A fantasia de completude do eu pelo outro A subversão da falta

Introdução

‘Não me faltam homens.

O que me falta é amor’

Marilyn Monroe

‘A fome e o amor movem o mundo’

Schiller

A presente pesquisa visa refletir acerca da questão da falta e da completude na relação sujeito-objeto. Para estudá-la, toma-se como ponto de partida um livro da Antiguidade Clássica relativo à temática, aliado ao fato de que a cultura grega constitui um dos pilares de nossa civilização ocidental – junto com a judaico-cristã. A seguir, trabalha-se com construções culturais contemporâneas sobre essa relação. Além disso, reúnem-se contribuições de psicanalistas contemporâneos acerca da falta e da completude. Ao lado delas, a autora propõe algumas hipóteses de trabalho – desejo e sistema representacional – que subsidiam sua compreensão.

O mito do Andrógino

Nesse estudo, um livro grego clássico se destaca por abordar a temática da falta e da completude há cerca de 2.500 anos.

No Banquete de Platão, o mito do Andrógino inicia com a tentativa de Aristófanes de definir a natureza humana. Ele recorre a esse mito para pensar o humano como um todo, falando dos diversos tipos de amores possíveis na espécie humana. No princípio dos tempos, havia três gêneros: masculino, feminino e andrógino. Eles representavam a forma completa da humanidade, numa união que os tornava fortes e vigorosos. Desse modo, o masculino era a união de homem com homem; o feminino, a junção da mulher com mulher e o andrógino, a ligação de homem com mulher. Porém, os homens foram punidos ao tentarem invadir o Olimpo e ocupar o lugar dos deuses. Dessa forma, a punição divina dividiu ao meio os seres unos, que formavam um todo perfeito, deixando suas partes incompletas e imperfeitas, a vagar pelo mundo. Com isso, os humanos passaram a morrer de diversas causas, devido à saudade da parte que lhes faltava. Apiedando-se dos homens, Zeus deu um sentido a Éros – deus do amor – fazendo do amor erótico/desejo sexual esse resgate das partes separadas. Nessa medida, Éros pode reunificar os homens e salvá-los da solidão, a que foram condenados. Entre aqueles que compunham o masculino, a divisão deu origem a dois homens que gostam de homem; entre os que constituiam o feminino engendrou duas mulheres, que gostam de mulheres; e entre os que formavam o andrógino originou um homem, que gosta de mulher e uma mulher, que gosta de homem.

Construções culturais sobre a falta e a completude

Visando examinar algumas construções culturais contemporâneas referentes à relação sujeito-objeto em sua vertente de falta e completude, alguns sites da internet forneceram a base para essa seção da pesquisa.

No site de André Ormond, encontra-se: ‘Você é a tampa da minha panela, você é a manteiga do meu pão, você é a cobertura do meu bolo, você é o recheio da minha bolacha, você é a cama e o colchão, você é a outra metade do meu coração’. Nessa citação, a ideia de completude começa com a junção de partes de um utensílio doméstico utilizado para fazer comida, envereda por várias referências à comida, nas quais o autor é o substrato e o sabor – que o complementa – é atribuído à pessoa amada. Contudo, quando se passa à metáfora da cama e do colchão, à pessoa amada são atribuídas essas duas partes, sem que o autor atribua a si mesmo a condição de parte, até chegar à ideia de que o autor e o ser amado são partes do órgão do corpo humano – considerado a sede do amor.

Veja-se, ainda, do site Mundo das mensagens: ‘Você é a manteiga do meu pão, a goiabada do meu queijo, a sede do meu beijo, a primavera do meu ano, a água do meu oceano, o arco-íris do meu céu, a lua da minha noite, o recheio do meu bolo, o doce dos meus sonhos, as batidas do meu coração’. Posto isso, as duas primeiras metáforas envolvem comida, nas quais o autor constitui o substrato e a pessoa amada consiste no elemento, que lhe confere sabor. Na metáfora seguinte, a palavra sede pode se referir à sensação de falta de água no organismo ou à base associadas ao prazer do beijo. Nas demais, relativas a elementos da natureza, o autor é o continente e o amado constitui o conteúdo que o tempera, o encanta. A seguir, há uma citação de comida, na qual o autor é o continente para o conteúdo desejado, passando-se ao reino abstrato dos sonhos, nos quais a pessoa amada ocupa o lugar de sabor encantador e, por fim, a sede do amor no corpo – no imaginário cultural – é ocupado pelo autor e o ser amado lhe confere movimento, vida, pulsação.

