceis, nos quais os filhos, vivem como seus, os traumas de seus pais ou avós. Na identificação atributiva, o pai atribui ao filho uma vivência interior, um traço pessoal, certa representação de seus objetos internos. Essa identificação, tão estruturante quanto desorganizante do eu, atua nos processos alienantes da transmissão transgeracional.

Apesar da riqueza de suas produções teóricas, eles não abordam os investimentos de amor e ódio nas representações do desejo, devido a um trauma arcaico – o trauma do absoluto.

A seguir, a concepção da autora de que o ódio gera forte fixação das representações no sistema faz uma interlocução com dois autores. Ao discutir a relação entre o eu e o mundo externo, Freud (1915) aponta que o ódio é mais antigo que o amor na relação de objeto. Quanto ao trauma infantil, Ferenczi (2011) afirma que o ódio constitui um meio de fixação mais forte que o amor e a ternura.

Portanto, Freud reflete sobre as relações de objeto e a gênese do ódio nelas, enquanto o segundo pensador aponta a fixação do ódio na psique. Contudo, suas reflexões não se referem ao plano do desejo, suas representações e seus afetos. Contudo, esses conceitos dialogam com as ideias da autora sobre o desejo e a mudança psíquica.

A clínica e o cotidiano fornecem exemplos de diferenças de relação do sujeito com seu desejo. Certa pessoa é apaixonada por um projeto de vida, por um interesse vital e por outra pessoa. Tende a ter autoconfiança, ousadia de pensamento e de ação: vive o vigor de seu desejo. Ela se representa como autossustentada, competente, forte e livre – no uso de seus recursos internos. Outra pessoa está desesperada frente aos seus conflitos internos e ao desafio de mudar sua vida. Ela se representa como desamparada, incompetente, frágil e prisioneira – sob uma paralisia torturante. Seu sofrimento tende a perdurar, visto que seu sistema encontra-se sob estase/paralisia.

Em virtude da história e da pré-história do sujeito, seu desejo adquire uma configuração mais ou menos distante de seu âmago – original e singular. Pois, as várias intensidades dos traumas produzem efeitos mais ou menos deletérios sobre a pujança do desejo.

Ao se investigar os determinantes traumáticos que atuam de modo diferencial sobre o desejo, depara-se com uma variedade de condições: nível psíquico atingido pelo trauma, nicho de origem do trauma, a estrutura e a dinâmica psíquica dos membros da família, a intensidade de seu ódio e de suas defesas contra ele, o discurso parental sobre o filho, a relação dos pais com seus próprios pais e seus irmãos em sua infância; a posição simbólica do filho junto aos seus pais; a posição simbólica projetada por eles no filho; a fase psicológica do casal na qual a criança é criada; o trauma vivido por um membro da família e sua influência sobre os demais. Portanto, várias situações fazem com que cargas diferentes de ódio sejam depositadas no filho.

Atingindo um nível psíquico primitivo, o trauma gerado pela ameaça à vida pode ser induzido por: fome contínua, estupros, assaltos brutais, ruína financeira, guerras e fenômenos naturais – furacões, maremotos e terremotos. Outros traumas são relacionais-familiares: uma gravidez indevida que muito envergonha a mãe do bebê, a desconfiança do homem quanto a ser seu pai e o uso do bebê pela mãe para chamá-lo à responsabilidade. Essas circunstâncias potencializam seus efeitos com base na estrutura e na dinâmica psíquica dos pais e do filho, bem como na intensidade de seu ódio e de suas defesas. Nessa medida, a repressão do ódio visa abolir as facetas de fúria e de descontrole inerentes a ele, mas pode destituir o adulto de sua força de enfrentamento de situações adversas. Dentre as predisposições inerentes a uma estrutura psíquica, certas defesas são reforçadas a partir da história de vida de seu portador. Assim, a junção entre propensões estruturais e defesas do sujeito se revela à larga na clínica psicanalítica. A demanda de controle sobre si e o outro – característica da organização obsessiva e paranoica – intensifica-se a partir do domínio sádico dos pais sobre essas estruturas. Igualmente, a tendência histérica à conversão somática e ao drama encontra em pais hipocondríacos, dramáticos e agressivos, os aguilhões certeiros para as manifestações extremas desse quadro. Igualmente, a dinâmica da família – com seus conflitos típicos, seus ideais, seus segredos, suas alianças – tem relação direta com os traumas, que impactaram sua formação.

Além disso, o discurso parental sobre o filho veicula elementos conscientes e inconscientes – basilares na construção de seu desejo. Entram nessa formação, a relação dos pais com seus próprios pais e seus irmãos em sua infância; a posição simbólica ocupada por ele junto aos seus pais – ser obediente ou ser do contra; a posição simbólica projetada por eles no filho, que repete as de sua infância; a fase psicológica do casal na qual a criança é criada – numa fase de namoro ou de briga dos pais; os traumas vividos por um membro da família e sua influência nos demais – o abuso da criança por um tio ‘protetor’ da família e o segredo obrigatório dos demais sobre isso, entre outras. Posto isso, certas formas de relação – recorrentes no cotidiano da família – propagam traumas longínquos transmitidos aos filhos, a cada geração da família.

