O TRESPASSE

Nessa difícil hora de perdas, a gente nem sabe o que dizer. A vontade é chorar e, depois, ficar mudo, recolhido em oração, para dar trégua aos sentimentos pulsantes de vida terrena. Estamos todos de passagem. Dia desses, a finitude nos prega a peça da despedida e fica uma caverna sem fundo nos que se acostumaram com a nossa presença. Em verdade, estamos apenas voltando ao ninho de onde partimos. Feliz o humano ser que compreende o sentido e a missão dessa passagem. Transmutamo-nos.

Viver é bom pelas descobertas acumuladas. Crer no descanso eterno significa a preparação para ações e novas tarefas a sobrevirem sem a ocorrência do fenômeno da exteriorização energética da matéria física. Em verdade, para quem adquiriu conhecimento e se convenceu, nunca descansaremos do desafio de diuturnamente realizar o trabalho nos salões do pensamento, na casa do ser.

Quando da transmutação, o que repousa é apenas a roupa usada que nos serviu de invólucro. Como pouco ou nada sabemos do que irá sobrevir, não há como ser pleno de conhecimentos ou prestidigitador para, sem delongas, tentar a adivinhação e/ou antevisão.

O estar vivo é isso: chorar e cantar. Quando dorme o corpo, o espírito se ilumina, no entanto, é difícil compreender os ritos de polimento da pedra bruta que teimamos ser. A finitude é ato definitivo, na dimensão dos fatos terrenos. Em nosso testamento deve constar um legado de boas ações para o coletivo, aquelas que contém fundamento e utilidade, contudo, o bem e o mal andam juntos a todo tempo.

Somos frutos de nosso eu, seus alter egos e circunstâncias, como intuiu Ortega y Gasset, em meados do séc. XX. Qualquer deslize nos afugenta da retidão de caminhos, pois que são quase sempre fortuitos, inesperados, e, por vezes, íngremes e espinhosos. Repousam, em nós, em placidez, a religiosidade, a fé e a esperança no devir. Essas são a clava, o cajado de apoio para o curto itinerário do estar no mundo usualmente conhecido.

E a oração surge nos lábios: um salgado beijo de esperança num possível reencontro. Algo muito tênue, imerso em pouca liquidez mesmo que pareça viável e certo, mesmo que de certeza tenhamos muito pouco de registros objetivos e pontuais. Desta viajada nunca voltaremos hígidos de corpo físico.

Nosso mal não é apenas o pecado original, caso sejamos capazes de acreditar em alguma deidade que seja benemerente de paz, tolerância e perenidade, antessala do além-matéria.

Aos que ficam, os juízos de ocasião farão o exame de atos e lavratura de palavras a esmo, no mesmo teor do pó ao qual voltaremos, no lento cadinho das gerações. E aspergiremos o orvalho sobre a flor, gotículas celulares da turva água que compõe tudo o que é visceral.

A lápide dirá de nossa passagem ou, no frenesi das modernidades, cinzas voejarão tais falhadas sementes sobre o cadinho das humanas fermentações. Porque o que exsurge do ser anímico acumula-se sob sol e luas.

Neste plano, tudo carece de temporalidade, nada escapa ao mundo rotundo em cada geminado hemisfério girante. Tudo, por consequência, espólio, testamento, portais líquidos voláteis de humanidades, na casa do ser.

MONCKS, Joaquim. A MAÇÃ NA CRUZ. Obra inédita, 2021.

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