Cadê a tampa da minha panela, o chinelo do meu pé cansado, a metade da minha laranja? Nesse site de Tati Bernardi, as metáforas iniciam com as partes de um utensilio doméstico, fundamental para se fazer comida, sendo que a autora é a parte maior e o amado é a parte menor, que permite produzir um alimento gostoso. Em seguida, a autora se coloca na posição de sustentáculo do corpo humano, que precisa de aconchego, conforto e descanso e o ser amado lhe garante a satisfação de seus desejos. Por fim, volta-se à comida, de modo que ambas as partes teriam a mesma importância e o mesmo sabor.

No site Belas mensagens de amor, depara-se com:‘Você é a chama da minha vela, o prego do meu chinelo, o colchão da minha cama, a metade da minha laranja. Você é tudo aquilo que eu pedi a Deus’. Com isso, o autor se representa como substrato e representa o amado como o elemento, que lhe confere calor e brilho, mas que pode reduzí-lo a nada. Na sequência, o objeto de amor pode feri-lo, reaparece a ideia de si como base e do objeto como elemento, que amacia, conforta, descansa e permite seu bem-estar. Na última metáfora, ambos teriam o mesmo sabor e a mesma importância. Por fim, na frase final, a pessoa amada ocupa a posição de objeto do desejo/todo, oriundo de um ser divino.

No Youtube de Bia Nepomuceno, várias cantadas são relatadas por ela: ‘Opa, tudo bem? desculpa incomodar, é que eu não sei que profissão seguir, mas olhando para você, parece ficou fácil: eu poderia ser oftalmologia pra você enxergar o quanto eu quero te pegar’; ‘eu não sou Natal, mas eu tô pronta para te dar uma noite feliz’; ‘ei gato, você é professor? não? mas, que classe hein, moço?; ‘pelo amor de Deus, liga pro corpo de bombeiros, porque desde que eu te vi, meu corpo tá em chamas!’; ‘sabe qual é a diferença entre eu e esse sorvete? é que eu só me derreto por você!’ Nesse site, a autora começa com uma interjeição de surpresa, seguida de uma frase-clichê para contato entre as pessoas, pede desculpas e fala de sua dificuldade quanto à escolha de profissão.

A partir desse ponto, causa surpresa no interlocutor, pois ela passa à cantada propriamente dita. Na frase seguinte, de forma dúbia, se identifica e não se identifica como uma festa familiar sagrada e passa a uma alusão a sexo, que tende a ser contraposta ao sagrado, na nossa cultura. A próxima frase inicia com um chamado unido a uma expressão popular sobre um homem atraente/gato, cita uma profissão, mas vincula classe – em seu sentido denotativo ligado à essa profissão – ao sentido conotativo de elegância, compostura e refinamento. Subjacente a isso, percebe-se uma forma sutil de cantada. A frase seguinte começa com uma expressão verbalizada em situações de desespero, de medo, de perda e de angústia, ao se apelar ao outro para atuar em prol de uma causa. Esta é endereçada a um profissional, que deveria atender o desejo da autora em seu sentido figurado: corpo em chamas. Na cantada final, em antítese com a anterior – chamas x gelo – a adivinhação quanto às diferenças entre a autora e um alimento passa a conotar uma situação de natureza sexual.

No site Só treta! defronta-se com: ‘você é agulha no meu palheiro, você é a luz na minha escuridão, você é o gelo no meu copo, você é o telhado da minha casa, você é o batimento do meu coração, você é o peru do meu Natal, você é a tampa da minha panela, você é o grafite da minha lapiseira, você é as lentes do meu óculos, você é as folhas do meu livro, você é a cobertura do meu bolo, você é o fermento do meu pão, você é o giz da minha lousa, você é o Toddy do meu leite, você é a maçaneta da minha porta, você é o côco do meu coqueiro, você é a manteiga do meu pão, você é o elástico da minha cueca, você é a bandeira do meu país, você é as folhas da minha árvore, você é as flores do meu jardim, você é a musa dos meus sonhos, você é os números da minha fração, você é a sela do meu cavalo, você é as teclas do meu teclado, você é o recheio da minha bolacha’.