O trauma do absoluto e o sistema das representações

O trauma do absoluto nomeia o sobre-investimento de ódio e horror em certas representações: ser abandonado, desamparado, rejeitado, fracassado, devedor, não amado, sem lugar no mundo, para sempre, p. ex. Elas inibem a potência do desejo, quanto a gerar movimentos internos para ele ser realizado. De forma inversa, outras representações colaboram para seu exercício na vida adulta: ser inteligente, ser amado, ser escolhido, ser competente, ser autossustentado, ser diligente, ser ativo, entre outras (Almeida, 2003).

O absoluto alude a priori aos sobreinvestimentos de afetos como ódio e horror. Essa ideia faz parceria com os investimentos e os subinvestimentos, na economia psíquica. No plano da metapsicologia, Freud (1915) pontua que o enfoque econômico remete às alterações das quantidades de excitação. No inconsciente, há conteúdos catexizados com maior ou menor força pela libido.

Contudo, a especificidade do absoluto em relação aos conceitos freudianos envolve as representações do desejo – e não os representantes ideativos dos instintos – juntamente com seu sobre-investimento por ódio e horror – e não por libido.

O sistema das representações tem o potencial de representar as diversas vivências mentais do sujeito. Sua mediação representativa se torna deficiente a partir dos traumas, que atravessam as gerações da família. Dentre eles, o trauma do absoluto indica o radical legado atávico, que incide sobre seu refém. Ele avassala a possibilidade do desejo ser mobilizado rumo à sua realização – em suas ‘feições’ mais autênticas e únicas. Ele se revela pela forte magnitude do ódio, pela falência do sistema ao tentar representá-lo e pela ruptura dos vínculos entre o sujeito e seus objetos. Em decorrência disso, o sujeito fica aprisionado a um sofrimento psíquico vivido como eterno e inescapável (Almeida, 2003).

O desejo e o sistema representacional dos membros da família estão sujeitos a vários fatores, que atuam sobre eles. As representações, as proto-representações, os afetos, os temas do desejo, os traumas, os paradoxos, a identificação e a contra-identificação são elementos que perpassam as relações entre pais e filhos (Almeida, 2010).

O sistema representacional contém as representações inconscientes e as conscientes atribuídas ao sujeito por seus pais: ser inteligente, ser estúpido, ser aplicado, ser negligente, ser amado, ser odiado, ser capaz, ser incapaz, etc. Nas relações de forte teor amoroso tendem a ser produzidas representações de sujeito e de objeto investidas de amor: ser o filho amado de um pai amoroso, amado e amável. Nas relações de forte conteúdo agressivo tendem a surgir representações de sujeito e de objeto investidas de ódio: ser o filho odiado e excluído de um pai agressivo, odiado e odiável. Essa segunda forma de díade entre as representações assinala um trauma associado a forte ódio. As representações do sujeito fazem parceria com as representações de seus objetos, que conjuga ancestrais, pais e filho na família. O conjunto de representações, afetos, vínculos e fantasias constituem seu patrimônio representacional (Almeida, 2010).

Nesse sistema encontram-se, ainda, as proto-representações de sentido obscuro, contidas em frases emitidas pelos pais. Parte de seus significados é clara, mas outra não o é. ‘Eu dei meu sangue, meu suor e meu sacrifício pra essa filha estudar; hoje ela fica no mole e eu só recebo patada e resposta besta’ é uma frase paterna dirigida à filha. Nela, o caráter dramático, o sofrimento com o corpo e o trabalho árduo desse pai estão implícitos. E ainda, sua doação supostamente grandiosa que deixa o melhor para a filha, que não o merece. De maneira igualmente velada, representa sua filha como burra, ingrata, mole e poupada da dureza do trabalho. Alguns afetos estão ocultos nessa frase: o pretenso amor paterno, que suscita culpa na filha, que deve reprimir seu ódio a ele e sofrer por ser ingrata. Nova frase desse pai veicula outras proto-representações: ‘Filhos trocados por m... ainda saem caro’. Além da confusão mental gerada pelas duas frases, há uma espécie de soma confusional das proto-representações de cada uma. Alguns focos traumáticos são perceptíveis em ambas: certo valor atribuído pelo pai a si mesmo; sua grandeza como pai que se mistura ao seu sofrimento nessa função; sua imensa insatisfação e o ínfimo valor projetado por ele nos filhos. A essas proto-representações e focos traumáticos, se juntam certas representações conscientes atribuídas por ele à filha em suas constantes brigas: burra, débil mental e doente mental. A transcrição desse mandato parental – de infelicidade da filha – do domínio das proto-representações para o das representações, a análise de seus afetos e sua elaboração demanda um trabalho representativo do sistema, fadado ao fracasso. Tão-somente uma longa análise permite elaborar o sofrimento herdado por essa garota, de modo a tornar autônomo seu desejo (Almeida, 2010).

