Para além do tempo e da cultura: impulsos, defesas e processos inconscientes

Introdução

Nada é mais comum do que o desejo de ser notável.

Shakespeare

Este trabalho fundamenta-se numa leitura psicanalítica de expressões linguísticas contemporâneas – encontradas na mídia brasileira – e sua comparação com expressões linguísticas estrangeiras. Ao lado de psicanalistas, autores de outros domínios do saber permitem pensá-las. Para tanto, parte-se de algumas expressões brasileiras, em seu contexto e com seus significados em sites da web. A seguir, apresentam-se algumas expressões inglesas, espanholas e francesas – junto com seu significado em português. Ao cotejá-las, evidenciam-se certos conteúdos inconscientes, que ultrapassam as épocas e as culturas. Porquanto, tais expressões retratam produções do inconsciente em constante diálogo com a cultura.

Quanto a isso, Freud (1905) ressalta a imbricação das produções do inconsciente às construções simbólicas presentes na cultura.

Nesse plano da cultura, o conceito de imaginário – oriundo da antropologia –dialoga com o de inconsciente – pedra de toque da psicanálise.

Segundo Durand (1997), o imaginário é o conjunto de imagens e de relações de imagens, que constitui o capital pensado do homo sapiens – sendo o grande denominador fundamental, no qual se fundam os procedimentos do espírito humano. Assim, há uma incessante troca – ao nível do imaginário – entre as pulsões inconscientes subjetivas e as intimações objetivas, oriundas do meio cósmico e social.

Esse conjunto de imagens é construído ao longo do tempo, por meio da cultura, da história e das artes de um povo. Dentre esse conjunto, encontram-se as expressões linguísticas, que emanam de certo grupo cultural. Contudo, algumas expressões parecem ter um parentesco semântico entre si – significados próximos – de natureza transcultural.

Aí se inserem termos relativos aos impulsos, defesas e processos psíquicos – descritos pela psicanálise.

Algumas expressões linguísticas da mídia brasileira atual

Como ponto de partida dessa seção, apresentam-se tais expressões contemporâneas, junto com informações sobre elas a partir de alguns sites da web.

Na atualidade, ser gostosa, ser poderosa, ser lacradora e ser um mulherão da p.... são sobejamente utilizados na mídia e no cotidiano. Consistem em expressões atribuídas às mulheres.

O termo ser gostosa se refere a ter cintura fina, seios e nádegas avantajadas: atributos físicos altamente valorizados na cultura brasileira. No primeiro site, ser gostosa é mais que algo visual – é uma perspectiva de vida. Ser gostosa significa gerar atração sexual instantânea, acentuando suas curvas; entrar em forma sugere: para chamar ainda mais a atenção, perca peso ou crie músculos; pareça madura adverte: não pareça uma criança chorona, reclamadora, briguenta; ostente confiança diz: a gostosa sabe que é gostosa e tem confiança para demonstrar isso; não fique muito emotiva sugere: a gostosa é controlada na expressão de emoções, sabe quando exibir felicidade ou tristeza. Por fim, trate todos com gentileza e respeito, responsabilize-se por suas ações, fale coisas positivas que deixem os outros felizes.

Em contrapartida, noutro site, o conceito de ser gostosa é desconstruído. Assim, há: gostosas mesmo são as pessoas com riso frouxo e sorriso largo, sem medo de viver, de arriscar, não tem medo da felicidade, sua companhia é maravilhosa, tem mente aberta, são profundas, seu conteúdo deixa o corpo sem importância. Gostosas de verdade nos alegram, nos fazem sentir vivos e que a vida tem sentido.

Quanto ao vocábulo ser poderosa, dois sites trazem recomendações. No primeiro consta: coloque-se em primeiro lugar, creia em si mesma, encontre a sua paixão em termos de vocação, habilidades e talentos próprios, comprometa-se com sua realização, seja perseverante, seja autêntica, não se compare com as outras mulheres.No segundo, a poderosa coloca sua vida e sua felicidade em primeiro lugar; sabe que é responsável pela sua própria felicidade; conhece o seu valor e não muda sua opinião sobre si independentemente da opinião do parceiro sobre ela. Por outro lado, a boazinha coloca o homem como centro da sua vida e sofre quando ele se afasta; sua opinião é a única verdade e ela tenta sempre agradá-lo.

