JEAN-JACQUES ROUSSEAU, O PAI DAS REVOLUÇÃOES PROGRESSISTAS
 
     Karl Marx não foi o único a prescrever uma receita para uma sociedade justa. Antes dele, Jean-Jacques Rousseau também o fez, e as consequências de seu discurso não tiveram consequências melhores, parece mesmo ser uma sina de quem se apresenta diante da humanidade propondo uma fórmula para acabar com as desigualdades e criar uma sociedade mais justa acabar por realizar exatamente o inverso. Todas, absolutamente todas as tentativas de, através do poder central, moldar a sociedade em nome da justiça acabaram em tragédias, morticínios, genocídios e democídios.
     Rousseau fundava sua sociedade “justa” na aderência dos cidadãos ao “contrato social”; até aí tudo bem, o problema aparece nas sugestões de tratamento que ele oferece para aqueles que se mostrarem um tanto quanto indispostos em abraçar o Estado e suas causas acima de todas as coisas. Não que tais sugestões sejam para aqueles que, porventura, venham a combater o contrato social ou se mostrem resistentes em aderir a ele. Não, Rousseau aponta de antemão aqueles que não têm muita inclinação em abraçar a causa social, aqueles que por sua cultura e forma de pensar serão verdadeiros estorvos para a construção da grande nação justa e igualitária e devem desde já ser tratados como inimigos de Estado. Não é mesmo uma coincidência que mais tarde Karl Marx vá fazer o mesmo e dividir as pessoas em grupos, apontando uma classe como sendo a vilã que deve ser violentamente detida?
     Rousseau é o terceiro dos filósofos contratualistas. O primeiro, Thomas Hobbes, dizia que o homem é o lobo do próprio homem e em seu estado de natureza sempre se inclina para a crueldade e a violência. O segundo, John Locke, discordou de Hobbes. Dizia Locke que o homem em seu estado de natureza tem um profundo senso de igualdade e é regulado por um direito natural que o torna solícito à vida em sociedade. Quando Rousseau entra em cena como o terceiro contratualista, a ideia que vem com ele é a de que o homem em seu estado de natureza é bom, ou até mesmo amoral, sendo que é a sociedade que posteriormente o corrompe. Em verdade, o que é dito por Rousseau acerca do homem em estado de natureza é que ele não é atingido por nenhuma forma de censura e nunca lhe é apresentada nenhuma regra de conduta moral, não sendo, dessa forma, nem moral nem imoral, mas amoral. Estaria o filósofo afirmando que não existe direito natural? Estaria ele afirmando que não existe uma moral inata ao ser humano? Ou estaria ele dizendo que a moral é uma construção social? Vejamos o que Ortega Y Gasset diz a respeito da existência dessa suposta “amoralidade” humana:
 
     “Não é possível se livrar da moral sem mais nem menos. O que se chama com a palavra, carente até de gramática, amoralidade é uma coisa que não existe. Se você não quer se submeter a nenhuma norma, você tem, velis nolis [queira ou não], que se submeter à norma de negar toda moral; e isso não é amoral, só imoral. É uma moral negativa, que conserva a forma da outra, só que oca.”[1]
 