Compreende-se, então, que as vivências traumáticas comportam intensa dor, causam confusão mental entre o eu e seus objetos originários e predispõem-no ao sofrimento mental. Nos estados mentais vinculados às proto-representações, impera a confusão mental e a falta de clareza sobre seus significados. Nos estados mentais ligados à indiferenciação entre representações, há confusão entre representações da criança e das figuras parentais – que a fizeram sofrer. Assim, uma representação compatível com seu desejo − ser grande − pode confundir-se com outras incompatíveis com ele − ser sádico, insensível e rude – como seu pai. Também ter valor – coerente com seu desejo – se confunde com ser convencido e ser vaidoso como seu pai – incoerentes com seu desejo. Quando ocorre essa confusão, as primeiras representações têm seu significado distorcido. Assim, as representações centrais para o movimento do desejo do adulto – ser grande, ter valor – confundem-se com as de seu sofrimento psíquico com seus pais, na infância. Essa confusão entre elas bloqueia o impulso do desejo, para além do sujeito.

A esses elementos se juntam dois processos de constituição do eu e mecanismos de defesa: a identificação e a contra-identificação da criança com seus pais e seus ancestrais.

Quanto à primeira, Kaës assinala que a identificação é o processo maior da transmissão da vida psíquica entre as gerações da família.

A contra-identificação do sujeito – com seus pais e ancestrais – prepondera sobre sua identificação com eles no trauma do absoluto. A contra-identificação constitui um processo psíquico no qual o filho se opõe a características odiadas de seus pais em sua infância, às quais atribui seu sofrimento. Assim, certo filho investe de ódio ser trabalhador, ser determinado, ser persistente como seus pais, que o abandonaram por causa do trabalho. Essa indiferenciação entre representações favoráveis e desfavoráveis ao seu desejo – no adulto – se deve à contra-identificação da criança com seus pais. Contudo, elas favorecem a realização de seu desejo em sua vida adulta (Almeida, 2010).

A contra-identificação e a indiferenciação entre representações se associam a temas do desejo, proibidos quanto a sua realização na família. Esses temas contêm representações associadas entre si. Num adulto, sucesso remete aos projetos de vida viabilizados por ele – na realidade compartilhada com seus pares. Esse tema de seu desejo alicerça-se nas representações de ele ser bem sucedido, ser empreendedor, ser autossustentado, ser determinado. Porém, a fixação do ódio em ser desamparado, ser rejeitado, ser fracassado – junto a seu pai – impede que ser bem-sucedido, ser empreendedor, ser autossustentado e ser determinado adquiram propulsão, para ele consolidar seu desejo de sucesso. Nessa confusão mental, o sujeito se identifica com representações de atributos parentais incongruentes com seu desejo – ser insensível com suas conquistas, como seu pai – e se contra-identifica com representações de atributos parentais congruentes com ele – ser bem sucedido, ser empreendedor, ser autossustentado, ser determinado – na vida (Almeida, 2010).

Ademais, certos paradoxos vividos junto às primeiras figuras de amor ameaçam a organização psíquica do sujeito. Quando a criança vivencia uma profunda contradição emocional, mas não pode compreendê-la nem elaborá-la minimamente, um paradoxo se fixa no sistema representacional. Uma garota de seis anos flagra sua mãe com um homem desconhecido na cama, mas ela nega a percepção da filha – que guarda o segredo materno. Nesse caso, ser traidora de seu pai − que confia nela – e ser traída por sua mãe traidora − dela/filha e de seu pai – é paradoxal. Contudo, ela guarda segredo para manter a suposta estabilidade familiar. Ser a guardiã do segredo associa-se a ser a guardiã da estabilidade familiar – representação de si investida por amor. Porém, ser traída e ser traidora são representações paradoxais de si catexizadas por ódio. Logo, a confusão mental se impõe a ela (Almeida, 2010).

Nesse âmbito, Racamier (1983) define o paradoxo como uma formação psíquica singular, que liga duas proposições incompatíveis. Ele submete o sujeito a duas ordens inconciliáveis, sendo impossível obedecer a uma, sem desobedecer a outra. O paradoxo promove uma agressão ao eu, que suscita um ódio intenso em sua vítima.

O desfiar do sofrimento psíquico numa família nem sempre produz um trauma grave. Nessa situação, o assujeitamento do desejo da criança ao de seus genitores pode combinar com os valores culturais vigentes e aguçar saídas patológicas para suas feridas narcísicas. Num homem, ser o garanhão, ser o pegador e ser o gostosão se ajustam aos valores culturais contemporâneos. Em compensação, na clínica psicanalítica, elas assinalam a divisão de seu desejo, seu uso como defesa contra representações depreciativas de si – ser feio e ser promíscuo – e sua dificuldade de integrar representações harmônicas com seu desejo.

Em geral, os traumas promovem feridas narcísicas no sujeito, que geram ódio aos objetos, levam à projeção desse ódio neles e esse material é introjetado pelo primeiro. Assim, a projeção e a introjeção desses conteúdos fazem com que as representações do sujeito e de seus objetos sejam igualmente investidas de ódio. Mais especificamente, a destrutividade do trauma do absoluto demanda crescentes defesas do sistema representacional contra o ódio. Sua insuficiência funcional faz com que parte das representações adquira uma forte valência. Então, suas representações se tornam fixas – dada a força de fixação do ódio – que as investe. Ao encerrarem grande magnitude afetiva, o desejo não pode ser materializado no presente.