A expressão ser lacradora é pesquisada com base em dois sites. O primeiro a define como a mulher que manda bem, que arrasa, se garante, tem fama e sucesso. O segundo site explicita os requisitos da lacradora: seja você mesma- tenha argumentos para se defender, pois sua inimiga quer te derrubar; não passe do ponto- sambe na cara da inimiga com classe: você tá ‘em cima’ e ela ‘em baixo’; tenha boa auto-estima- a lacradora é alegre 90% do tempo, não há tempo ruim pra ela; seja simpática- para lacrar de verdade passe uma boa impressão, seja gentil e sempre confiante:você é uma rainha; ignore certos comentários- a lacradora sofre bastante com os invejosos/haters: transforme a opinião delas em lixo.

A expressão popular ser um mulherão da p... é examinada a partir de três sites. Primeiramente, o termo remete à música homônima. Desta, destacam-se alguns trechos: gosta de me seduzir, depois nem olha pra mim; quando eu chamo ela pra namorar, toda vez é uma decepção; eu sumia da vida dela, se ela não fosse esse mulherão da p... Em outro site, esse mito é desconstruído. Designa a mulher independente, nada a abala, está sempre feliz, é inteligente, super profissional, se acha linda. Contudo, avisa: manter-se assim é um fardo muito grande. O terceiro descreve a mulher que impressiona pelo vigor da personalidade, da inteligência e da alegria, que se ampara em suas opiniões.

Como contraponto, a seguir, aponta-se uma expressão tipicamente masculina.

Ser o cara designa um homem de destaque, que pode realizar algo exclusivo. Noutro site, implica cravar seu nome na história de um grupo ou instituição, ao chegar a um patamar supostamente inatingível. E, ainda, ser o cara é usado como sinônimo de ser pegador, em duas músicas. Na primeira, tem-se: o cara, o marra descola qualquer mulher na farra, o cara pega quem ele quiser. Na segunda: ri da minha cara, diz que eu sou um nada, vai pensando que eu já caí na sua cilada, pensa que me passou pra trás, eu sou o cara. Ele a trai com sua melhor amiga.

Uma expressão muito utilizada para ambos os sexos é ter atitude. Num site, significa correr atrás daquilo que se acredita ser o melhor para si – para alcançar sucesso na vida. Aproxima-se de ter fibra referente à pessoa forte, batalhadora, determinada. Noutro site, uma pessoa de fibra luta, vence, perde, sofre; verga, às vezes, mas não se quebra. Num terceiro, ter fibra associa-se à resiliência: capacidade de resistir às adversidades, mediante o enfrentamento de problemas e a tomada de decisões.

O vocábulo cool significa estar antenado com a moda e ter uma aparência bacana. Noutro site, esse estilo implica uma atitude de rebeldia e descaso com a sociedade. A atitude cool alude a desdenhar as instituições e ironizar os protocolos sociais. Recomenda-se escapar de tudo que é vendido pela mídia como tal. O termo descolado remete à pessoa desembaraçada e com iniciativa. E, ainda, significa uma pessoa ou coisa especial, incomum. Às vezes, é sinônimo de cool.

Enquanto as expressões anteriores indicam características e valores bastante valorizados em nossos dias, outras indicam a desvalorização de seus detentores.

A gíria bundão designa o indivíduo tolo ou retrógrado, desanimado, maçante, medroso ou covarde, otário ou idiota, com pouca iniciativa, sem atitude, sem coragem. O termo sem noção conota o indivíduo sem senso de convivência social, que não sabe o que está fazendo; que age de maneira não condizente com a realidade e, ainda, a qualidade das ações, pessoas e objetos, que extrapolam radicalmente o senso comum.

Nessa categorização de pessoas, estilos e atributos valorizados ou não, os valores da nossa cultura se fazem valer.

Análise das expressões linguísticas

Essa proposta se insere nos temas da reflexão extramuros em psicanálise. No que se refere a isso, Herrmann (2005) propõe uma clínica do mundo para além da clínica psicanalítica padrão. Essa extensão da clínica remete a um trabalho extraclínico com recortes do mundo psíquico articulado às condições sociais. Trata das condições vividas pelo homem, pois seu mundo psíquico estende-se para o real criado por ele.