Faz-se necessário proceder à análise das metáforas desse site. Na primeira frase, o objeto desejado é extremamente difícil de se encontrar; na segunda, na antítese entre a escuridão/todo e a luz/parte, o ser amado proporciona brilho, conforto, segurança e beleza; você é o gelo no meu copo assinala a relação do sujeito-continente com o objeto-conteúdo, que lhe oferece um atrativo a mais em termos de sabor.

Dentre as várias metáforas relativas à comida, o sujeito constitui o substrato básico/todo e seu objeto é o elemento essencial, que lhe garante mais sabor e mais prazer. É o caso de: ‘você é a carne do meu churrasco’, ‘você é o Toddy do meu leite, ‘você é o côco do meu coqueiro’, ‘você é a manteiga do meu pão’, ‘você é o recheio da minha bolacha’. Além disso, ‘você é o peru do meu Natal’ enfoca uma festividade tradicional da família assimilada ao sujeito, ao passo que seu objeto de amor é uma comida tradicional dessa época. A frase ‘você é o fermento do meu pão’ faz do outro o elemento gerador do crescimento do sujeito.

Há outras descrições, nas quais o sujeito constitui o substrato fundamental/sustentáculo/todo, enquanto o objeto amado consiste no elemento/parte central, que lhe permite realizar sua função específica: você é o grafite da minha lapiseira; você é as lentes do meu óculos, você é as folhas do meu livro; você é o giz da minha lousa; você é o elástico da minha cueca; você é a sela do meu cavalo. No caso de ‘você é as teclas do meu teclado’, o sujeito é assimilado ao instrumento musical e o objeto lhe permite produzir música, gerando encanto, prazer e descanso; ‘você é a maçaneta da minha porta’ se refere ao sujeito como parte da construção e a maçaneta como subparte, que garante a saída ou a entrada do aposento.

Ao lado delas, aparecem descrições nas quais o objeto de amor oferece benefícios prazerosos para o autor: em ‘você é as folhas da minha árvore’, o sujeito é descrito, de forma dúbia, como todo/elemento da natureza, que garante vida, frescor, beleza e bem-estar, sendo que o amado é parte desse todo; ‘você é as flores do meu jardim’ descreve o sujeito como a base da natureza para a flora e seu objeto como elemento, que dá beleza, cor, graça e encanto a ele. Em ‘você é o batimento do meu coração’, o sujeito ocupa uma posição dúbia de todo equivalente a uma parte do corpo, enquanto o outro lhe propicia movimento, impulso e vida. Por sua vez, em ‘você é o telhado da minha casa’, seu objeto do amor é o elemento protetor das intempéries, que lhe proporciona conforto e segurança.

Diferenciando-se das categorias anteriores, em ‘você é a musa dos meus sonhos’, os sonhos se referem aos desejos mais acalentados pelo sujeito e seu objeto do amor remete a uma figura feminina etérea, que inspira sua verve poética e que o motiva; ‘você é os números da minha fração’ configura uma representação matemática acerca da relação entre o todo e as partes, estando o sujeito na posição de todo dividido e o ser amado na condição de elemento; em ‘você é a bandeira do meu país’, o sujeito é designado como significante maior e abstrato, enquanto que o outro consiste em seu símbolo primordial. Por fim, todas as metáforas expressam a relação de complementaridade fundamental entre um e outro.

A completude e a falta em psicanálise

Dando continuidade a essa reflexão, as contribuições da psicanálise relativas à temática são enunciadas a seguir.

A ruptura epistemológica demarcada pela psicanálise na civilização ocidental atinge, dentre outras, a questão da falta e da completude. Ao apontar o casulo narcísico mãe-bebê como forma primitiva de relação sujeito-objeto, a psicanálise alerta para a importância e complexidade desta relação. Nesse sentido, a fantasia de fusão ou de completude vivida pelo bebê na relação com a mãe – com toda a sua gama de representações e afetos inconscientes – tem sérias repercussões na psique. No tocante a isso, Mezan (2005) aborda as consequências psíquicas da renúncia à onipotência e da ruptura do casulo narcísico do bebê em seu vínculo exclusivo com a mãe perfeita: a finitude e o desejo vem a acompanhar a criança e o adulto, nos quais ele vai se transformar.