Em ambos os traumas, a fixação de representações inibidoras do desejo acarreta a paralisia do desejo – reduzido à mera possibilidade de ação. Pois, diante das vivências que produzem sofrimento no adulto, o sistema das representações volta a investir as representações fixas do trauma do absoluto. Em sua análise, a integração das representações propulsoras do desejo tende a ser provisória. As novas tentativas de integrá-las ao estrato consciente do sistema falham – mantendo o bloqueio do desejo. Porém, no continuum da análise, a integração das representações coerentes com o desejo se consolida (Almeida, 2010).

Em síntese, os referidos fatores traumáticos favorecem a estase/paralisia representativa do sistema das representações e dificultam a mudança do sujeito nos dois traumas examinados. No trauma do absoluto, esses processos perpetuam o sofrimento atávico, de modo intenso. Nele, o vínculo do sujeito com seu desejo tende a ser substituído pelo desejo de não-desejo, ligada a sua ruptura dos vínculos consigo, com o outro e o mundo. No outro trauma, esses processos são mais facilmente administrados na análise.

Dois tipos de trauma na clínica

A seguir, apresentam-se duas histórias clínicas relativas aos dois traumas.

Os pais da primeira paciente viveram traumas em sua infância, com elementos em comum. Ambos foram os segundos filhos em suas famílias, tendo sido traumatizados por vivências de suas irmãs mais velhas. O pai da paciente, aos seis anos, viu sua irmã mais velha fugir com um homem casado, que abandonou sua família. O escândalo público – que se seguiu a esse fato, numa pequena aldeia – gerou intensas brigas entre seus pais/avós da paciente. Sua mãe/avó da paciente foi acusada – pelo marido – de ser a grande culpada da vergonha e da desonra vividas pela família. Esse pai passou a beber mais do que bebia antes, bateu ainda mais em sua esposa e seus filhos, abandonou sua família – que passou fome – e, por fim, se matou. A mãe da paciente muito sofreu com os abusos do padrasto contra ela e sua irmã mais velha. Esta acabou por engravidar dele, fez um aborto alardeado no lugarejo onde moravam, roubou dinheiro dos vizinhos, fugiu de casa e, por fim, se tornou prostituta numa cidade próxima. Dessa forma, sua mãe/avó da paciente amaldiçoou ter tido filhas-mulheres, bem como ter constituído uma família.

Seus pais se casam em meio à gravidez de sete meses de sua mãe e às ameaças de morte contra ele, por parte da família dela. O clima de brigas entre o casal aumenta, após o casamento. A despeito de ser casado, ele não esconde suas saídas com prostitutas e tem dois filhos com uma delas. Ao chegar bêbado da rua, ele bate na esposa e nos filhos e, ainda, corre atrás deles com uma faca – que fogem para a casa dos vizinhos. Eles chegam a passar fome, pois o pai entra e sai dos empregos, de modo que a família é despejada de casa, algumas vezes.

Na paciente/filha mais velha do casal se depositam os conflitos parentais, de forma devastadora. Com tendências obsessivas e esquizóides, ela foi submetida ao despótico poder paterno, bem como ao ódio e ao controle extremado de sua mãe. O desejo de seu pai sempre se opunha ao seu: ao pedir a ele algo desejado, ela sempre ouvia que tinha mania de grandeza. Além disso, ele a humilhava e envergonhava em público. As seguintes frases – contendo proto-representações – eram dirigidas a ela: ‘eu dei meu sangue, meu suor e meu sacrifício pra essa filha estudar; hoje ela fica no mole e eu só recebo patada e resposta besta’ e ‘filhos trocados por m... ainda saem caro’. Além disso, frente à falta de dinheiro do casal, sua mãe controlava a comida, vestia os filhos com roupas ruins e gritava muito com eles: ela muito se esmerava para manter a miséria emocional da família. A repressão da sexualidade da paciente foi agravada pelos traumas de seus pais com suas irmãs mais velhas. Então, nela se cristalizou um rígido controle quanto ao amor e ao sexo, de modo que ela nunca teve um envolvimento amoroso-sexual. Bastante agredida por ambos os pais, ela associava a grandeza pessoal e financeira à pequenez amorosa, assim como confundia ser grande com ser sádica, insensível e cruel – como seu pai. Além do mais, homem, amor e sexo eram associados a extremo perigo para seu eu, à intensa vergonha, ao pavor da perda de seu autocontrole e a escândalo sexual em público.

No caso do segundo paciente, o valor cultural de seus sintomas – oriundos de seu trauma – se associa aos ganhos secundários de sua neurose infantil. Assim, sua forma de ser e estar no mundo se cristalizou nele – com base em sua infância. Apesar de seu sofrimento, o veio transgeracional de seu trauma não aparece de forma evidente, no período de sua análise.