Objeto de estudo da clínica extensa, as expressões linguísticas podem ser inseridas em três categorias de análise: estilos pessoais valorizados na cultura; sofrimento psíquico nas relações; vitória ou derrota em competições e na sedução. A tradução das expressões brasileiras para aquelas de outros idiomas aparece em itálico.

1- Estilos pessoais valorizados na cultura

As expressões ser gostosa, ser poderosa, ser lacradora, ser mulherão da p... denotam características femininas valorizadas na nossa cultura, mas de modo paradoxal. Na cultura midiática, esses estilos pessoais femininos são bastante exaltados. Contudo, na vida cotidiana, a adoção de roupas e comportamentos das poderosas – e seus congêneres – por parte das mulheres pode produzir conflitos com as outras pessoas.

Fundamentando a reflexão acerca desses estilos femininos paradoxais, Racamier (1980) define o paradoxo como uma formação psíquica, que liga duas proposições opostas de maneira indissociável. Essa agressão ao seu eu suscita ódio intenso, na vítima. O fascínio do paradoxo prende o pensamento numa rede paralisante.

Influenciada por estilos paradoxais do feminino, a mulher no cotidiano pode vivenciar uma divisão de seu eu. Esta divisão se deve à força dos modelos femininos midiáticos e às regras confusas da família, amigas e namorados acerca da decência da mulher. Assim, certa confusão em sua identidade se instala – em vários graus.

Dentre os estilos midiáticos, ser gostosa, ser poderosa, ser lacradora e ser um mulherão da p... remetem ao poder de atração sexual da mulher sobre o homem. Expressões típicas do empoderamento feminino, os paradoxos subjacentes a ele tem relação com os impulsos sexuais e agressivos envolvidos na relação homem-mulher.

Quanto a isso, Freud (1923) descreve que a fusão das pulsões sexuais e agressivas pode ocorrer em variadas proporções. Na defusão, as pulsões sexuais se separam das agressivas e a destrutividade se faz valer nas relações. A esse respeito, Sicuteri (1986) defende que as interpretações do feminino, na Idade Média, nasceram de impulsos agressivos inconscientes do homem contra seus impulsos sexuais. Essa defesa psíquica – contra seu medo diante da mulher sexualmente atraente – tornou-os sádicos.

Em continuidade a isso, Mantega (1986) discute a relação entre sexo e poder nas sociedades autoritárias e a face erótica da dominação.

As relações de dominação se estendem à sexualidade, em nossa civilização. Para Chaves (2008), no viés da dominação, os excessos do masculino são formações reativas ao feminino. Assim sendo, a anulação da mulher ‒ sob a ótica do narcisismo fálico ‒ dá forma ao machismo.

Tanto as expressões femininas quanto a expressão masculina – bastante valorizadas na nossa cultura – exemplificam o mecanismo de defesa da idealização. Klein (1959) considera a idealização do objeto como uma defesa contra o objeto persecutório. Na idealização, o objeto é vivenciado – pelo sujeito – como capaz de garantir satisfação infindável.

Noutra leitura, a idealização pode ser compreendida como o sobre-investimento de amor nas representações, ao passo que a persecutoriedade se refere ao sobre-investimento de ódio nelas. Ambas ocorrem em meio ao processo de identificação (ALMEIDA, 2003). Quanto a isso, Freud (1913) aponta os conteúdos transmitidos por identificação com os modelos parentais na história pessoal e os modelos culturais.

A partir disso, ser gostosa, ser poderosa, ser lacradora, ser um mulherão da p..... e ser o cara retratam os modelos de identificação – associados às representações de sucesso, competência, beleza, poder e felicidade – na cultura pós-moderna. No mais das vezes, o sujeito idealiza/sobre-investe de amor esses modelos/objetos de identificação. Ao fazê-lo, seus aspectos persecutórios – sobre-investidos de ódio – residem em seu eu – como representações de fracasso, incompetência, feiura, fraqueza e infelicidade.

Igualmente, ter atitude, ter fibra, ser cool e ser descolada constituem elementos indispensáveis para a mulher ser poderosa – e seus similares – e o homem ser o cara. Portanto, traduzem estilos pessoais que atendem a ditames da cultura pós-moderna.