Posto isso, outras abordagens psicanalíticas são apresentadas com o intuito de examinar como elas trabalham a questão em pauta. Considerando-se a complexidade teórica das escolas de psicanálise, tão somente os conceitos e os textos associados à temática foram selecionados.

Freud (1900) propõe um tempo mítico da vida psíquica, no qual ocorre uma vivência de satisfação. A primeira experiência de satisfação deixa um resto da satisfação original, que o sujeito busca reencontrar. Essa experiência inclui insatisfação, uma vez que a satisfação primeira buscada por ele jamais será reencontrada. O limite do objeto define-se pela impossibilidade de superar a perda do primeiro objeto de satisfação.

Reiterando a limitação do objeto quanto a satisfazer o desejo do sujeito, Freud (1907) pontua a busca libidinal da satisfação do desejo com base no objeto anteriormente perdido. Mais especificamente, quando o objeto original de um impulso carregado de desejo é perdido devido à repressão, ele é representado por vários objetos substitutos, mas nenhum deles propicia satisfação completa – no amor entre adultos (Freud, 1912).

Com relação a isso, Lejarraga (2015) afirma que através da idealização do objeto de amor e da aspiração de união com ele, o eu pretende a fusão narcísica, a completude. O amor, por sua natureza narcísica, aspira a um reencontro com os primeiros objetos – perdidos para sempre – e a uma plenitude impossível. Revela-se o caráter impossível e ilusório da plena realização amorosa, apesar de o sujeito idealizar a fusão com o objeto amado como forma de restaurar a plenitude narcísica perdida.

A seguir, determinados conceitos do enfoque kleiniano, igualmente, ajudam a pensar a questão da falta e da completude.

Na mais tenra infância, as experiências do bebê com o seio materno podem gerar o seio bom e o mau. O seio bom gratifica o bebê e o atende quando ele está com fome, recebendo projeções de amor e gratidão. Por outro lado, o seio mau o frustra, o deixa com fome, demora para atendê-lo, visto que não o satisfaz no exato momento que ele deseja e tampouco sempre que ele deseja, recebendo projeções de ódio.

Nas experiências de frustração da gratificação do seio surge a inveja como expressão oral-sádica de impulsos destrutivos. Ela remonta à mais arcaica relação do bebê com a mãe e envolve raiva dela por possuir e desfrutar o que ele deseja. A inveja deposita partes más do self nesse objeto, com a finalidade de destruí-lo, dificultando a construção do objeto bom – bondade e generosidade materna. Junto com ela, a voracidade é um anseio insaciável, que visa sugar, devorar e destruir tudo de bom que o objeto é capaz de dar. A voracidade, a inveja e a ansiedade persecutória intensificam-se umas às outras. O dano causado pela inveja gera ansiedade e dúvidas sobre a bondade do objeto, que aumenta a voracidade e os impulsos destrutivos. A frustração também intensifica a voracidade e a ansiedade persecutória no bebê. Sendo assim, quando os impulsos destrutivos predominam sobre os impulsos amorosos, a idealização ocorre. A idealização é uma defesa que preserva os objetos bons, criando um seio inexaurível capaz de gratificação ilimitada, para proteger o bebê contra a frustração. A gratificação fornecida pelo seio, junto com a idealização, faz dele a fonte de todos os confortos – físicos e psíquicos – sede inesgotável de alimento, calor, amor, compreensão e sabedoria. Por outro lado, a gratidão deriva da capacidade de amar e fundamenta a generosidade e a apreciação do objeto bom em si e na mãe. O bebê pode sentir satisfação completa tão somente se sua capacidade de amar é bem desenvolvida. Gratidão e inveja são sentimentos opostos presentes desde o nascimento do bebè e atuam na formação do eu, de forma inconsciente. Em meio a isso, o desenvolvimento psíquico do bebê pode ocorrer, apesar de sua separação da mãe no interjogo entre presença-ausência e do intervalo entre suas necessidades e sua satisfação no tempo-espaço. A saúde mental do lactente permite lhe suportar a ausência do seio e da figura materna, em intervalos de tempo cada vez maiores (Klein, 2009).