     Rousseau pouco estava se importando com os termos e os conceitos em si mesmos, a intenção dele era bem outra, e fica muito mais nítida quando damos alguns passos atrás para observar seu trabalho em sua maior amplitude e extensão. O pregador da devassidão e da promiscuidade estava dando corpo à doutrina de que a moral é uma construção social e ao mesmo tempo estava apontando a igreja como uma inimiga da Revolução. Estava pronto o coquetel molotov que seria incendiado em breve, estava acontecendo uma revolução cultural antes da política, estava sendo subvertida a moral, os valores cristãos e o direito natural. Rousseau sabia bem o que estava fazendo, a semente que estava a plantar ainda dá frutos nos dias de hoje; vem dele o discurso progressista atual que coloca aspectos concretos da sexualidade humana como sendo mal intencionadas construções sociais, como sendo não mais do que ignóbeis artificialidades. Também vem dele o discurso que vê a moralidade como um repulsivo chorume vomitado pela boca de intolerantes e fanáticos religiosos.
     Mas o teorizador da Revolução não para por aí. Em sua concepção de homem em estado de natureza, ele vê nas relações em torno da propriedade privada a origem de todos os males e da corrupção do homem. Parece que foi nessa fonte que Karl Marx veio a beber mais tarde. De fato, há muitas semelhanças entre a Revolução Francesa e a Revolução Comunista, além de ambas concordarem que o combate deve se dar primeiro no campo das ideias, elas também veem na propriedade privada um mal a ser combatido. Mais ainda, assim como os revolucionários franceses espalharam a violência e a morte sob o pretexto de ser uma etapa necessariamente antecedente à instauração da sociedade igualitária, assim também os comunistas pregavam que a ditadura do proletariado era uma etapa anterior à sociedade sem classes. Mas a semelhança mais pujante entre ambas está no cheiro, especificamente no odor, há uma montanha de corpos putrefatos decorando o vergonhoso túmulo onde essas revoluções estão fracassadamente sepultadas, algo impensável até mesmo para as mais bárbaras tribos da antiguidade.
     É sabido que Rousseau era conhecedor dos escritos e da autoridade de Cícero, tanto que ele cita o romano para discordar dele com relação ao voto secreto em sua principal obra, Do Contrato Social: “Sei que Cícero censura essas mudanças em parte lhe atribui a ruína da república. Mas, embora eu sinta o peso que deve ter aqui a autoridade de Cícero, não posso concordar com sua opinião”.[2] E talvez tenha sido de Cícero que o contratualista suíço tenha tirado a ideia de fixar a atenção nas relações da propriedade privada para dali extrair as premissas de sua filosofia contratualista. Em Cícero, se lê:
 
     “Por natureza, nada é do domínio privado, mas assim algo se torna por ocupação, desde eras remotas, como ocorre com quem se estabelece em área desocupada ou então mediante a conquista bélica ou adquire por lei, convenção, partilha e até mesmo por sorte.”[3]
 
     Mas é chegada a hora de desmascarar Rousseau e seu contrato social, sua luta pela igualdade social e por uma sociedade mais justa. Tudo não passava de uma violência elegante, de um eufemismo para promover a morte. Aliás, as discussões públicas atuais são todas elas encobertas com uma roupagem de fingimento e falta de sinceridade que se expressam com eufemismos. Concessões feitas a situações em que preservar o ouvinte é uma gentileza irrecorrível, o eufemismo é, em si mesmo, uma palavra eufemística para o fingimento descarado dos opinantes. Entre eufemismos e disfemismos, sempre preferi estes àqueles. A esmagadora maioria dos discursos não são o que Ortega Y Gasset tinha por “ideias mortais”, ninguém morreria para defendê-los e tampouco sustentaria verdadeiramente a própria vida neles, pelo contrário, os discursos são mascarados com fingimento eufemístico justamente para proteger a vida de seus donos, para resguardar seus papéis sociais e eliminar de pronto qualquer retaliação. Se se levar em conta que a própria filosofia foi pervertida em uma legitimadora do famigerado “espírito crítico”, que habilita quem quer que seja a criticar e opinar sobre todo e qualquer assunto, o cenário de devastação se alarga até que o percamos de vista:
 
     “Hoje, ao contrário ,o homem médio tem as ‘ideias’ mais taxativas sobre tudo o que acontece e deve acontecer no universo. Por isso perdeu a audição. Para que ouvir, se já tem tudo dentro de si? Já não é tempo de escutar, mas, ao contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir. Não há questão de vida pública na qual não intervenha, cego e surdo como é, impondo suas ‘opiniões’.
     As ‘ideias’ desse homem médio não são autenticamente ideias, nem sua posse é cultura. A ideia é um xeque na verdade. Quem quiser ter ideias precisa antes se dispor a querer a verdade e aceitar as regras do jogo que ela impõe. Não vale falar de ideias ou opiniões sem admitir uma instância que as regula, uma série de normas às quais se pode apelar na discussão. Essas normas são o princípio da cultura.”[4]
 
     Qualquer um que ouse quebrar essa normalidade e fazer um chamamento à verdade e à sinceridade, denunciando a ditadura das opiniões e do fingimento deliberado, é convidado a beber um cálice de cicuta e afastar-se do convívio social. Os mártires se acumulam pelos séculos, e ainda hoje uma vida pode ser destruída se tiver a audácia de levantar a voz contra as opiniões dominantes. Foi por falar expressamente a verdade e combater a hipocrisia que a cabeça de João Batista foi servida em uma bandeja. Foi precisamente para defender o que é justo e verdadeiro daquilo que é falso e fingido que Sócrates deu a própria vida:
 