A cultura pós-moderna designa o conjunto de ideias, informações, imagens e valores, articulados ao capitalismo tardio – a partir de 1980. Seus valores são: a força das imagens, a fragmentação das relações, a fragilidade dos vínculos afetivos, a ênfase no consumo, a superabundância de informações, a escassez de sentidos, o apelo às sensações, a substituição da ética pela estética, o culto às celebridades, o hedonismo e o narcisismo (SANTOS, 1987). Quanto à identidade fake, Pereira (2004) afirma que a crise pós-moderna é a crise do sujeito. Seu descentramento e sua fragmentação geram a crise da identidade singular. Para Freire-Costa (2005), na pós-modernidade, as agências representativas de valores seculares − família, religião, política e moral − foram destronadas pela economia, pela ciência e pela cultura do espetáculo. O valor da vida se liquefez nos sentidos reducionistas, provisórios e errantes ditados por elas.

Nesse sentido, as frases relativas a ser gostosa – no primeiro site – são dignas de nota: para parecer gostosa, para ser mais notada, a gostosa sabe quando exibir, ela deve ostentar. Assim, aparentar, ostentar e parecer para o outro remetem à atual cultura pós-moderna. Nessas sugestões, um script de papeis e de posturas deliberadas impedem a naturalidade e a espontaneidade da pessoa, favorecendo uma identidade fake.

Finalizando-se com sua análise linguística, gostosa exemplifica o cruzamento de sensações na mesma palavra. Por um lado, essa palavra remete ao prazer do paladar; por outro, como gíria remete ao prazer visual e sexual associados ao corpo da mulher. Literalmente, a sinestesia é a figura de linguagem relativa ao cruzamento das sensações, na mesma oração.

2- Sofrimento psíquico nas relações humanas

As próximas expressões não são diretamente propaladas pela mídia, mas estão bastante presentes nas falas das pessoas, nas letras de músicas, no teatro, no cinema – importantes holofotes do imaginário cultural.

Ficar arrasado, arrasar o outro, ficar aos pedaços, deixar o outro aos pedaços, despedaçá-lo descrevem grande sofrimento nas relações humanas. Cerne dessas questões, a ideia de destruição – figurada ou real – está presente.

Dentre as manifestações dessas vivências psíquicas na cultura popular, a música Love will tear us apart/O amor vai nos dilacerar (1992) descreve: (...) quando o ressentimento voa alto e vamos mudando nossos caminhos, então, o amor vai nos dilacerar, outra vez. Corazón partío (1997) destaca ter o coração partido. A música Carvão (2006) diz: o amor em seu carvão foi me queimando em brasa no colchão e me partiu em tantas pelo chão. Na carta de despedida de um ídolo pop japonês que se suicidou (2017), encontra-se: ‘Estou quebrado por dentro. A depressão me devorou’.

Quer seja nos dicionários, quer seja na cultura popular, o despedaçamento do eu é expresso nesses casos. Ainda que as letras falem em coração partido, este constitui uma metáfora para o sofrimento psíquico do eu. Portanto, a fragmentação – descrita em quatro culturas – constitui um fenômeno psíquico a ser estudado.

Quanto a isso, Klein (1959) postula que na vida psíquica há a fragmentação do ego e do objeto, bem como sua divisão em seio bom – que gratifica – e seio mau – que frustra. Com o aumento da frustração e da agressividade, há a fragmentação do seio mau – que se torna persecutório. Por meio dessa defesa, ele é dilacerado e reduzido a fragmentos persecutórios, enquanto o seio idealizado permitiria gratificação infinita.

Portanto, a fragmentação psíquica se alia à fragmentação produzida pela cultura pós-moderna. Desse modo, o eu do sujeito vivencia grande sofrimento. Sua defesa é a idealização de alguns modelos valorizados na cultura, sob os crivos de ser gostosa, ser poderosa, ser lacradora, ser mulherão da p.... e ser o cara.