Certo empresário vive grande apogeu em termos de sucesso profissional e financeiro. Após sair com incontáveis prostitutas, apaixona-se por uma moça com metade de sua idade. Ela mora na mesma rua que ele, sua esposa, seus filhos e seus pais. A visão de seu objeto do desejo constitui um fator de cega atração nele. É dirigida à garota, devido a sua juventude, sua beleza e ao forte prazer sexual vivido com ela. Essa paixão caudalosa alimenta-se do fato de ela ter lhe dito que ele era especial e que o olhava, há tempos. Então, ele vê nela, o amor, a vida, a juventude, o prazer e o sucesso, que ele não acredita serem seus. Em sua infância e adolescência, ele foi visto como mau, terrível, irresponsável e um nada. Ele roubava as frutas dos vizinhos, buscando a mais alta, a mais bonita, a mais gostosa. Admirado pelos outros garotos, ele era malvisto pelos vizinhos e era surrado pelo pai. Suas surras foram vistas em público por inúmeras pessoas. Muitas surras foram injustas, devido à predisposição de seu pai de culpá-lo pela gravidez de sua mãe. Contudo, seu pai se aproximava dele e lhe pedia desculpa, após surrá-lo. Por sua vez, sua mãe o ameaçava com surras. Porém, ela fazia um bolo gostoso e o agradava, quando ele tinha dinheiro – usando-o para obter o que ela queria. Todavia, seu descrédito público foi amenizado por uma prima, que sempre acreditou nele. Ela segurou seu pai, quando ele bateu no filho na frente de várias pessoas. Sua prima afirmou que seu tio/pai do paciente morreu para ela, ao bater nele em público. Desse modo, formou-se uma sequência de representações em sua psique: atração por um objeto de desejo gostoso- proibição de seu desfrute- ameaça de punição - prazer do desafio à lei- roubo do objeto desejado- delação – punição em público.

Para o paciente, a figura feminina boa traz amor, acolhida e crédito para ele. Assim, ele encontra certa estabilidade emocional no olhar feminino. Porém, a escolha de sua namorada favorece seu intenso ciúme, sua forte vigilância sobre ela e muitas brigas. Jovem, bonita e gostosa, ela é cobiçada por outros homens. Dessa forma, ele se torna o macho poderoso e admirado por outros machos, ao tê-la para si. Por outro lado, ele tem pavor de ser novamente traído por ela. Ela já transou com outros homens, inclusive quando já estava com ele. Todavia, a racionalidade dela – que impõe limites à sua paixão destemperada – é vivida como perda dilacerante por ele. Esse estado de coisas quase o põe a perder algo muito valioso para ele: seu lugar atual de pai e marido bem-visto. Atualmente, ele ajuda seus irmãos e outros parentes. No discurso do paciente, ‘quando tô bem de situação financeira, faço bons negócios e as pessoas gostam de mim, me olho no espelho e me acho bonito’ entra em conflito com ‘sou feio, nenhuma outra mulher vai gostar de mim’.

Quando perguntado sobre sua traição, ele profere duas frases: ‘é horrível’ e ‘nunca olhei para isso’. Essas frases constituem sua resposta invariável para questões correlatas à traição: como ele se vê ao trair, como ele se vê ao transar com várias mulheres e como ele se vê ao ter se apaixonado por uma mulher – que gosta de sexo tanto como ele. Na sessão seguinte, ele diz que é impossível ser amado. Junto com isso, a vivência maravilhosa de ele se sentir atraente, jovem e potente – ao ficar com a garota – é acompanhada por perda de controle, autotortura e sofrimento. Assim sendo, ele sente ódio, horror, nojo e autodesprezo − por ser promíscuo e ser feio. Entretanto, na sessão posterior, ele se valoriza ao ser transparente e ser honesto nos negócios. Ao ouvir que ele cria barreiras diante do que é apontado pela analista, ele vê um vidro transparente. A seguir, ele vê um muro escuro, pesado e muito difícil de pular – que o leva a um terreno não produtivo. Nesse terreno não produtivo, as interpretações da analista – acerca de seu valor e de ele se ver além da depreciação de si – tornam-se inférteis. Na sessão seguinte, aparecem as representações de ele ser problemático e de ser um nada, cuja única solução possível é morrer. À medida que essas questões foram trabalhadas na análise, ele consegue conversar com a esposa sobre a garota, sua esposa acredita nele e, por fim, decidem se separar. Com isso, eles mantêm uma relação amistosa e ele assume a relação com a garota.

Discussão

Cada paciente apresenta um tipo de trauma em termos de fixação de seu sofrimento mental no sistema das representações. Essa fixação gera diferentes graus de complexidade e de dificuldade em termos de mudança psíquica dos pacientes.

