A transição do poder masculino para o poder feminino na mulher

Introdução

‘Quando eu não escrevo, estou morta’. Clarice Lispector

‘Fui uma criança feliz; minha força enraíza-se

na relação com minha mãe’. Goethe

Este estudo se propõe a discutir a transição do poder masculino para o poder feminino, vivenciada por três pacientes em sua análise. Neste setting, algumas representações mentais pouco comuns aparecem em meio a essa transição. Para estudar essa mudança, aportes teóricos de psicanalistas ajudam a pensar aspectos dessas representações. O diálogo de suas proposições com algumas hipóteses investigativas da autora visa tornar mais rica sua análise. Além do mais, esse trabalho dá continuidade aos estudos da autora acerca do feminino; porém, dessa vez, no domínio clínico.

Cinco mil anos da civilização humana tem posto em destaque a questão de que a mulher e, mais precisamente, a figura feminina mereceram um lugar desabonador na cultura ocidental. Esta primou pela desvalorização da figura feminina na história oficial. Vetores dessa herança, o imaginário cultural e o inconsciente se presentificam na cultura por meio dos discursos, mitos, lendas, folclore, ditos populares, entre outros. Com relação a isso, Freud (1905) ressalta a ligação entre as produções do inconsciente e as construções simbólico-culturais (Almeida, 2019).

No que se refere às produções do inconsciente, a família constitui o primeiro nicho cultural determinante na propagação desse patrimônio inconsciente. No cerne desse patrimônio, a figura masculina tem sido o ícone do poder patriarcal – autoritário, dominador e agressivo – exercido sobre a figura feminina. Ambas as figuras acabam repassando essa dominação a seus herdeiros, a despeito das transformações atuais relativas ao feminino na cultura contemporânea. Para compreender esse processo e as representações que revelam essa transição, alguns conceitos se revelam imprescindíveis.

Sendo assim, vale atentar para as seguintes contribuições do approach psicanalítico relativo à família e à construção do eu junto à mãe e outros cuidadores:

Winnicott (2000) pensa o bebê na relação com uma provisão ambiental, visto que ele não é capaz de existir sozinho, seja psicológica seja fisicamente. Assim, o self do bebê existe tão somente junto com o cuidado materno suficientemente bom. E, mais, seu primeiro espelho é o rosto da mãe, que influencia na constituição de seu self. Dessa forma, a mãe invasiva e intrusiva leva à constituição de um falso self, enquanto a mãe suficientemente boa permite a formação do verdadeiro self. O início deste falso self – falsa existência – remonta à inabilidade da mãe em sentir as necessidades do bebê e em satisfazer seus gestos espontâneos. Por sua vez, a mãe suficientemente boa identifica-se com ele, decodificando suas necessidades, nomeando-as e traduzindo-as para o bebê e, assim, seu self verdadeiro começa a ter vida. Aos poucos, a criança desenvolve sua independência e sua identidade. Com isso, ela se sente real e ‘sentir-se real é mais do que existir, é um modo de existir como self verdadeiro’ (p. 47).

Em acréscimo a isso, Mahler (1975) afirma que o nascimento psicológico do ser humano inicia-se com o processo de separação-individuação, no qual o bebê evolui de um estado de simbiose com a sua genitora até à aquisição da sua identidade pessoal. Nessa linha de raciocínio, Rabinovitch, (1991) descreve o nascimento psicológico como produto de uma relação e fruto de uma conquista. A mãe cuida, reconhece e expressa as necessidades do bebê. À medida que ele evolui, a mãe recua nessa atividade e permite que a criança adquira sua autonomia – conquista que depende de ela superar frustrações. Mediante seu interesse pela criança, esta nasce e ocupa seu lugar no mundo.

Nesse eixo de reflexão, o sentido de existência do eu é formado na relação com a mãe/cuidador. Tendo-se em vista que o eu se constitui pela mediação desse outro, este garante a existência real do eu do filho ao permitir-lhe o direito à diferença de seu desejo. Pois, grande parte do significado das experiências do sujeito é dada através da relação com a alteridade fundadora do eu. Essa fundação – de caráter mais saudável ou mais patológico – favorece ou desfavorece a constituição de um eu próprio, organizado e diferenciado do desejo parental e ancestral – em razão da herança psíquica da família.

Estas primeiras ideias orientam a reflexão sobre as representações incomuns – ser inexistente, ser invisível, entre outras – das pacientes em sua passagem do poder masculino para o feminino – observado numa análise.