3- Vitória ou derrota em competições e na sedução

Outro aspecto psíquico e social evidenciado pela mídia é a questão da vitória ou da derrota, em competições oficiais – esportivas, empresariais, políticas– e não oficiais – cotidianas. Isso posto, certos termos acerca dos estilos pessoais são utilizados para nomear a pessoa que se destaca das demais, nas competições. Assim, ser o cara pode designar certo treinador ou jogador que classifica seu time, dentre inúmeros outros. Nesse contexto, a frase ‘o mundo é dos espertos’ sinaliza o uso de meios ardilosos ou fraudulentos para vencer uma modalidade esportiva. No caso, esperto remete ao trapaceiro e ao desonesto, que engana ou trai a confiança de outras pessoas.

No plano das competições, a temática do sucesso e do fracasso está envolvida. Sendo assim, o verbo arrasar – referido a ser um sucesso e obter êxito numa atividade, agir com glamour e agir com classe – é deveras utilizado na mídia e no cotidiano. Todavia, arrasar também significa causar grande estrago; danificar muito; agir destrutivamente, com palavras ou atos. E, ainda, significa se dar bem, causar inveja. Igualmente, arrebentar tem sido utilizado, dessa maneira.

No âmbito sexual da sedução, caçar e ser caçado são descritos em dois sites.

O primeiro se dirige aos homens alfa e a grafia de letras maiúsculas e minúsculas provém do autor. Em suas palavras, na sedução, dentro da normalidade, os homens devem tomar a iniciativa (Caçadores) e as mulheres se defenderem (presas). Tomar a iniciativa na sedução é instinto do homem e se defender e escolher os melhores faz parte da natureza da mulher. O Homem Alpha sempre tem atitude para estar na ofensiva, segue seu instinto de caçador e não pensa antes de partir para o ataque: tem potencial para o sucesso. O homem beta fica na defensiva, sente medo de seguir seu instinto, pensa e espera que as coisas aconteçam, tendo pouco valor para as mulheres.

O segundo site se dirige às mulheres e sua autora assim inicia: se você quer um homem excitado, transforme-o em um caçador. Para os homens, o que importa é enfrentar o dragão, escalar a torre do castelo e salvar a princesa encantada. Homem adora brincar de gato e rato com você. Ele deseja dominá-la, porém seu instinto anseia que você não deixe. Homens ficam de quatro pela mulher, que passa a energia de que pode ir embora, se algo não a agradar. Eles amam isso, realizam-se com a mulher com essa força. Todos os homens dirão que preferem a ‘mulher submissa’. Porém, eles se casam com as manipuladoras, com consciência do próprio valor: aí, baixam sua guarda. Em diferentes trechos, encontra-se: a manipuladora puxa a espada, apenas se afasta, apenas observa, deixa que ele seja homem. A boazinha causa segurança total, controle total, dominação total: desprazeroso para ele. Ela corre atrás dele, se deixa pisar.

Pensando-se a antítese caçar e ser caçado, os dois sites expõem raciocínios dicotômicos – homem alfa-homem beta; mulher manipuladora-mulher boazinha – com foco biológico-instintivo reducionista – ataque-defesa. Em ambos, há generalizações: o homem beta tem pouco valor (..), todos os homens dirão (...). Por conseguinte, não consideram os aspectos psíquicos e sócio-culturais da atração homem-mulher. Nessa medida, a singularidade do desejo humano – em seu sentido amplo – não é considerada.

Especificamente, o segundo site envereda por metáforas românticas dos contos de fada e analogias ligadas às estórias infantis – brincar de gato e rato, castelo, princesa encantada. As contradições nos raciocínios – a manipuladora puxa a espada versus apenas observa; homens baixam a guarda (...) – se misturam às ideias de domínio de um sexo sobre outro – homens ficam de quatro (...); a boazinha causa dominação (...). Logo, surgem algumas questões: a consciência de seu valor como mulher implica ser manipuladora quanto ao homem? A aproximação de uma mulher atraente e desejada – por parte do homem – é similar a um ataque de natureza predatória-agressiva? A atração amorosa e sexual entre os sexos – como sedução – compreende competição e domínio? Novamente, a sexualidade e a agressividade se entranham nos desvãos psíquicos de homens e mulheres.

Essas expressões refletem questões humanas fundamentais, que há muito se impõem. A classificação de pessoas em superiores e inferiores inspira essas ideias ligadas a exercer poder ou dominar o outro e, inclusive, ter destaque sobre os demais.