A teoria lacaniana é perpassada pelo conceito de falta, que nela aparece em toda a sua radicalidade. Segundo esta teoria, há um furo na estrutura inconsciente, que se refere à falta de um elemento – ‘um’ – no limite da trama inconsciente. Essa falta permite a movimentação e a dinâmica do inconsciente. E, mais, o desejo como força inconsciente remete à falta estrutural no sujeito – assujeitado por seu inconsciente. Em contrapartida, o narcisismo, com Lacan, passa ao registro de completude e denuncia os perigos da fusão com o objeto e da negação da falta (Leite, 2000).

Além do mais, em meio à relação fusional mãe-bebê, o sujeito se esboça com base no investimento libidinal materno, visto que ele é objeto de desejo da mãe. Fundamento da condição inconsciente, essa relação fusional do bebê com o desejo da mãe impede seu nascimento psicológico. Ao fazer o corte dessa relação simbiótica, o pai demarca e consolida o humano como castrado/faltante. Desse modo, a inserção do sujeito na cultura – enquanto sujeito castrado – depende dessa interdição paterna à completude. Portanto, a experiência de castração é central para a psicanálise lacaniana.

Complementando essas ideias, Lacan (2005) define o objeto pulsional como objeto faltoso, de modo que o amor faz suplência ao encontro sempre faltoso do sujeito com o objeto e a sexualidade. Sendo assim, o amor seria uma tentativa de fazer desaparecer a falta original do desejo. O encontro amoroso proporciona certa tranquilidade ao suprir a ilusão da completude perdida, mas tem um efeito de logro: ao amar, o sujeito/amante se reencontra com sua hiância estrutural, pois o que lhe falta, também falta ao objeto amado. Nessa medida, o amor aponta para a falta do objeto a, tão desejado. Dessa forma, o amante oferece ao amado sua própria falta, acreditando ser o amado o detentor desse objeto faltante/objeto a. O amante, ao acreditar que o objeto amado pode oferecer algum saber sobre si, oferece seu amor faltante a ele. Operar a falta constitui uma condição primordial para a entrada do sujeito no mundo simbólico da linguagem e da cultura.

Expostos alguns excertos das teorias psicanalíticas acerca da falta e da completude na relação eu-outro, outras proposições merecem ser consideradas.

Simanke (2012) contesta a visão freudiana da mulher como castrada – associada à castração feminina, à nostalgia do falo e à inveja do pênis – como reação feminina à descoberta traumática da diferença sexual, enquanto a reação masculina seria a angústia de castração. Ele contrapõe que a castração enquanto trauma – no sentido psicanalítico de abandono forçado da posição narcísica – é comum a ambos os sexos, assim como o complexo de castração – conjunto dos efeitos da descoberta da diferença e dos esforços de elaborá-la. Em outras palavras, o que ambos os sexos descobrem é o caráter incontornável da diferença.

Birman (2006) retoma a distinção de Laqueur entre dois paradigmas historicamente construídos no Ocidente da Antiguidade até a Modernidade: o modelo do sexo único – que perdurou até o século XVIII – e o modelo da diferença sexual entre a sexualidade masculina e feminina – na Modernidade. O primeiro enfatiza uma hierarquia entre os sexos, com o sexo masculino ocupando uma posição superior e servindo como norma para o feminino. Ainda que Freud tenha adotado o modelo do sexo único na maior parte de sua obra, o outro modelo manifesta-se, tardiamente, em sua hipótese de uma feminilidade originária e primordial. Ao descrever o repúdio à feminilidade em homens e mulheres no final da análise, o feminino se anuncia como fundamento do erotismo e como forma básica de subjetivação. Igualmente, o autor adverte que a teoria lacaniana concede fundamento teórico para a lógica, a ética e a política do patriarcado, na qual a figura do pai confere uma superioridade hierárquica do homem em relação à mulher. No mundo contemporâneo em que o discurso feminista e o discurso gay romperam com os pressupostos do patriarcado, a teoria lacaniana fica bastante fragilizada.

O desejo

Numa outra leitura da problemática da falta e de completude, apresentam-se algumas hipóteses de trabalho.