     “Talvez alguém diga: ‘Não tens vergonha, Sócrates, de teres seguido uma linha de estudo que colocou tua vida em risco?’ Para quem me perguntasse isso, eu responderia de bom grado: ‘Poderias formular melhor suas palavras, meu amigo, se pensas que um homem que tenha o mínimo de valor deveria levar em conta o risco de vida ou morte em vez de considerar quando age, se o faz de forma justa ou injusta, se é um homem bom ou mau’. De acordo com seu pensamento, todos os semideuses que morreram em Troia seriam personagens maus, assim como os outros, o filho de Tétis, que ignorou o perigo em comparação a se submeter à desgraça quando sua mãe — que era uma deusa — disse a ele, em sua ânsia para matar Heitor, algo desse tipo, como penso: ‘Meu filho, se vingar a morte de seu amigo Pátroclo e assassinar Heitor, você mesmo morrerá porque’, disse ela, ‘a morte o aguarda logo após levar Heitor’. Mas ele, ao ouvir isso, desprezou a morte e o perigo e temeu muito mais viver como um covarde e não vingar seu amigo, dizendo: ‘que eu morra imediatamente ao aplicar a punição ao culpado e que eu não seja objeto de ridículo, junto com minhas naus, um peso morto para a terra’. Acham que ele se importou com a morte ou o perigo? Essa verdade, atenienses, diz que quem quer que tenha se colocado, por vontade própria ou por uma voz de comando, em posição de risco, parece-me que deveria ali permanecer e encarar o perigo, não se importando com a morte ou qualquer outra comparação com a desgraça.
     Logo, meu querido amigo não é absolutamente com o que dirá de nós a multidão que nos devemos preocupar, mas com o que dirá a autoridade em matéria de justiça e injustiça, a única, a Verdade em si. Assim sendo, para começar, não apontas o bom caminho quando me pedes que nos inquietemos com o pensamento da multidão a respeito do justo, do belo, do bem e de seus contrários. A multidão, no entanto, dirá alguém, é bem capaz de nos matar.”[5]
 
     O famoso Mito da Caverna de Platão é interpretado pelos comuns pelo prisma exclusivamente epistemológico, onde o mundo exterior corresponde ao mundo das ideias platônicas e as imagens percebidas no interior da caverna equivalem ao mundo material, o qual não é senão um conjunto de arquétipos imperfeitos e deformados do ideal. Até que surgiu Giovanni Reale com seu livro Para Uma Nova Interpretação de Platão e lançou um olhar não só original, mas precipuamente coerente sobre toda a obra de Platão. No que se refere ao Mito da Caverna, assim escreveu o filósofo italiano ao se referir ao prisioneiro que retorna ao interior da caverna depois de ter contemplado a luz exterior:
 
     “O que poderá, entretanto, acontecer a quem desce de novo à caverna? Passando da luz para a escuridão, ele não conseguirá enxergar enquanto não se habituar novamente à falta de luz; terá dificuldades em se readaptar aos costumes dos antigos companheiros, se arriscará a não ser por eles entendido e, tomado por louco, correrá até mesmo o risco de ser assassinado, como aconteceu com Sócrates e como poderá acontecer a todo aquele que testemunhe em dimensão socrática.”[6]
 
     Antes da eclosão da sanguinária Revolução Francesa e de a guilhotina arrancar milhares de cabeças, Rousseau já justificava a pena de morte e reivindicava a propriedade da vida dos cidadãos para o Estado com sua retórica:
 