As relações de poder revelam-se em situações humanas cotidianas com suas graduações de valor: ser o primeiro-ser o segundo-ser o último, em uma atividade de prestígio na cultura; ser criador-ser imitador; ter ideias originais-ter ideias comuns; ser lindo-ser bonito-ser feio; ser milionário-ser rico-ser pobre; mandar-obedecer; ensinar-aprender; educar-ser educado, etc. Os primeiros membros dos referidos binômios e trinômios são mais relevantes que os demais quanto ao lócus de poder na nossa cultura. Essas formas de poder – com suas graduações de valor – imbricam-se aos valores da cultura pós-moderna (ALMEIDA, 2016).

Ao se refletir acerca dos processos psicológicos subjacentes às competições e à sedução, evidencia-se o triunfo maníaco. Para Klein (1959), o triunfo sobre os objetos internos – controlados e torturados – é parte do aspecto destrutivo da posição maníaca.

Cotejando as expressões brasileiras, inglesas, francesas e espanholas

Feitas essas articulações, as expressões linguísticas brasileiras – vigentes na mídia e no cotidiano – constituem produções da cultura pós-moderna, ao passo que boa parte das expressões estrangeiras é oriunda de épocas anteriores à década de 1980. Nessa medida, ilustram certos invariantes psicanalíticos: impulsos, defesas e processos psíquicos inconscientes. Nesse crivo, Bleichmar (2009) pontua que a psicanálise atual precisa identificar e diferenciar os núcleos de verdade ‒ que remetem aos aspectos invariáveis da psique e que se conservam heurísticos apesar da passagem do tempo ‒ dos modos de subjetividade ‒ que tem mudado ao longo do tempo.

Sob esse vértice, examinam-se essas expressões, bem como seus correlatos em outros idiomas. Para fazê-lo, recorre-se a livros policiais de extração popular – tal como as expressões populares anteriormente selecionadas. As três categorias de análise são retomadas, a seguir.

1- Estilos pessoais

Dentre eles, ser gostosa, poderosa, lacradora e um mulherão da p.... constituem expressões pós-modernas relativas ao poder sexual da mulher sobre o homem. Típicas da ênfase contemporânea no poder feminino, não são encontradas de forma tão explícita em outros momentos histórico-culturais. De forma mais velada, o poder sexual da mulher é revelado – em vários livros – por certas expressões de outras épocas e culturas. Elas evidenciam as manifestações do desejo sexual masculino quanto à mulher.

Num livro policial de 1934, encontra-se: a ravishing woman (p.115) with curves precisely in the right places (p.98), ou seja, uma mulher arrebatadora, com curvas precisamente nos lugares certos. Enquanto o adjetivo ravishing significa encantadora, deslumbrante, o verbo ravish remete a arrebatar, estuprar, violentar. No mesmo livro, lê-se: the call of flesh, she was an alluring old trick (p.60). Significa: o chamado da carne, ela era uma antiga farsante sedutora. Se alluring significa sedutora, atraente e fascinante, termos como floozie e whore – prostituta – são usados para essa mulher casada, que trai o marido com vários homens. Note-se que prostituta se refere à mulher que faz sexo por dinheiro – fato não referido no livro.

Em um livro policial de 1939, depara-se com a expressão devour her with his eyes num contexto em que o homem se encontra crazy for her (p. 156). Esta expressão corresponde a ser louco por ela, a fou d’elle e a loco por ella. Então, devorá-la com seus olhos; dévore elle des yeux; devorar la con los ojos significam sentir grande desejo, atração ou fascínio por uma pessoa. Sob o enfoque psicanalítico, essas expressões retratam o deslocamento da sexualidade genital para a sexualidade oral (Freud, 1905). Noutro livro policial de 1963, swallow her whole – engolí-la inteira – se refere à intensidade do impulso sexual masculino dirigido à mulher (p. 111). Também, remete à sexualidade genital com primitivo cunho oral.

Num livro policial de 1965, aparece o termo bang a woman – comer uma mulher (p. 132). Igualmente, sauter la femme e coger la mujer referem-se pejorativamente à relação sexual. Em se examinando outras traduções desses verbos, bang remete a pancada, bofetada, bater, transar; sauter refere-se a agarrar, estourar, explodir; coger conota apertar, comer, f... Portanto, tais traduções implicam as ideias de energia, ação e agressividade – na sexualidade masculina.