O desejo, o trauma do absoluto e o sistema das representações

Situando-se a herança psíquica na família conforme o enfoque psicanalítico, a questão da transição do poder masculino para o poder feminino, na mulher, pode ser examinada no campo do desejo, do trauma do absoluto e do sistema representacional – hipóteses de trabalho da autora.

O desejo configura-se como um conjunto de representações e de afetos, que rege as forças psíquicas do sujeito. Em princípio, ele gera movimentos psíquicos em direção aos seus objetos de satisfação, até se efetivar no mundo. Contudo, as inibições na satisfação do desejo do adulto derivam de sua fixação em certas representações e afetos, que impedem sua realização. Esses bloqueios do desejo do sujeito estão radicados no material psíquico que perpassa sua família. Assim, vivências familiares muito arcaicas marcaram o desejo do sujeito e seu sistema representacional (Almeida, 2003) .

O sistema das representações do sujeito constitui um dispositivo psíquico com potencial para representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Sua função de representar as diversas vivências psíquicas se desenvolve a partir dos sistemas representacionais de seus objetos primários e, assim, se assujeita ao seu desejo. Logo, esses conteúdos psíquicos introjetados pela criança têm relação com os conteúdos psíquicos de seus pais e antepassados. Esse sistema é constituído por diferentes camadas ou estratos psíquicos. Seus elementos fundamentais são as representações e os afetos do desejo que, a priori, dirige-se ao mundo das relações humanas. Esses processos tem relação direta com as gerações da família (Almeida, 2003).

Dado esse legado familiar, as questões do desejo e sistema das representações se associam ao enfoque econômico sobre o funcionamento psíquico. Quanto a isso, Freud (1915) afirma que esse enfoque considera as alterações nas quantidades de excitação. No inconsciente, há conteúdos investidos com maior ou menor força.

Esse conceito freudiano dialoga com as ideias da autora acerca do investimento, do sobre-investimento/sobrecarga e do subinvestimento/subcarga de afetos nas representações. Estas recebem quantidades maiores – sobre-investimento – ou menores – subinvestimento – de afetos como: amor, ódio, horror, nos traumas.

No sistema das representações, o trauma do absoluto se revela mediante certas representações: ser abandonado, desamparado, rejeitado, excluído, não-amado, ser um nada, para sempre, sem lugar no mundo, entre outras. Elas são sobrecarregadas de ódio e horror, sendo contrárias à realização do desejo do adulto. Coexistem, igualmente, no sistema, as representações autodepreciativas: ser explorador, desacreditado, expulso, desastrado, dentre outras. Elas são investidas de ódio e também impedem o fluxo do desejo – dificultando sua realização de forma mais branda que as do absoluto. Em contraste, ser amado, competente, dedicado, persistente, bem-sucedido e vencedor constituem representações coerentes com seu desejo – em seus fundamentos mais verdadeiros. Elas são investidas por amor, favorecendo a força do desejo do adulto (Almeida, 2003).

Dentre as representações do trauma do absoluto, os paradoxos lógicos articulam vivências mentais contrárias, mas indissociavelmente ligadas: ganho e perda, inclusão e exclusão, cheio e vazio. Na análise, os paradoxos aparecem em destaque quando os objetos do desejo do paciente, quando conquistados por ele, produzem vivências mentais ilógicas nele. Pela lógica da razão, suas conquistas deveriam gerar: ser ganhador, ser incluído e estar satisfeito. Paradoxalmente, ele vivencia: ser perdedor, ser excluído e sentir-se vazio. Estas representações detém a primazia sobre as primeiras no sistema das representações, dada a força daquele trauma (Almeida, 2003).

Os casos clínicos selecionados demandam acrescentar às representações dos paradoxos, os tópicos da vida e da morte, existência e inexistência, sanidade e loucura. Pois, ainda que as pacientes estejam vivas na realidade material partilhada com os demais – em virtude de suas vivências de morte com seus pais – as representações paradoxais de estar vivo-estar morto, ser existente-ser inexistente e ser lúcida -ser louca se fazem presentes em seu sistema representacional.

Essas concepções da autora entram em interlocução com os conceitos psicanalíticos mencionados, objetivando analisar os casos clínicos relatados a seguir.