A primeira paciente não teve uma única pessoa que a amasse, em sua infância. Desse modo, ela é movida por um intenso desejo de romper o vínculo amoroso com o outro. As representações do trauma do absoluto são acentuadas nela: ser abandonada, ser desamparada, ser rejeitada, ser impossível ser amada, ser sem lugar no mundo, bem como para sempre ser infeliz, ser incompetente e ser pobre. E, mais, ser boazinha, ser humilde, estar além das maldades e das ambições humanas desprezíveis são representações de si, também. Enfim, o trauma do absoluto atinge um grau extremo nela: ódio colossal a si e às figuras parentais, intenso horror às relações intersubjetivas e uma retirada quase total do mundo dos vivos e dos desejantes. Associado a isso, seu paradoxo funda-se em saber-se inteligente, mas sentir-se débil mental; ter riqueza interior, mas viver pobremente; ter desejo de amar e ser amada, mas ser incapaz de realizá-lo no vínculo com um homem. Atualmente, após muita análise ela exercita seu desejo de ser grande: ser adulta, ser excelente profissional, ser reconhecida, ser competente quanto a ganhar dinheiro e a ter acesso ao melhor na vida. Para integrar essas novas representações de si, foi necessário depurar as confusões entre suas representações e proto-representações. Para integrar ser grande, ela precisou diferenciá-la de ser sádica e ser insensível. Além disso, coube depurar ser competente – quanto a ganhar dinheiro – de ser controlada, ser submissa e ser humilhada – por seu pai. A partir disso, a integração de ser trabalhadora, ser determinada e ser dedicada fez-se possível. Contudo, ela ainda reprime o tema mais proibido de seu desejo: ser amada por um grande homem e amá-lo (Almeida, 2010).

No segundo paciente, seu amor próprio depende do olhar amoroso do objeto; em especial, de uma figura feminina benevolente. Desse modo, o olhar amoroso do objeto ocupa o lugar de seu olhar amoroso para consigo mesmo. Em sua história de vida, seu valor – para sua mãe – consistia no fato de ele ter dinheiro, enquanto seu sucesso – junto aos garotos – advinha de seu roubo do objeto de desejo de todos. Por outro lado, ao roubar esse objeto de desejo, ele era punido em público. Sendo assim, seu eu é capturado pelo olhar da garota gostosa, bem como pelo dinheiro – olhados por ele, a partir do olhar do outro. Assim, seu valor e seu sucesso são projetados nesses objetos de desejo público – fruta/mulher gostosa e dinheiro – sendo pouco acessíveis à sua integração no sistema. Em meio a isso, ele recebeu importantes gradientes de amor da prima, em momentos de enorme sofrimento psíquico. Com isso, conquanto confusa, sua capacidade de buscar parcerias amorosas ficou preservada. No plano das representações do sistema, ser o garanhão, ser o pegador e ser o gostosão com a garota gostosa – valorizados no homem, em nossa cultura – abrandavam seu sofrimento quanto a ser impossível ser amado, ser feio, ser promíscuo, ser mau e ser desprezível – ‘sou feio, nenhuma mulher vai gostar de mim’. Em contrapartida, as primeiras constituíam a armadilha ideal, para ele decepcionar sua família e seus vizinhos – exatamente como em seu passado. E, ainda, ser simpático, ser agradável e ser afetivo eram representações de sua forma visível de relação com o outro – como um vidro transparente. Figuradas por meio do muro escuro, suas representações depreciativas – ser feio, ser promíscuo, ser mau e ser desprezível – coexistiam com as demais. A seguir, ser problemático, ser um nada e ser digno de morrer comunicaram seu intenso sofrimento, mas permitiram um pacto com a vida – mediante sua ligação com a analista, que acreditou nele. Dentre seus afetos, ódio, horror, nojo e autodesprezo eram dirigidos a si mesmo. Ao serem trabalhados na análise, surgiram novas representações de si: ser um ex-marido bom, que não quer magoar a ex-esposa, que lhe dá uma pensão polpuda e capaz de ser atencioso e ser carinhoso com ela e os filhos. O bloqueio contra essas representações impedia o paciente de ter uma visão global sobre si, de se valorizar e de conversar com a ex-esposa sobre sua namorada. Ao integrá-las, ele pôde se defender junto à esposa e fazê-la acreditar nele. Então, o homem pôde assumir seu desejo atual e suplantar as dores do menino. Apesar de ele ter sofrido muito com seus pais, não há indícios de seu trauma ter origem transgeracional – no período da análise (Almeida, 2010).

Considerações Finais

A clínica psicanalítica expõe alguns fatores, que provocam saturação no sistema das representações, obstruem a mobilidade das representações e prejudicam a mudança psíquica. São eles: o sobreinvestimento de ódio e horror nas representações; a confusão mental devida à indiferenciação entre representações, às proto-representações e aos paradoxos; a contra-identificação com os pais; os temas proibidos do desejo; o uso defensivo de certas representações contra outras, que propiciam a pujança do desejo. O déficit representativo do sistema decorre da ação desses elementos.

O sobreinvestimento de ódio nas representações de si e dos objetos primários gera maior desafio para a empreitada analítica que seu investimento. Ser abandonado, desamparado, não-amado, devedor, para sempre e sem lugar no mundo são representações do trauma do absoluto sobrecarregadas por ódio – registros desse trauma atávico. Em contraste com isso, ser feio, promíscuo, desprezível e merecedor de punição são representações depreciativas investidas de ódio – registros desse trauma aparentemente não atávico.