Ainda sob o prisma linguístico, a tradução desses verbos aponta para elementos opostos que se excluem logicamente, mas que se juntam no mesmo referente – transar e ter prazer com a mulher versus desvalorizá-la, de modo agressivo/destrutivo. Para o approach psicanalítico, o uso desses verbos denota que os impulsos sexuais e agressivos desse homem estão separados e que sua destrutividade prepondera sobre o amor.

Nesse mesmo livro de 1965, stir a man’s blood conota ferver o sangue de um homem, assim como faire bouillir la sang d’un homme e hervir la sangre del hombre (p.44). Primariamente, significa atiçar os impulsos sexuais do homem e, secundariamente, seus impulsos agressivos. Assim, a relação entre sexualidade masculina e agressividade se revela novamente.

Sendo assim, ressalta-se o fenômeno psíquico e cultural do homem denegrir a mulher bastante atraente para ele, mas que se revela disponível para outros homens. Em tal circunstância, a força do impulso sexual masculino dá lugar ao seu impulso agressivo. Nessa esteira, termos como p.., vagabunda e vadia proliferam na mídia e nas relações cotidianas – sem que esteja presente a variável dinheiro envolvendo sexo.

Ainda nessa clave que desvaloriza as mulheres, o duplo padrão de moral permeia diferentes culturas. Oriunda dos tempos vitorianos, make an honest woman out of someone remete a tornar uma mulher honrada e virtuosa. Contudo, não se encontra uma expressão correspondente ao homem – a não ser num sentido jocoso. Ainda em inglês, slut significa vadia e piranha, enquanto stud significa garanhão e gostosão – ambos referidos a ter muitos parceiros sexuais. Além disso, a mera mudança do gênero masculino para o feminino pode implicar uma mudança semântico-moralista apreciável. É o caso de vadio/vagabundo – tramper; fainéant; vagabundo – e de vadia/vagabunda – slut, bitch; salope, pute; puta, perra. Em quaisquer das quatro culturas, vadio designa o homem que não quer trabalhar e que vaga sem rumo, ao passo que vadia designa a prostituta. Inclusive, há uma relação linguística entre sexualidade e animalidade nos quatro idiomas: bitch; salope e perra como cadela e prostituta (Reverso, 2017).

No tocante a isso, Aebischer e Forel (1991) situam as falas masculina e feminina, no campo das questões relativas à linguagem e ao sexo. A língua é uma instituição dos homens, da qual as mulheres são mais ou menos excluídas. Assim, a linguagem dos homens tende a ser vista como normal e a das mulheres, como desvio ou defeito. Logo, a linguagem é instrumento cultural de representações e comportamentos.

Complementando essas ideias, Klein (1959) afirma que os primeiros impulsos, angústias e defesas infantis se dirigem ao corpo da mãe e à sua capacidade de gerar bebês. Assim, o corpo feminino é o depositário dos mais primitivos impulsos: nele, são projetados os ataques sádicos e destruidores do bebê. Desse modo, pode surgir a inveja masculina quanto à capacidade da mulher de gerar a vida, a partir de sua relação com a figura materna.

Ainda em relação aos estilos pessoais, a expressão atual ser o cara se equipara ao homem ter it num livro policial de 1935 (p.14). Nesse caso, it remete ao charme e ao magnetismo pessoal do homem – que fascina e atrai as mulheres. Ser o cara e ter it equivalem a you are the one – num livro policial de 1963 (p.38) – e a he is the man – expressão atual. Em contrapartida, numa música inglesa de 1988, a expressão you are the one é dirigida a uma mulher. A música descreve: você é a única que me enganou; te conquistar é tão difícil, você é a única! Sendo assim, o significado de ‘você é única’ é paradoxal: uma mulher especial, mas que engana o homem.

E, mais, a expressão mostrar atitude corresponde a show attitude, significando ter tal auto-confiança, que se supera o medo do fracasso. Ela pode ser usada em disputas envolvendo destaque, prestígio e dinheiro. Pessoas do mundo da moda também a usam, no sentido de desfilar bem e se impor na passarela. Nessa linha semântica, ter fibra equivale a to be strong, avoir caractère e tener fibra.