A clínica da transição do poder masculino para o poder feminino na mulher

Nesta seção, as histórias de vida e os casos clínicos relativos às pacientes são oferecidos ao leitor. O discurso das pacientes é destacado por meio de aspas simples. O uso do travessão visa tornar mais claro o relato sobre elas. O itálico ressalta suas representações, bem como suas mudanças na análise.

Na família da primeira paciente, seu pai era autoritário, agressivo e dominador. Sua mãe era submissa a ele quando ele estava presente, mas criticava-o, às escondidas. Nas discórdias entre a paciente e seu pai, sua mãe confirmava o poder paterno. Nessas ocasiões, ela se sentia humilhada e desvalorizada diante da frase materna: ‘desse jeito, seu pai vai morrer’. Ela representou essa frase materna como: com seu jeito de ser, você vai matar seu pai e, ainda, como: seu jeito de ser é destrutivo, maléfico e mortal. Assim, seu desejo singular e sua diferenciação do eu de seus pais seriam mortíferos para seu pai. Com isso, ela se sentia louca e não dava crédito às suas percepções, emoções e pensamentos. Nesse contexto, as perdas e os fracassos afetivo-financeiros de seu pai nos negócios foram encobertos por sua mãe e por ela – psicológica e financeiramente.

Quando adulta, sua mudança para uma nova cidade – devido ao trabalho do marido – implicou a perda de vínculos de amizade e profissionais bastante significativos, na sua cidade de origem. Essa mudança provocou, ainda, sua separação do marido, por um mês, dadas as brigas do casal. Então, ‘fiquei louca, louca, sem bases, sem apoio’. E, nessa época, seus pais vieram morar com ela, reativando seus conflitos antigos com eles. Tempos depois, as perdas precoces e abruptas de parentes amados por ela incidiram no mesmo ponto traumático: matar seu pai.

Na nova cidade, a idealização de certa profissional implicou decepções e perdas, mas uma amiga a resgatou para seu consultório. Seu fechamento posterior implicou perdas afetivas, profissionais e financeiras. Além disso, seu trabalho atual numa micro-empresa de saúde comporta um esquema perverso quanto a dinheiro. Ela recebe muito pouco dos convênios e um mês depois de atender os pacientes, pagando grande porcentagem de seu ganho para a dona. Contudo, ela privilegia seu lado frágil e humano, sendo compreensiva com ela. A dona a chama de amiga-irmã e a convida para ir a sua casa. Apesar de sofrer muito e há muito tempo, com esse esquema de trabalho e com as relações que ali vigoram, não consegue sair dele. A seguir, numa sessão se discute a organização paradoxal de seu desejo em termos de tudo ou nada. Em síntese, ela representava seu pai como tudo e a si mesma como nada. Tudo se ligava a ‘meu pai podia tudo, sabia tudo’, poder absoluto que impedia seu crescimento. Desse modo, ela vivenciava um sofrimento sem saída e sem fim. Quando analisados, tudo envolve o suposto e ilusório poder paterno, enquanto nada abrange seu trabalho e seu dinheiro/tudo, essenciais para encobrir a falência e as perdas paternas. Ainda que ela diga ‘é uma agonia, eu patino, patino e não saio disso’, consegue se desligar da empresa, liga para uma colega e se realinham para trabalharem juntas.

Seu retorno à análise e sua transição do poder masculino para o feminino envolve a morte real de seu pai e sua separação do marido, após trinta anos de casamento. Ele saiu de casa e se mantém indeciso frente à posição dela de que o ama e deseja que ele volte para ela. De modo geral, eles conseguem conversar de forma clara e produtiva, mas, há tempos, a indecisão dele a fragiliza e a irrita: ‘fico sem chão’. Numa ocasião, eles brigam de forma contundente e quando ele lhe diz: ‘não vá pensar que eu sou seu’, ela lhe dá um tapa no braço. Ao relatar esse evento, representa-se, em diferentes momentos da sessão, como: ser uma coisa, ser um zero à esquerda, ser um erro, ser lixo, ser maluca, ser a pior das piores e deseja sumir. Assim, quando ele nega ser posse dela, ela se descontrola e o agride, suscitando a indagação acerca do quanto sua fonte de amor advém dela ou dele. Ressaltam-se seu desprezo por si, bem como sua submissão e sua projeção de amor, valor e poder na figura masculina. Ela se sentia uma ‘morta-viva’. Porém, diante dessa perda, ela a transforma em ganho – ao assumir seu amor, valor e poder próprios. Passa a se representar como digna de ser amada, ser valorizada e ser poderosa no sentido de ser guerreira, ser vencedora e ser competente. Quando pergunto se ela está bem, ela repete meu nome e acrescenta: ‘você não existe’ (Almeida, 2020a).