     “O tratado social tem por objetivo a conservação dos contratantes. Quem quer o fim quer também os meios, e esse meios são inseparáveis de alguns riscos, inclusive de algumas perdas. Quem quer proteger a vida à custa de outras pessoas deve também dá-la por eles quando for necessário. Ora, o cidadão não é juiz do perigo ao qual a lei o expõe, e quando o príncipe lhe diz ‘Ao Estado, é útil que morras’, ele deve morrer, pois não foi senão segundo essa condição que viveu em segurança até esse momento, e sua vida não é mais uma mercê da natureza, mas um dom condicional do Estado.
     A pena de morte imposta aos criminosos pode ser de certa forma encarada sob esse ponto de vista; para não ser vítima de um assassino é que se consente em morrer, sendo o caso. Nesse tratado, longe de se dispor da própria vida, pensa-se em garanti-la, e não se deve presumir premeditadamente que um contratante vai se enforcar.
     De resto, todo malfeitor, ao atacar o direito social, torna-se por seus delitos, rebelde e traidor da pátria, cessa de ser um de seus membros ao violar suas leis e chega mesmo ao ponto de lhe declarar guerra. A conservação do Estado passa a ser, então, incompatível com a sua; faz-se necessário que um dos dois pereça ...”[7]
 
     O alvo de Rousseau era Claro, um círculo vermelho foi pintado sobre a caixa torácica da Igreja Católica. Sabendo que o homem é, aristotelicamente falando, um “animal religioso”, ele tratou de um substitutivo para a lacuna que seria deixada após a perseguição repressiva à inimiga da sociedade. Um território pode ser varrido por bombas, os sobreviventes do bombardeio podem ser riscados da existência por um pelotão de extermínio, mas um território só pode ser considerado efetivamente conquistado quando a infantaria marcha sobre seu chão e o ocupa. A usurpação deliberada aparece explícita nos escritos de Rousseau quando ele reivindica e evoca a santidade para o seu contrato social, quando ele prega a instauração de uma religião civil do Estado e chama de intolerantes os cultos excluídos da religião estatal. Edmund Burke já falava sobre isso em seus escritos, ele sabia que o espaço vazio deixado no corpo depois que a cabeça da Igreja fosse arrancada seria suplantado por uma outra cabeça, costurada ao pescoço com linha de pescar e anzol, trazendo à vida um verdadeiro monstro:
 
     “Nós sabemos, e é nosso orgulho saber, que o homem é por constituição um animal religioso; que o ateísmo não é só contrário a nossa razão, mas a nossos instintos; e que não pode prevalecer por muito tempo. Mas, se num momento de motim e num delírio embriagado do espírito ardente extraído do alambique do inferno, que ferve tão furiosamente na França agora, devêssemos descobrir nossa nudez jogando fora e religião cristã, que até agora tem sido o nosso orgulho e conforto, e uma grande fonte de civilização entre nós e entre muitas nações, tememos (estando perfeitamente conscientes de que a mente não irá suportar um vácuo) que alguma superstição grosseira, perniciosa e degradante possa tomar seu lugar.”[8]
 
      Com a explosão da Revolução, a Igreja Revolucionária foi de fato instituída na França e o grito que saía da boca dos revolucionários enquanto se dirigiam aos mosteiros para matar padres e estuprar freiras era “Abaixo à infame!”, em alusão à Igreja Católica. O lema jacobino era “o homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”. Mais ainda, Rousseau registrou que “os verdadeiros cristãos são feitos para escravos” e deixou bem claro que era punível de morte o dissidente da Igreja Revolucionária. Vamos recorrer à fonte primária e conceder a palavra ao próprio Rousseau:
 
     “Há um terceiro tipo de religião, mais bizarro, que, dando aos homens legislações, dois chefes, duas pátrias, os submetem a deveres contraditórios e os impede de ser a um só tempo devotos e cidadãos. Assim é a religião dos lamas, a dos japonese, e a do cristianismo romano. Esta última pode chamada a religião dos padres. Dela resulta uma espécie de direito misto e insociável inominado.
     A considerar politicamente as três espécies de religiões, verifica-se que todas têm seus defeitos. A terceira é tão evidentemente má que constitui uma perda de tempo ocupar-se de demonstrar isso. Tudo que rompe a unidade social nada vale; todas as instituições que põem o homem em contradição consigo mesmo não servem para coisa alguma.
     Resta, pois, a religião do homem, ou o cristianismo, não o de hoje, mas o dos Evangelhos, que é de todo diferente. Por essa religião sagrada, sublime, verdadeira, os homens, filhos do mesmo Deus, se reconhecem todos como irmãos, e a sociedade que os une não se dissolve, nem na morte.
     Mas essa religião, não tendo nenhuma relação particular com o corpo politico, deixa entregue às leis a única força que de si mesmas tiram, sem lhes acrescentar nenhuma outra; e, devido a isso, um dos grandes laços da sociedade particular fica sem efeito. Ainda mais, ao invés de unir os corações dos cidadãos ao Estado, ela os afasta, como, aliás, de todas as coisas terrenas. De minha parte, nada conheço mais contrário ao espírito social.
     Engano-me, porém, quando me refiro a uma república cristã: ambos os termos se excluem. O cristianismo prega unicamente servidão e dependência. Seu espírito é bastante favorável à tirania, para que esta não se sirva com frequência dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para escravos; e eles o sabem, e em hipótese nenhuma se amotinam; esta breve vida tem muito pouco preço aos seus olhos.”[9]
 