Nos traumas, certos temas do desejo são reprimidos com maior violência que outros. A repressão diferencial desses temas liga-se aos valores reinantes num tempo-espaço cultural – abarcando homens e mulheres. Nas gerações mais antigas, a sexualidade foi um tema do desejo violentamente reprimido nas mulheres. Atualmente, essa repressão tende a ser menor.

Da repressão diferencial entre temas do desejo, resulta a projeção de representações do valor do sujeito, em seu objeto. Na primeira paciente, ser sexuada e ter desejo sexual equivaliam a ser indecente, ser prostituta, ser indigna, ser sem valor. Então, sexo, amor, grandeza pessoal e sucesso na vida eram temas do desejo violentamente reprimidos nela. Sendo assim, ela quase sucumbiu ao desejo de não-desejo pelos objetos. No segundo paciente, ser feio, promiscuo e desprezível levou à projeção de ser belo, gostoso e cobiçado – em seu objeto de desejo. Na análise, a visitação desses temas demandou rever a confusão entre representações do sujeito e dos objetos primários, bem como a confusão associada às proto-representações e aos paradoxos. Essa confusão se devia à primazia de impulsos destrutivos sobre os impulsos amorosos – nos vínculos fundantes do eu com as figuras parentais.

Ainda no tocante à resistência diferencial de temas e representações no sistema, certas representações de si podem defender o sujeito contra o sofrimento, mas formam barreiras contra sua mudança. Ao defenderem seu eu, certas representações funcionam como balizas contra a passagem de outras pelos estratos do sistema. Assim, representações mais próximas de seu estrato consciente podem defendê-lo contra outras mais distantes dele e associadas a maior sofrimento mental. A cada estrato do sistema, essa operação defensiva pode ser retomada com relação a outro. No cômputo geral da análise, são necessárias contínuas idas e vindas entre eles – até que as representações coerentes com seu desejo sejam integradas ao estrato consciente. Ipso facto, a mudança psíquica dos pacientes decorre do percurso por temas e representações com resistência diferencial no sistema.

No primeiro caso, ser boazinha, simples, humilde, sensível e além das ambições e maldades humanas defendem-na contra representações de seus pais malévolos, cruéis, insensíveis e mercantilistas. Porém, ser boazinha, simples e humilde a impedem de integrar ser determinada, persistente e focada quanto à conquista de seus objetos de desejo. Portanto, as primeiras representações – ser boazinha – mantém seu sofrimento e inibe a satisfação de seu desejo. Elas derivam de sua contra-identificação com os pais e defendem-na de seu ódio a eles. Por meio delas, o sistema tenta lidar com a sequência traumática vivida por ela: desejo-perigo para seu eu-sofrimento mental. Por sua vez, o segundo grupo de representações – ser determinada – subinvestido por amor tem pouca força para impulsionar seu desejo em direção aos objetos. Além disso, por longo tempo, as representações do absoluto e as representações depreciativas de si – ser débil mental, ser doente mental – haviam sido centrais em seu eu. Destarte, a integração de representações valiosas para a satisfação de seu desejo foi vivida como invasão violenta e, ainda, como perda e fracasso do eu. Pois, ganho, sucesso e prazer de ser a si mesma eram temas do desejo proibidos em sua família – mesclados com ódio, horror, culpa e vergonha. Dessa forma, a confusão mental entre novas representações de si e a invasão por conteúdos violentos a impede de integrar representações coerentes com seu desejo: ser amada, inteligente, capaz, determinada, dedicada, produtiva, bem-sucedida, vitoriosa e digna de coisas boas – ao estrato consciente do sistema. Enfim, o absoluto põe em relevo que o ódio ao desejo e ao vínculo com o outro é deveras desorganizador do sistema das representações.

No segundo paciente, aparecem algumas representações do absoluto – ser impossível ser amado, ser um nada – sem que ele se apresente de forma inequívoca. Há, igualmente, representações coerentes com seu desejo – ser simpático, ser agradável e ser honesto – em conflito com representações depreciativas de si: ser feio, ser promiscuo e ser desprezível. A despeito disso, foi possível integrar ser um ex-marido bom e ser sensível a ser simpático e ser agradável – que propiciam sua mudança psíquica. Sua análise põe em destaque que o ódio aos vínculos não constitui um elemento central de seu eu, apesar de suas parcerias serem conflituosas para ele.

As representações coerentes com o desejo são mais inacessíveis no sistema, quanto mais severo é o trauma. O acesso gradual a elas imbrica-se à mudança psíquica na análise. Nesta, há um paralelo entre as vivências traumáticas do sujeito com os seus objetos primários e sua reedição com os secundários/consortes. Assim, um objeto secundário pode encarnar seu desejo de amor, estabilidade, prestígio e valor – evidenciando seu vínculo com seu desejo, como no segundo paciente.