O desejo apresenta-se como um conjunto de representações e de afetos, que modula as forças psíquicas do sujeito. Por definição, ele gera movimentos psíquicos em direção aos seus objetos de satisfação, visando ser satisfeito no mundo. Em oposição a isso, as inibições do desejo do adulto decorrem de sua fixação em certas representações e afetos, que impedem sua realização. Essas inibições do desejo do sujeito têm raízes no material psíquico que atravessa sua família. Assim, vivências familiares de longa data traumatizaram o desejo do sujeito. Nesse contexto, seu sistema representacional foi formado (Almeida, 2003).

O sistema das representações do sujeito constitui um aparato psíquico com potencial para representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Sua função de representar as diversas vivências psíquicas se desenvolve a partir dos sistemas representacionais de seus objetos primários e, assim, se assujeita ao seu desejo. Logo, esses conteúdos psíquicos introjetados pela criança têm relação com os conteúdos psíquicos de seus pais e antepassados. Seus elementos fundamentais são as representações e os afetos do desejo que, a priori, dirige-se ao mundo. Esses processos se entrelaçam à cadeia das gerações da família (Almeida, 2003).

No sistema das representações do sujeito, a partir de traumas com seus objetos primários, o vazio pode se instaurar juntamente o projeto inconsciente de ‘preenchê-lo’ de três formas. Numa variante extremada de sua relação com o vazio, ele visa se desligar de seu desejo e de suas relações com o outro e o mundo. Vive o desejo do não-desejo e não tenta elaborar seu vazio. Numa versão menos radical, ele intenta preencher seu vazio mediante compulsões: comida, bens materiais, acúmulo de saber, produção artística febril, hiper-atividade sexual, trabalho exaustivo e poder/domínio sobre o outro. Noutra forma deletéria, busca preencher o vazio mediante a idealização de um objeto humano – tendo fascínio por ele (Almeida, 2020).

Em outras palavras, o vazio do sujeito com seus objetos primários faz com que ele busque ‘preenchê-lo’ em sua vida adulta − de forma ilusória – mediante seus objetos secundários: humanos idealizados por ele. O objeto humano idealizado detém forte carga de amor – que o torna idealizado – e menor carga de ódio – que o faz persecutório. Sua formação no sistema visa ‘preencher’ o vazio de amor no sujeito e defendê-lo de seu ódio a si e aos objetos primários. Esse auto-engano, paradoxalmente, é vivido como vazio cheio de dor – paralisando seu desejo (Almeida, 2020).

No sistema representacional, as representações do objeto idealizado ‒ ser magnífico, ser o máximo, ser perfeito ‒ sobre-investidas de amor são o contraponto das representações do sujeito ‒ ser insignificante, ser um nada, ser imperfeito – sobre-investidas de ódio. Porquanto, o amor em demasia ao objeto idealizado revela o ódio do sujeito a si e a seus pais. Esse estado de coisas se liga ao bloqueio de representações coerentes com seu desejo mais genuíno – ser amado, ser bem-cuidado, ser valorizado, ser inteligente, ser competente, entre outras – no sistema representacional. Porém, uma análise permite ao sujeito, finalmente, ter acesso às representações coerentes com seu desejo. Nesse plano das representações e afetos do sistema, a suposta completude das faltas do sujeito mediante o objeto idealizado se transforma em força de realização de seu desejo quando ele integra as representações condizentes com ele. (Almeida, 2020).

Conquanto o desejo empreenda uma constante busca de objetos de satisfação, essa satisfação se dá de forma provisória e incompleta. Assim, o sujeito vivencia certo dissabor pouco tempo depois de se deleitar com um objeto ardorosamente desejado, pois este deixa de ser magnífico ao ser conquistado e desfrutado por ele. Desse modo, o desejo pode ser considerado sob dois aspectos.

Em sua forma saudável, o desejo comporta uma espécie de vazio que impulsiona o sujeito em direção ao outro e ao mundo. Desse modo, ele constitui um vazio que promove o saudável crescimento psíquico do sujeito, para além de si mesmo. Este vazio elaborado pelo movimento do desejo se associa a sua pujança no sistema, a sua potência de realização e à produção de obras materiais e simbólico-culturais. Em sua organização patológica, o desejo é vivenciado como vazio angustiante, cuja satisfação no momento atual é bloqueada pelos conflitos anteriores do sujeito com os objetos primários. Como vazio não elaborado pelo movimento do desejo, impõem-se sua urgência de satisfação e sua busca insaciável por objetos ilusórios de satisfação. Logo após serem desfrutados, esses objetos ampliam a sensação de vazio no sujeito.