2- Sofrimento nas relações humanas

Dentre as metáforas populares que concernem à fragmentação psíquica, deixar o outro aos pedaços, despedaçá-lo e destruí-lo correspondem a tear you apart; mettrer en pièces; hacer pedazos, destrozar. E, ainda, coração partido e coração despedaçado equivalem a broken heart; coeur brisé e a corazón despedazado. Ademais, go to pieces significa ficar em pedaços, tomber en miettes equivale a cair aos pedaços e despedazar remete a deixar uma pessoa aos pedaços.

3- Vitória e derrota em competições

Nesse quesito, ‘o mundo é dos espertos’ não tem equivalentes idiomáticos nas culturas pesquisadas. Quando muito, essa frase pode ser traduzida como: the world belongs to hustlers, sendo que hustler abarca sentidos pejorativos – vigarista, trapaceiro. Todavia, to hustle também significa se esforçar, correr atrás, dedicar-se. Já arrasar e arrebentar – no sentido de vencer, de realizar muito bem uma atividade – pode ser traduzido como to nail it, to kill it e to slay it. Enquanto nail significa pregar, apreender e passar (em exame), kill e slay tem o significado de matar.

Caçar e ser caçado – no âmbito sexual típico da cultura brasileira – não parece ter equivalentes nas outras culturas estudadas.

Considerações finais

Tendo-se partido de uma série de expressões linguísticas brasileiras contemporâneas, fez-se uma leitura psicanalítica delas aliada à sua leitura antropológica. A seguir, fez-se sua comparação com expressões linguísticas inglesas, espanholas e francesas. Ao cotejá-las, evidenciaram-se certos conteúdos inconscientes, que ultrapassam as épocas e as culturas. Nessa medida, tais expressões retratam produções do inconsciente em constante diálogo com a cultura. Essas construções simbólico-culturais emergem do imaginário cultural e seus conteúdos se impõem para além e aquém da cultura pós-moderna.

Desse modo, certos invariantes psicanalíticos – impulsos sexuais e agressivos; defesas como divisão do eu, idealização e perseguição do objeto; processos como formação de paradoxos e identificação com modelos parentais e culturais – fizeram-se presentes. O parentesco semântico entre expressões – de quatro culturas diferentes e emblemáticas de décadas diversas – ilustra o caráter imperioso desses invariantes psicanalíticos, desde sempre presentes na psique e no imaginário cultural.

Referências

Aebischer, V. e Forel, C. (orgs.) (1991). Falas Masculinas, falas femininas. Sexo e Linguagem. São Paulo: Brasiliense.

Almeida, M. E. S. (2003). A clínica do absoluto: representações sobre-investidas por ódio e horror. Tese de doutorado. São Paulo: PUC.

Almeida, M. E. S. (2016). Relações de poder na cultura pós-moderna. Mudanças. Psicologia da Saúde, 24 (1.

Bleichmar, S. (2009). Sostener los paradigmas desprendiéndose del lastre. Revista internacional de psicoanálisis. 14 (6).

Cinco dicas de como ser uma pessoa lacradora.

Disponível em: https://aminoapps.com/page/-dicas-de-como-ser-uma-pessoa-lacradora.

Chaves, E. L. Violência, agressividade e dominação: reflexão psicanalítica sobre a masculinidade. Tese de Doutorado em Teoria Psicanalítica. Rio de Janeiro:UFRJ, 2008.

Coisas da Visk: para os homens, o que é ser gostosa?

Disponível em: https://coisasdavisk.blogspot.com/2014/01/o-que-e-ser-gostosa.html

Como ser gostosa.

Disponível em: https://pt.wikihow.com/ser gostosa.

Como ser uma mulher poderosa: saiba tirar força dentro de você.

Disponível em: https://www.mulheresbemresolvidas.com.br/como-ser-poderosa.

Como ser uma mulher poderosa- cérebro masculino.

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Sobre pessoas gostosas. Entre cartas e amores. Disponível em: https://www.entrecartaseamores.com/sobre-pessoasgostosas.html.

Você é um homem caçador ou uma presa? – Homem Alpha

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Ter fibra ou não ter fibra, eis a questão. Exame.

Disponível em: https://exame.abril.com.br/carreira/uma-questao-de-fibra.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 12/03/2021
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