No enredo familiar, a segunda paciente é a filha mais velha, a mais independente e a mais solitária entre elas. Qualifica-se como a ‘inexistente’, dada sua autonomia na família. A segunda filha era a ‘doente’, a terceira era a ‘desaparecida’ e a quarta era a ‘morta’.

Seu pai ditava a lei, a ordem e os critérios de valor na família: ser homem, ter filho-homem, ter dinheiro e ter status social. Em sua infância, ainda houve certa proximidade entre eles. Entretanto, aos seis anos, ele cortou sua proximidade afetiva e física com ela nas brincadeiras, pois ‘... eu estava crescendo’. Essa ruptura abrupta na ternura e nas brincadeiras com ele marca sua inexistência. Sua solidão e sua sensação de não ser vista ligam-se a seu pai: não visto pelo pai dele/avô da paciente. Todavia, ele cuidou do pai, quando este estava prestes a morrer – clamando pelo segundo filho. Dentre as frases de seu pai havia: ‘morro pelas minhas filhas’ e ‘daria meu sangue pelas minhas filhas’. Contudo, quando uma delas quase morreu, ele continuou dormindo, enquanto as mulheres correram para socorrê-la. Tal como seu pai lhe dissera, ele dizia para a filha: ‘Você não presta nem para arrumar homem’. Assim, ela desejou ter um filho, para ter valor e ser reconhecida pelo pai. A paciente era a preferida de sua mãe, sendo valorizada por ela, em detrimento da segunda irmã. Para sua mãe, ela era inteligente e madura, enquanto sua irmã era burra. Essa valorização materna gerou distância paterna, disputas com a irmã e sua desvalorização por todas. Elas a chamavam de louca.

Em seu primeiro casamento, a paciente e seu marido amavam-se. Não obstante, ela não se sentiu vista por ele e eles se separaram. Em seu segundo casamento, o casal se ama, mas brigam em virtude das brigas entre ele e o filho do casal. Os critérios de valor de sua sogra atual – beleza, dinheiro, etiqueta e status – favoreceram a rejeição e a exclusão da paciente. Assim, sua dor com sua sogra ‘é não ser vista, não ser reconhecida’. Contudo, a paciente rivaliza com ela e deseja que ela estivesse morta. Ela a associa a uma corda e a uma cobra. A essa cobra, ela daria veneno. Associa que um homem está dependurado em uma corda e Deus lhe diz: ‘solta’. Ele não o faz e morre ali, por ter medo de morrer. Uma ponta da corda refere-se a sua relação com seu pai, marcada por dominação, opressão e sem aliança. Esta foi buscada junto a sua mãe, simbolizada pela outra ponta da corda – que servia ‘para segurar’. Porém, sua mãe rompia a aliança com ela, voltando para o marido, após as brigas do casal. Quando criança, seu desejo era ‘ser a salvadora do universo-mãe na relação com meu pai-mundo imundo/injusto’. Ele destruiu uma estátua de santa pintada por sua mãe: a Pietá, que carregava Cristo crucificado nos braços: filho poderoso-fragilizado, que precisava ser cuidado. Sua mãe a protegia de seu pai e ela deseja proteger-amparar sua mãe protetora-desamparada.

Os paradoxos da paciente enlaçam-se aos paradoxos de seus progenitores. O paradoxo paterno exalta seu poder destrutivo sobre as mulheres e sua falta de poder nos negócios da família – assumidos pelo segundo irmão, detentor do poder, nomeado pelo pai/avô da paciente. No trabalho, sua competência e seu profissionalismo a lesariam, pois ela não se sente reconhecida pela maior autoridade masculina – incoerente como profissional. Seu paradoxo é: como ela concede poder a ele − injusto ao exercer seu direito e sem mérito ao exercer o poder?

O paradoxo materno proclama o poder do marido − destrutivo de suas realizações – reservando-lhe a melhor comida, em prejuízo das filhas. Para sua mãe, cabia-lhe enredar-se à dor das mulheres da família. ‘Patino na lama’, pois patina no sofrimento das mulheres. A transição de sua falta de reconhecimento no plano do possível – calcado em suas reais características, realizações e méritos − esbarra no plano do impossível – ser reconhecida pelo pai e ser dependente desse aval inatingível. Seu paradoxo é: se ela inexiste, como sofre tanto?