Discussão

Tendo-se em vista o objetivo desse artigo de pensar a falta e a completude na relação com o outro, cabe reunir os elementos levantados em suas seções anteriores.

Em termos histórico-culturais, à concepção mítica grega de plenitude e completude – do eu na dependência do outro – subjaz a ideia de que a divisão dos seres unos tornou os sujeitos mais frágeis, mais solitários e suscetíveis às doenças e à morte. Neste contexto, coloca-se o ideal romântico de completude amorosa na relação com um outro. Sob este prisma, a paixão – como um momento de projeção maciça do sujeito no objeto – talvez concentre o apogeu de completude imaginária/ilusória das faltas de um por meio da junção com o outro. Nessa medida, possivelmente, a paixão constitui o clímax da negação mágica e onipotente da falta.

Essa visão de mundo relativa à falta e à completude – presente na literatura grega – estende suas raízes até o Imaginário cultural inserido em nossa época digital. Faz-se necessário, portanto, analisar as expressões culturais relativas ao tema, que apareceram nos sites da internet com maior frequência.

No primeiro site, nas construções culturais relativas à falta e à completude – do eu por meio do outro – preponderam as referências à comida, nas quais o autor é o substrato e o sabor é atribuído à pessoa amada. Termina com a ideia de que o autor e o ser amado são partes do órgão humano – considerado a sede do amor. No segundo, novamente, há referências à comida, sendo que o autor constitui o substrato e a pessoa amada lhe confere sabor. E, mais, a sede do amor no corpo é ocupado pelo autor e pelo ser amado, que lhe propicia movimento, vida, pulsação. Nova alusão à comida surge no terceiro site. E, mais, a autora se identifica aos pés/sustentáculos do corpo – desejando aconchego, conforto e descanso – e o ser amado lhe garante a satisfação de seus desejos.

No próximo site, o autor se representa como substrato e o ser amado lhe provê com calor e brilho, mas pode reduzí-lo a nada. Seu objeto de amor, também, pode ferí-lo, mas reaparece como elemento, que amacia, conforta, descansa e permite seu bem-estar. Por fim, na frase final, o objeto do desejo/todo é oriundo de um ser divino. Agregando-se conteúdos de outro site, a autora começa o contato com alguém atraente de forma tradicional. A seguir, uma festa familiar sagrada deriva para uma alusão a sexo. Ao falar com um homem atraente/gato, classe – em seu sentido denotativo – passa a seu sentido conotativo – e remete a sexo. Mais adiante, sua expressão – de aflição ou angústia – clama que um profissional atenda seu desejo sexual, com seu sentido figurado: corpo em chamas. No final, a diferença entre a autora e um alimento gelado conota uma situação de cunho sexual.

No último site, o objeto desejado é extremamente difícil de se encontrar; na segunda frase, o ser amado proporciona brilho, conforto, segurança e beleza. Nas várias metáforas relativas à comida, o sujeito constitui o substrato básico/todo e seu objeto lhe garante mais sabor e mais prazer. Noutras descrições, o sujeito constitui o substrato fundamental/sustentáculo/todo, enquanto o objeto amado consiste no elemento/parte central, para ele realizar sua função específica. Ao lado delas, aparecem descrições nas quais o objeto de amor oferece benefícios prazerosos para o autor: vida, frescor, bem-estar, beleza, cor, graça e encanto. Por fim, essas metáforas expressam a relação de complementaridade essencial entre um e outro. Além disso, o sentido denotativo de varias palavras cede lugar a seu sentido conotativo.

Passando-se ao tratamento teórico da falta segundo a psicanálise, os tópicos específicos que falam sobre ela são retomados.

A insuficiência do objeto quanto a satisfazer o desejo do sujeito inicia com Freud em seus trabalhos de 1900,1907 e 1912. Nessa linha de raciocínio, Mezan (2005) aborda a ideia de plenitude – no caso do casulo narcísico do bebê em seu vínculo exclusivo com a mãe perfeita – e deriva para a ideia de falta – quanto à finitude e o desejo – na ruptura desse casulo. E, ainda, Lejarraga (2015) afirma que o eu visa à fusão narcísica/ completude ao aspirar a sua união com o objeto idealizado e adiciona que o amor aspira a uma plenitude impossível.