     É também de Rousseau que vem a tradição de acusar de intolerante quem não se curva ao progressismo. A única religião aceitável seria a canonizada pela santidade do contrato social, aos opositores intolerantes a pena deveria ser de morte:
 
     “Então, há uma profissão de fé puramente civil que compete ao soberano fixar os artigos, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade, sem os quais é impossível ser um bom cidadão ou súdito fiel. Conquanto não possa obrigar ninguém a crer, ele pode banir do Estado quem neles não acreditar; pode bani-lo, não como ímpio, mas como insociável, como incapaz de amar sinceramente as leis, a justiça, e de imolar à necessidade a vida e o dever. E se alguém, depois de haver reconhecido publicamente esses mesmos dogmas, conduz a si mesmo como se não os aceitasse, o soberano pode ordenar que ele seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes: mentiu perante as leis.
     Os dogmas da religião civil devem ser simples, em pequeno número, enunciados com precisão, sem explicações nem comentários. A existência da divindade poderosa, inteligente, previdente e providente, a vida futura, a felicidade dos justos, o castigo dos perversos, a santidade do contrato social e das leis: eis os dogmas positivos. Quanto aos dogmas negativos, reduzo-os a um único: é a intolerância, implícita nos cultos que excluímos.
     Em minha opinião, enganam-se os que distinguem a intolerância civil da intolerância teológica. Essas duas intolerâncias são inseparáveis. É impossível viver em paz com gente que não se crê religiosa; amá-la seria odiar a Deus, que a castiga; é absolutamente necessário convertê-la ou puni-la. Onde quer que a intolerância teológica seja admitida, torna-se impossível que não haja algum efeito civil; e tão logo este apareça, o soberano deixa de ser soberano, mesmo em relação ao poder temporal a partir de então, os sacerdotes passam a ser os verdadeiros senhores, e os reis, apenas seus oficiais.”[10]
 
     Cícero havia escrito em uma nota de rodapé que o desprezo pelos negócios e coisas terrenas não era uma invenção da Igreja Católica, pois os estoicos já tinham esse hábito muito antes do advento da Igreja. Rousseau sabia disso, ele leu Cícero; ele usou o estoicismo dos cristãos para coloca-los na situação de verdadeiros inimigos do Estado, inimigos da sociedade justa, humanitária e igualitária que ele estava construindo no papel. Assim como a planta de um edifício é bidimensional e o edifício tridimensional, assim também as letras de Rousseau assumem a tridimensionalidade quando os revolucionários começam a eviscerar os padres e comer carne humana pelas calçadas. Como dizia Edmund Burke,
 
     “Quando antigas opiniões e regras de vida são abolidas, mal conseguimos estimar a perda. A partir desse momento, não temos nenhuma bússola para nos governar; nem podemos saber claramente a que porto nos dirigir.”[11]
 
     O historiador Christopher Dawson escreveu um livro intitulado Os Deuses da Revolução, onde expõe as entranhas da Revolução Francesa:
 
     “A Revolução não se satisfazia mais com o catolicismo liberal da Igreja Constitucional e veio a considerar o próprio cristianismo uma força contrarrevolucionária que devia ser destruída para dar lugar à nova religião da humanidade. [...] Fouché havia anunciado, em Nevers, que achava ser a sua missão ‘substituir os cultos supersticiosos aos quais o povo ainda infelizmente adere pela adoração da República e da moralidade natural’, e em Lyon, [...], ele encenou uma elaborada manifestação anticristã na qual um jumento, usando batina e mitra, arrastava um missal e os Evangelhos pelas ruas. A verdade é que, para Robespierre e seus seguidores, não havia contradição entre o Reino do Terror e a religião da humanidade. A guilhotina era um emblema do ideal jacobino tanto quanto a Árvore da Liberdade, e a Deusa da Liberdade era uma deidade ciumenta que não podia ser apaziguada, salvo pelo ritual tradicional de sacrifício humano.”[12]
 