Apesar de escolhida por três chefes, ela se sente incompetente para assumir um cargo de chefia. Tem medo de morrer e de enlouquecer. Sua ascensão profissional resvala para a vivência de queda. Remete a uma brincadeira junto ao seu pai, em que ela e sua segunda irmã pulavam de uma escada. Ela vivenciava ‘uma queda num abismo’ e ‘o fim da existência’. Além disso, ela se sentia desamparada e à mercê de forças maléficas poderosas.

A seguir, diz: ‘o mundo cai na minha cabeça, desmorona, arrebenta, não vejo saída’. Seus paradoxos são: sente-se inexistente, sendo existente; sente-se não vista, sendo visível. Seu sofrimento é sem fim, sem saída. Na família, sentia-se sem razão, sem sentido e louca, quanto mais tinha certeza de suas percepções. Seu desejo de vínculo seguro era seguido de sua repetida ruptura. Em sua família, ela se sentia sem saída – assim como no trabalho.

‘Minha chefe nem liga se eu tô viva ou morta, não me vê’ − tal como ‘meu pai não me via, nem viva nem morta’. Ela se sente a ‘louca’ com tal chefe. Sua máxima lucidez nas percepções torna-a louca, como na família. Vive a ameaça de perder seu cargo de chefia. Seu pai era louco de pedra, mas sua loucura era acobertada por sua mãe. Ao perder a aliança com ela, sentia-se perdida e louca: perda da razão. Contudo, com a análise, sua razão permite-lhe uma leitura crítica das relações. Esse uso inteligente e maduro de sua razão opõe-se a ser a louca da família. Assume sua existência, unindo razão, emoção, decisão e clareza mental.

Noutra vez, ela se sente à beira da morte, num colapso. Várias vezes, fala em morte. Diz: ‘... quando eu cair’ e ‘quando tudo desabar’. Tal como seu pai, ela se tornou insensível para com seu valor e sua existência. Na infância, seria cinquenta por cento louca, trinta por cento inexistente e vinte por cento inteligente. No trabalho, seu olhar é vigilante e crítico, associado a ela cair e fracassar. Porém, com a análise, sua inteligência avalia de forma crítica as situações e suas vivências como um todo. Integra sua razão, sua inteligência e sua compreensão da psique (Almeida, 2014).

A terceira paciente nasceu em meio às duas famílias de seu pai. A caçula de seu primeiro casamento perguntou a ela: porque você nasceu? Em resposta a isso, diz: ‘me enterrei no porão da casa – lugar dos mortos − e passei a catar grãos’.

Filha mais velha do segundo casamento de seu pai, ela foi nomeada com um nome masculino invertido, pois seus pais desejavam um filho. Então, seu pai fez dela o companheiro em atividades masculinas como ir com ele ao mato. Em meio a isso, quando ela tinha nove anos, seu pai teve angina e um acidente vascular cerebral. Nessa época, ela sentia medo e desejo de que ele morresse – desejo que produzia muita culpa nela. Dos dez aos catorze anos, ela foi sua muleta e cobriu suas faltas. Desse modo, ela não pôde vivenciar os sentimentos e os pensamentos da menina. Para aliviar a dor de seu pai e evitar o sofrimento dos irmãos nesse período, ela se matou como sujeito e como mulher.

Na entrada da adolescência, seu pai morreu. Sua mãe chorava muito e desmaiava frequentemente, após essa perda. Com isso, a paciente passou a cobrir as faltas e as perdas de sua mãe − que cuidava do bebê. Reprimindo-se como jovem mulher, cuidou dela como uma irmã-marido e tornou-se a mãe dos irmãos-filhos e a mãe de sua mãe. Porém, quando ela disse para sua mãe que ‘não aguentava mais’ essa sobrecarga, ouviu dela: ‘quando seu marido morrer, você vai sofrer muito...’. E, mais, em seu casamento, o sogro lhe disse: ‘você vai sofrer muito com seu marido’. Todavia, em seu estado de origem, ‘levantei uma instituição de ensino e ergui meu marido, ao passo que caí e desmoronei’. Nessa época, foi diretora de uma instituição religiosa, tendo projetos de vida próprios e certa autonomia com relação a ele.