Com a análise, os paradoxos podem deixar de enredar o sistema, se forem contrapostos a formulações paradoxais. Quanto a primeira paciente, a frase que irrompe em sua mente – cê demorou a acreditar em papai noel e agora a vida se faz presente – mescla fantasia e realidade, passado e presente. Toca no diapasão de que ela não vivenciou quaisquer ilusões ternas e salutares quanto à figura paterna-masculina. No que tange ao segundo paciente, em face de sua resistência de ‘perder’ sua atração por prostitutas, a fala da analista ‘não há nada a perder, senão o medo de perder’ teve um bom efeito. Nesse caso, seu desejo de evitar nova perda para seu eu fazia com que ele conservasse certos dissabores com esses objetos: um nada diante de seu real desejo quanto às relações amorosas.

A maior fonte da desorganização do sistema representacional é o predomínio do ódio sobre o amor, em seus estratos inconscientes. Portanto, essa desorganização ocorre de modo mais grave no trauma do absoluto do que no outro. O nó no desejo de seu herdeiro – advindo da cadeia familiar – é rompido ao discriminar seu desejo do de seus ascendentes. Para tanto, cumpre desvelar suas proto-representações e diferenciar as representações, que mesclam seu eu ao de seus pais. Assim, ser um bom filho e se cuidar bem deve ser diferenciada de se fundir com a dor de seus pais, ao cuidar deles. Logo, ele precisa perder certas representações de si, que constituíram seu eu – por longo tempo.

Independentemente da força caótica dos traumas sobre ele, o desejo por si só é complexo. A princípio, o desejo pode se fundar em representações e fantasias como: ser todo-poderoso e ter extensões de seu eu, que existem tão somente para satisfazê-lo. No trajeto do desejo infantil ao desejo mais amadurecido, os pais precisam criar certas interdições a ele. No extremo dessas interdições, o desejo do filho pode ser avassalado pelo desejo parental – de modo traumático. Então, o bloqueio de representações favoráveis para o desejo – ser amado, ser especial, ser digno, ter valor, ser capaz e ter espaço no mundo – é muito grave. Como defesa contra isso, podem surgir representações onipotentes de si – ser um rei, ao qual o outro e o mundo devem prestar vassalagem. E, inclusive, pode ocorrer o desejo de não-desejo vinculado a um corte radical de seu contato com a realidade – como na primeira paciente.

O imprinting traumático do desejo da criança pelo de uma figura parental autoritária e sádica exacerba sua impotência. Aliada a isso, a proibição de reações agressivas da criança – pelos pais – é internalizada por ela junto com as representações do trauma do absoluto, o ódio e o pavor. Esses genitores sádicos interditam o prazer da criança com seu sucesso. Então, seu desejo confunde-se com o desejo destrutivo de seus objetos, no sentido que ela se contra-identifica com figuras bem-sucedidas e identifica-se com as fracassadas. O sistema divide amor e ódio, bem como sucesso e fracasso, de modo que o desejo perde força em termos de ação no mundo. Essa mescla indiscriminada de conteúdos é maior que o poder do sistema de elaborá-la.

A mudança psíquica é, pois, dificultada por material psíquico, que forma um circuito fechado, restrito e arraigado no sistema das representações. Oriundo da historia arcaica da família, esse grilhão de conteúdos bloqueia a mobilização de seu desejo, no herdeiro. Maiores gradientes de ódio num circuito de representações promovem sua fixação e maior resistência ao seu desinvestimento. Essa fixação pontual das representações do absoluto trava a mobilidade das demais e compromete severamente a mudança psíquica. Assim sendo, deve ser trabalhada a confusão mental ligada às representações, às proto-representações, aos paradoxos e à contra-identificação. Nesse sentido, cabe depurar certos sentidos das representações dos objetos primários, confundidas com as do sujeito. O desinvestimento de ódio nas representações favorece o investimento de amor naquelas valiosas para o desejo. Muito embora viabilizem a mudança psíquica, ganhar e perder representações de si põe em jogo a estabilidade do sistema. Porém, nesse interjogo, rompem-se as formas constritivas de seu desejo – associadas a um mandato ancestral contra sua realização e se amplia seu acervo representacional. Assim, a reiterada dissolução dessa fixação leva às mudanças psíquicas cada vez mais consistentes.

Há várias consequências da mudança psíquica sob a perspectiva do desejo do sujeito: a integração amor-ódio sob a égide do amor, o desligamento de seu ódio das relações do passado, seu uso para impor limites às relações destrutivas atuais, a relação criativa/produtiva do sujeito com seus dons e sua clareza para reconhecer seu desejo, suportá-lo em seus talentos e legitimá-lo como inalienável de si. Para além do magma de conteúdos transgeracionais, o investimento de amor nas representações solidárias ao desejo rompe sua inércia e favorece sua pujança, que se verte em ato voltado para seus objetos de satisfação. Com isso, a originalidade do desejo do sujeito se articula a sua atualização no presente.

Referências

Almeida, M.E.S. (2003). A clínica do absoluto: representações sobre-investidas que tendem a deter o encadeamento associativo. Tese de doutorado. Psicologia Clínica, PUC-SP.

Almeida, M.E.S. (2010). O trauma do absoluto e a construção do desejo na família. São Paulo: Agbook.

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Herrmann, F. (2001). O método da psicanálise. São Paulo: Brasiliense.

Racamier, P-C. (1983). Los esquizofrénicos. Madrid: Biblioteca Nueva.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 22/06/2021
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