     O discurso dos promotores da justiça social nunca cessou no decorrer da história e ainda hoje está na boca dos opinadores, o que mudou foi a arquitetura, a capacidade de extrapolar qualquer expectativa daqueles que subestimam a capacidade dos justiceiros. O que se vê hoje é muito apropriadamente chamado de engenharia social, onde a realidade é moldada de tal forma que a loucura foi banalizada. O mundo de hoje é um mundo louco, a realidade é adulterada de forma sistêmica e descarada. Giovanni Reale nos apresenta, em um de seus livros, a novela de Buzzati, e com ela ilustra bem o manicômio que os justiceiros sociais fizeram do mundo:
 
     “Para ser mais claros, vamos acompanhar a trama da novela...
     É a história de uma leiga que desceu ao inferno calçada das melhores intenções igualitárias.
     Buzzati conta como um Estado preocupado com a igualda absoluta de seus cidadãos promove desde o alto uma sequência implacável de revoluções.
     A primeira consiste em eliminar as injustiças sociais, ou seja, a milenar distinção entre ricos e pobres. Do ponto de vista técnico, não há nenhum problema: basta ‘liquidar’ os ricos, de forma que um cidadão passa a ser pobre por definição.
     A ironia de Buzzati está orientada para um preciso fim maiêutico: ‘A vergonha das injustiças consiste apenas no sofrimento que elas provocam. Quem tem fome sofre sobretudo por saber que os outros, com seus mesmos direitos, passam a caviar e champanhe. Se todos passam fome e ninguém come o tanto que deseja, o desejo é mais do que suportável. O sofrimento de quem morre é a consciência de que outros continuarão a viver: se todos tivessem de morrer junto com ele, não digo que seria uma festa, mas quase’.
     E, contudo, os cidadãos de Utopia ainda não são felizes. Continua a haver diferenças de dotes físicos, o que é fonte de injustiças mais sutis.
     Eis, portanto, a segunda revolução, bem mais difícil que a primeira, por causa das dificuldades técnicas e psicológicas que comporta. Mesmo assim, graças à ajuda da ciência, todos os obstáculos são superados. Como não é possível transformar os feios em belos, faz-se o contrário, nivelando esteticamente por baixo homens e mulheres.
     Buzzati não esconde os méritos da burocracia e do aparelhamento técnico-científico em toda a operação. ‘Toda a população é examinada pelas comissões apropriadas. Homens e mulheres favorecidos pela natureza são fichados, em seguida obrigados a sofrer um tratamento nem um pouco doloroso, preparado pelo ministro da saúde. Tratava-se de simples injeções, as quais, dependendo do caso, faziam as pessoas engordar de forma rápida e deformante, produziam repelentes manchas cutâneas, amoleciam os músculos, promoviam um crescimento enorme do nariz, deformavam a boca e o peito, aumentavam ou diminuíam os olhos, com base em acuradas gradações. Em poucos anos, não havia no país uma única mulher que pudesse ser chamada bela segundo os critérios clássicos, nem um homem que pudesse sobressair por seu aspecto físico.’
     Mas nem mesmo com essas reformas de estrutura consegue-se apaziguar os ânimos: ‘Ah, quanto faltava para uma igualdade efetiva!’. Que dizer da disparidade de inteligência? Mesmo sendo menos numerosos, os bons cérebros levam a melhor sobre os ‘cabeça de ostra’, ocupando os lugares de comando.
     Consequentemente, uma nova igualdade, ainda mais radical, é adotada, ‘realizando a cretinização artificial das pessoas intelectualmente mais dotadas’.
     Escreve Buzzati: ‘Por mais monstruoso que fosse, o projeto conseguiu se impor, graças a violentas campanhas publicitárias, movimentos públicos e até atentados. E vários cientistas, na esperança de se livrar da ameaçadora purga, se prestaram a fornecer os meios para o redimensionamento coletivo dos cérebros. Inutilmente se evidenciava que , cortadas as asas dos melhores talentos, o país não daria mais nenhum passo na estrada do progresso. Que progresso, Perguntava-se. O progresso científico e técnico, respondia-se. E os reformadores: Os países capitalistas pensarão nele; só teremos de importá-lo’.
     Naturalmente os governantes, presumivelmente homens inteligentes, capazes de compreender que seriam os primeiros a perder com isso, fazem de tudo para frear essa dialética revolucionária, mas como ‘exército, polícia, guarda nacional’ são formados, ao contrário, na grande maioria, por ‘cabeças medíocres quando não por autênticos ignorantes’, ninguém consegue conter a ‘revolta dos burros’.
     Por fim, uma vez que, graças aos brilhantes resultados da atividade científica (‘com tratamentos científicos e químicos apropriados’), se conseguiu transformar até ‘as águias em toupeiras’, é legítimo perguntar-se, com a igualdade, finalmente se alcançou a felicidade.
     ‘Contudo isso não aconteceu. Entre um homem e outro, entre uma mulher e outra, continuavam a existir insuspeitadas diferenças. Com o mesmo dinheiro, beleza e capacidade mental, continuava a haver, porém, homens bons e homens maus. Desaparecera aquele tipo de bondade, que poderíamos denominar intelectual em sentido próprio, à qual leva infalivelmente a inteligência superior. Mas ainda existe, espalhada aqui e ali na multidão, aquele outro tipo de bondade, congênita e inconsciente, que às vezes brilha no olhar de pessoas extremamente simples, como alguns montanheses, camponeses, alguns mendigos, algumas freiras.
     Agora se sabe muito bem como a virtude, que é consequência direta da bondade, desperta aborrecimento e intolerância, a ponto de quem a possui ter de praticá-la às escondidas, para não escandalizar ninguém. [...] E eis finalmente a derradeira inveja social, que nenhuma lei podia eliminar. A ciência indicara a forma de abolir as riquezas, a beleza, a inteligência, mas era impotente diante da bondade. Isso tornara ainda mais dolorosa e mortificante a condição dos malvados, que não podiam esperar que os bons ficassem reduzidos a seu mesmo nível moral. Inútil fazer passeatas e protestos e gestos de violência, inútil esperar uma intervenção do governo. Quanto mais os bons fossem perseguidos e reprimidos, tanto mais luz irradiaria de sua alma pura’.”[13]
 