Quando ela se mudou para outro estado junto com o marido, descuidou de seus projetos de vida e privilegiou os dele. Com essa mudança, ela retornou a um ano anterior em sua graduação e essa perda-queda aparece em: ‘quando caí na turma dois’, ‘quando caí no segundo ano’. Além disso, ela se sentia sobrecarregada com incontáveis tarefas – esposa, mãe, aluna, dona de casa e coordenadora numa igreja. Sacrificava-se, desejando ser a dona de casa perfeita e mãe-mão de obra útil – para ser amada, valorizada e reconhecida por ele. Por um lado, ela se submetia ao poder dele; por outro, ela o atormentava. Como uma criança dependente e birrenta, ela o torturava, até obter algum conforto material e pequenas regalias. Porém, ela perdia crédito com ele, ao ameaçá-lo e não cumprir as ameaças. Suas reiteradas crises com o marido produziam, nela, o desejo de morrer e ela acrescenta que: ‘meu marido morreu também’. Um forte montante de raiva – antes oculto nela – emergiu nesse momento. Nesse conflito, ela falava ‘a gente’ ao invés de ‘eu’, ocultava o ‘me’ nas frases e repetiu por vezes: ‘tudo cai na minha cabeça, desmorona, desaba, fico sem saída’.

Além disso, ela afirmava ser desprezível, insignificante, descontrolada e louca. Enquanto ela se desvalorizava em ‘sou ninguém, sou nada, tenho nada, é impossível me realizar’, exaltava: ‘meus irmãos são sucesso financeiro’. Ela dizia: ‘sou desgraçada’, mas sua graça foi o afeto/dinheiro de um irmão, quando passou por grande dificuldade financeira. Ademais, ela tem a graça da palavra que afaga, aconchega e une a família nas relações atuais. Nessa ocasião, surgiram duas cenas catastróficas em sua mente. Numa, ela se viu presa a um poste por correntes como uma escrava; noutra, era prisioneira nas estacas de uma barraca. Essas cenas denotavam ser coisa: sem consciência de si como sujeito e sem desejo próprio.

Com a análise, ela se posiciona de um modo novo, junto ao marido. Realiza, em ato, aquilo que se propusera a fazer e fala em ‘eu’ ao conversar com ele. Contudo, ao tentar realizar seus projetos de vida, ela é boicotada por ele – inclusive pelo controle do dinheiro. Pergunta-se: ‘quem sou eu’ e ‘o que faço nessa relação?’ Apesar disso, diante dos líderes de sua instituição, fala em ‘eu’, ao propor limites para suas tarefas e argumentar, sem criticá-los. Contudo, paradoxalmente, se desqualifica perante eles, ao dizer ser louca e descontrolada. Porém, novas representações e afetos surgiram: ser senhora de seu desejo, ser livre, ser inteligente, ser lúcida e ser sensível – investidas por amor. Assim, elas dialogaram com as representações e afetos do início, abrandando seu sofrimento psíquico (Almeida, 2020b).

Discussão

O exame desses casos clínicos destaca pontos em comum na história de vida das pacientes. As três tiveram pais autoritários, cujos pais também foram autoritários com eles e, desse modo, eles repetiram essa relação de poder com as filhas/pacientes. Além disso, seus pais constituíram famílias nas quais ninguém tinha identidade, existência e desejo singulares e próprios, diferenciados dos demais. À medida que elas se tornaram adultas e se casaram com homens autoritários, sua projeção do poder masculino do pai para o marido produziu vários conflitos nelas e na relação com eles. Posto isso, fez-se imprescindível um processo analítico para organizar suas questões.

Na primeira paciente, as representações e os afetos do trauma do absoluto se repetem – ser nada, ser fracassada, ser rejeitada e ser perdedora, numa perda sem fim – sendo sobre-investidas por ódio e horror. Ainda no plano dos afetos, aparecem: intensa culpa, agonia e pavor. Associados ao sofrimento da perda paradoxal do pai/objeto idealizado e persecutório, seus pontos traumáticos são: morte, rejeição e perda. Pois, ela representa seu pai em termos paradoxais: ser forte e ser poderoso, mas igualmente ser frágil e ser adoentado. Cabia-lhe ser desvalorizada, ser submissa e ser impotente, junto a ele. Sendo assim, subjacente ao seu medo de ser fraca, ela tem medo de ser a si mesma e de ser mortífera/ser destruidora do outro. Logo, restava-lhe ser indiferenciada de seus pais e ser existente para suprir o desejo do outro. Desse modo, as representações paradoxais desse trauma no sistema são: ser louca, mesmo sendo lúcida; estar morta, mesmo estando viva; ser inexistente, mesmo existindo – como eu diferenciado dos pais. Quanto a isso, a mãe invasiva e intrusiva leva à constituição de um falso self.