A abordagem kleiniana tangencia a questão da falta ao enfocar as vivências de frustração do bebê junto à sua mãe, juntamente com as fantasias, as angústias e as defesas que ela sucita. Assim, a frustração da gratificação do seio gera voracidade, inveja e ansiedade persecutória, que se intensificam umas às outras. Portanto, a vivência inicial de falta pode se exacerbar ainda mais, inclusive por meio de defesas contra ela: a formação do seio inexaurível, capaz de gratificação ilimitada. Por outro lado, a satisfação completa do bebê se liga à sua capacidade de amar. Desse modo, no bebê a falta pode atingir uma intensidade absoluta, mas ele pode experimentar satisfação completa. Nessa perspectiva, a integração de aspectos psíquicos do sujeito –anteriormente cindidos e fragmentados em seu mundo interno – poderia se aproximar da ideia de completude centrada no sujeito. Evidentemente, isso passa longe de uma relação com o outro que preencha qualquer falta.

Em contraposição a isso, na teoria lacaniana e nas hipóteses da autora, a falta está inscrita no desejo humano. No enfoque lacaniano, em face de sua falta estrutural, cabe ao sujeito operar em meio à falta. Na perspectiva da autora, o vazio/falta intrínseca ao desejo pode ser mobilizado de forma saudável ou patológica. Em sua apresentação saudável, promove potência, vitalidade, produtividade e criatividade. Em sua apresentação patológica, o recurso defensivo à compulsão e à idealização do objeto não permite elaborar o sofrimento psíquico. Para trabalhá-lo na seara da análise, as representações do objeto idealizado ‒ ser magnífico, ser o máximo, ser perfeito ‒ e as representações do sujeito ‒ ser insignificante, ser um nada, ser imperfeito – precisam ser analisadas à luz de sua história de vida. Com isso, ele pode integrar as representações coerentes com seu desejo mais genuíno – ser amado, ser bem-cuidado, ser valorizado, ser inteligente, ser competente, entre outras.

Desse modo, a fantasia de completude – com suas raízes na literatura, no Imaginário cultural e na análise – revela a dificuldade do sujeito arcar com sua existência apesar e para além da falta. Nessa medida, pode-se dar o encontro faltoso consigo mesmo e com o objeto. No trabalho com seu desejo, há as diversas possibilidades do amor, da potência e da criatividade nas relações humanas.

Considerações finais

Tendo como horizonte a força da ideia milenar de completude do eu faltante por meio do outro, sua inserção em diferentes vertentes da vida contemporânea se revela nesse trabalho.

A mitológica ideia grega de perfeição e de força dos seres unos, bem como de imperfeição e fraqueza dos sujeitos separados do ser amado encontra-se disseminada na nossa cultura contemporânea. No mundo digital, a falta de um e sua suposta completude pelo outro envereda por várias referências à comida, nas quais o sujeito constitui o substrato e a pessoa amada lhe confere sabor, prazer, brilho, conforto, segurança e beleza. Noutras descrições, seu objeto de amor oferece benefícios prazerosos para ele: vida, frescor, bem-estar, beleza, cor, graça e encanto. Em suma, elas evidenciam a ideia de interdependência essencial entre um e outro.

Nos domínios da psicanálise, impera o conceito de que todos nós somos seres faltantes, de modo que a completude e a plenitude do sujeito mediante sua união com o outro são impossíveis. Exceção a isso pode ser encontrada no approach kleiniano, no qual a plenitude do corpo materno se revela por meio do seio inesgotável capaz de gratificação ilimitada e a satisfação completa do bebê junto à sua mãe se faz possível.

Tomando-se como foco a mudança psíquica do sujeito quanto ao objeto idealizado na análise, sua prévia exclusividade cede lugar a vários objetos de satisfação. À medida que o sujeito se investe de amor, seus objetos revelam-se em sua real dimensão: capazes de uma satisfação temporária e faltante de seu desejo. Além disso, quando o sujeito integra as representações condizentes com seu desejo mais original e profundo ao sistema representacional, ele elabora seu trauma anterior. Em suma, ele presentifica seu desejo em suas relações adultas.

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Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 29/05/2021
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