[1] ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Tradução de Felipe Denardi. Campinas: Vide Editorial, 2016. Pág. 273.
 
[2] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Ricardo Marcelino Paolo Rodrigues. São Paulo: Hunter Books, 2014. Pág. 143.
 
[3] CÍCERO. Os Deveres. Tomo I. Tradução de Luiz Feracine. São Paulo: Editora Escala, 2008 Pág. 47.
 
[4] ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Tradução de Felipe Denardi. Campinas: Vide Editorial, 2016. Pág. 144.
 
[5] PLATÃO. Apologia de Sócrates e Críton. Tradução de Alexandre Romero. São Paulo: Hunter Books, 2013. Pág. 40, 73.
 
[6] REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia Vol. 1: Filosofia Pagã Antiga. Tradução de Ivo Storniolo. Coleção História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 2003. Pág. 164.
 
[7] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Ricardo Marcelino Paolo Rodrigues. São Paulo: Hunter Books, 2014. Pág. 50.
 
[8] BURKE, Edmund. Reflexões Sobre a Revolução na França. Tradução de Marcelo Gonzaga de Oliveira e Giovanna Louise Libralon. Campinas: Vide Editorial, 2017. Pág. 146.
 
[9] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Ricardo Marcelino Paolo Rodrigues. São Paulo: Hunter Books, 2014. Pág. 157, 158, 161.
 
[10] Ibidem. Pág. 162, 163.
 
[11] BURKE, Edmund. Reflexões Sobre a Revolução na França. Tradução de Marcelo Gonzaga de Oliveira e Giovanna Louise Libralon. Campinas: Vide Editorial, 2017. Pág. 128.
 
[12] DAWSON, Christopher. Os Deuses da Revolução. Tradução de André de Leones. 1° Ed. São Paulo: É Realizações, 2018. Pág. 136, 149.
 
[13] REALE, Giovanni. O Saber dos Antigos: Terapia Para os Tempos Atuais. Tradução de Silvana Cobucci Leite. 4° Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. Pág. 137-139.
Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 13/02/2021
Código do texto: T7183586
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.