O início dessa falsa existência remonta à inabilidade da mãe em sentir as necessidades do bebê e em satisfazer seus gestos espontâneos (Winnicott, 2000).

Sob tal contexto, o discurso de sua mãe – desse jeito, seu pai morre – parece comportar sua repressão contra seu ódio ao marido, então projetado na filha. Assim, a repressão do ódio da paciente fez com que seu ódio fosse introjetado por ela, sob a forma de paradoxo. Mais especificamente, a organização paradoxal de seu desejo – segundo os extremos do tudo ou nada – fica evidente em: ‘ou eu me destruo ou destruo quem amo’. E, mais, sua relação paradoxal com seus pais levou à fixação do ódio no sistema representacional – ‘eu patino, patino e não saio disso’. Entretanto, a análise de seu paradoxo deu espaço para ela se representar como digna de ser amada, ser valorizada e ser poderosa no sentido de ser guerreira, ser vencedora, ser lúcida e ser competente (Almeida, 2020a).

Na segunda paciente, a morte do eu em sua família aparece sob a graduação mortífera nas representações das filhas: ser a inexistente, ser vista na doença, ser a desaparecida e ser a morta. Nesse veio, dentre as frases de seu pai havia: ‘morro pelas minhas filhas’ e ‘daria meu sangue pelas minhas filhas’. Elas apontam a suposta doação extrema de amor paterno a elas, junto com drama, sacrifício, sofrimento e morte. Porém, essas frases são paradoxais em relação a seu comportamento para com elas.

Metáfora desses vínculos mortíferos de sua família, a corda remete ao seu desejo de vínculo com sua mãe, sua repetida ruptura, sua avidez por ele e sua fixação a ele. A ruptura abrupta do vínculo com seu pai foi vivida por ela como queda no abismo e morte. Rompido seu vínculo com seus pais por várias vezes, seu eu se fragmentou e, nele, imperou a morte dos vínculos. Assim sendo, a ruptura dos vínculos coloca-a entre duas mortes, dado seu desejo e seu medo de romper o vínculo destrutivo e construir vínculos construtivos. Tal como seu pai, ela se tornou insensível e indiferente para com seu valor e sua existência. Parece associar-se às partes mortas de seu eu, pois ela não se ama, não se valoriza e não vê suas conquistas. Associado a isso, em relevo aparece o sofrimento de ser inexistente e ser invisível nessa família, presente em seu avô paterno quanto a seu pai, deste na relação com a paciente e dela com o primeiro marido, com sua sogra e com sua chefe. Entretanto, com a análise, ela passa a se representar como capaz de: ser inteligente, ser madura, ser crítica, ser lúcida que suplantam ser a louca da família. Assume ser existente, ser decidida e ter clareza mental. Em outras palavras, começa a integrar sua razão, sua emoção, sua inteligência e sua compreensão da psique (Almeida, 2014).

No que diz respeito à terceira paciente, suas representações de ser escrava e ser prisioneira a posicionavam numa categoria de menor valor como ser humano. Ser muleta remetia a carregar um peso maior do que ela podia carregar e a ser coisa, desconsiderada como sujeito. Ser ninguém, ser nada e ter nada ocultavam que, para ela, ser alguém era ser cuidadora do outro e ser endinheirada. Ser desprezível e ser insignificante se associavam a ser louca e a ser descontrolada. Contudo, ser louca encobria seu medo de assumir seu desejo como sujeito e como mulher. Essas representações autodepreciativas investidas por ódio dificultavam realizar seu desejo no mundo – quando adulta.

Com a análise, apareceram representações investidas por amor – ser competente, ser útil e ser perfeita. Contudo, essas representações de seu valor subordinavam-se ao valor que seu marido deveria reconhecer nela. Sendo assim, ser competente, ser útil e ser perfeita visavam ser amada, ser valorizada e ser reconhecia por ele. Ser útil a colocava na condição de ser instrumento para satisfazer o desejo dele. Ser perfeita encobria ser sacrificada para ser amada por ele. Não obstante ser competente e ser autossustentada – em seu estado – constituírem representações coerentes com seu desejo, ser dependente e ser suporte do marido prevaleceram no novo estado do país. A despeito disso, a análise permitiu a mudança de representações autodepreciativas da paciente – ser desprezível, ser insignificante, ser escrava, ser coisa, ser louca, ser incompetente, ser desvalorizada – para representações coerentes com seu desejo – ser valorizada, ser senhora de seu desejo, ser inteligente, ser lúcida, ser sensível, ser competente – que permitem a realização de seu desejo no mundo (Almeida, 2020b).

Nas três pacientes, sua transição – de antigas representações e afetos do trauma para novas representações e afetos harmônicos com seu desejo – demandou lidar com temas traumáticos em suas famílias: a morte, a loucura, a inexistência como sujeito, a existência como objeto-coisa. Dentre suas representações paradoxais, elas se deparavam com: ser louca, mesmo sendo lúcida; estar morta, mesmo estando viva; ser invisível, mesmo sendo visível; ser inexistente, mesmo existindo – como eu diferenciado dos pais. Segundo Rabinovitch (1991), o nascimento psicológico consiste no produto de uma relação e fruto de uma conquista. A mãe cuida, reconhece e expressa as necessidades do bebê. Mediante seu interesse pela criança, esta nasce e ocupa seu lugar no mundo.

Sua existência como objeto-coisa se revela mediante as representações de ser coisa, ser muleta, ser instrumento, ser ninguém, ser nada – enunciadas pela terceira paciente. Ser coisa, ser lixo, ser um zero à esquerda, ser um erro, ser uma morta-viva são referidas pela primeira paciente. Esta aponta ‘fico sem chão’ e ‘fiquei louca, louca, sem bases, sem apoio’ – quando das duas separações do marido. Na segunda paciente, estar em colapso e sua queda num abismo tem relação com ‘ quando eu cair’, ‘quando tudo desabar’ e ‘o mundo cai na minha cabeça, desmorona, arrebenta, não vejo saída’. Bastante similar a isso, é a referência da terceira paciente a ‘tudo cai na minha cabeça, desmorona, desaba, fico sem saída’. O sofrimento sem saída e sem fim – relatado pelas três – denuncia o paradoxo e o ódio ancestral sob os quais elas estavam fixadas. Nesse sentido, patinar no sofrimento – afirmado pela primeira e pela segunda pacientes – parece remeter à fixação do ódio no sistema representacional. Muito evidenciado pela segunda paciente se desvela o sofrimento psíquico de ser invisível, em sua família.

A complexa mudança ou transição do poder masculino para o poder feminino nas três pacientes se revela por meio das representações paradoxais e das representações de ser objeto-coisa. Estas deram lugar às novas representações de si: ser existente como sujeito, com desejo próprio e autora da própria história, entre outras.

Considerações finais

Há cerca de cinco mil anos, a hegemonia da figura masculina sobre a figura feminina se faz presente na cultura ocidental, por meio do discurso, das lendas, dos mitos, dos ditos populares, entre outros. Típico do imaginário cultural, esse legado se entrelaça às produções do inconsciente transmitidas pela família. A despeito das recentes transformações culturais relativas à relação homem e mulher, o império da figura masculina sobre a feminina ainda se encontra infiltrada na psique dos membros da família. Bastante impactante nessa investigação, essa primazia masculina é caracterizada pela inexistência de homens e mulheres como sujeitos da própria história e senhores de seu desejo, para além dos ditames da cultura e da família.

Em contraposição a isso, o nascimento psicológico do sujeito como ser existente com desejo singular demanda um discurso e um olhar amorosos por parte de seus pais/cuidadores. Estes podem reconhecer seu desejo como próprio, único e distinto do desejo familiar. Todavia, de modo geral, a criança – em seu desamparo – convive com sua dependência da alteridade no tocante ao seu amor, seu valor e seu reconhecimento. Dessa forma, muito frequentemente, ela tem que ser submissa ao desejo do outro – para ser vista por ele. Contudo, esse olhar do outro enredado em dominação-submissão e em conformidade com os padrões familiares e sociais é superficial, restritivo e empobrecedor da relação. Assim, se estabelece o conflito entre ser autêntico e não ser querido, não ser aceito na família. A partir disso, esse adulto tende a se inserir noutros grupos incongruentes com seu desejo profundo de ser autêntico e, com isso, ele pode experimentar desespero. Nessa medida, faz-se necessária uma mudança da referência dos pais/outro para o próprio olhar como referência, no sentido de o sujeito conseguir se amar, se valorizar e se conceder poder em sua singularidade.

Referências

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Winnicott, D. W. (2000). Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 09/04/2021
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