HERÁCLITO E O PENSAMENTO DIALÉTICO
A percepção da realidade se dá por contrastes. Percebe-se e conceitua-se a pobreza em função da riqueza, percebe-se o calor em função do frio, percebe-se a alegria em função da tristeza. Heráclito foi o primeiro a apresentar esse aspecto dialético da realidade como sendo uma estrutura mesma de tudo o que existe. Segundo ele, “a doença torna doce a saúde, a fome torna doce a saciedade e a fadiga torna doce o repouso”. É do mesmo Heráclito a frase que diz que os homens “não conheceriam sequer o nome da justiça se não existisse a ofensa”.[1]
A percepção por contrastes torna os aspectos estáveis e imutáveis praticamente imperceptíveis. Mais ainda, são os extremos que aguçam e potencializam a percepção um do outro, de tal forma que o termo médio tem a intensidade da percepção minimizada. Em uma escala de zero a dez, um ser que experimenta uma sensação que está em nível zero perceberá o nível dez dessa mesma sensação de forma extremamente intensa, e vice-versa. Já quem está sentindo em nível cinco, sentirá de forma mediana tanto as sensações de nível zero quanto as de nível dez. Quando o termo médio se afasta de sua posição em direção a um dos extremos, mais distante ele ficará do extremo oposto, inelutavelmente. É por isso que a decepção é sempre proporcional à expectativa. Quanto maior o amor doado, maior é o sofrimento que dele advém. Ainda assim, viver e sentir intensamente ainda é a melhor das escolhas, a coragem deve preceder a covardia, sempre. O próprio Deus já deixou o aviso: “Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente! Assim, porque és morno, vomitar-te-ei da minha boca.” (Apocalipse 3: 15, 16). Que não se confunda aqui a “frônese” grega, a prudência a qual Aristóteles tinha como a maior das virtudes. A determinação, a entrega apaixonada, o comprometimento com todas as forças, os sentimentos agudos e intensos, tudo isso não pode se confundir com a negação da prudência, nada disso se trata de imprudência.
Há algumas aplicações práticas para o que Heráclito falava. Por exemplo, um feio deve evitar estar em meio a muitas belezas, do contrário, corre o risco de ter sua fealdade constrangedoramente acentuada. Eu desconheço se acontece de forma premeditada, mas desconfio que não seja pensando em Heráclito que um ope-rador de som, antes de tocar uma música boa, toca antes pelo menos duas ou três músicas ruins; após essa sequência maçante, a música que dantes era apenas boa passa a ser ótima e a animação está garantida. O mesmo acontece na maioria dos filmes; antes de um final arrebatador e de um desfecho emocionante, sempre há um clímax de tensão e quase derrota, há uma parte triste da história, parte essa que acentua os sentimentos de vitória das cenas finais. Na estética, sabe-se que o exagero é desprezado; daí o minimalismo. Faça um bolo com dezenas de morangos a decorá-lo e eles serão ignorados. Faça outro com apenas um morango e inicie uma disputa por ele. Já acontece quando há alguma festa surpresa preparada secretamente para um aniversariante de os envolvidos ignorarem o aniversariante e simularem ter esquecido a data comemorativa; tudo para acentuar o impacto da surpresa. Conheço alguém que antes de pedir uma mulher em casamento passou três dias criando pequenas rusgas e alimentando insegurança na relação para, de repente, colocar-se de joelhos e colocar uma aliança no dedo da pessoa querida, causando um impacto tão avassalador que a mulher ficou completamente desorientada.
As implicações da filosofia de Heráclito são tão abrangentes que, se escritas aqui, dariam a esse artigo páginas extras que extrapolariam em muito o número que foi projetado inicialmente. Para se ter uma ideia, pode-se romper as fronteiras de uma teoria da percepção tratada pelo prisma da luta dos contrários heraclitiana e chegar com ela ao terreno da ontologia. A validade dos contrastes como condição para a percepção alcança as mais elevadas considerações quando aplicadas ao estudo do ser. Aristóteles, uma das mais sagazes mentes que já pisou esta terra, não ignorou o progresso que Heráclito fizera na cultura filosófica quando se dedicou aos problemas referentes aos aspectos estáveis e mutáveis do ser, elaborando uma das mais brilhantes sínteses de toda a história da filosofia, a solução do problema que opunha as filosofias heraclitiana e parmenídica. Admitamos que um ponto é um conceito abstrato perfeito. Quando esse ponto vem à existência na realidade, a única diferença entre ele e os outros pontos é a relação entre eles, ou seja, a partir do momento em que existem dois pontos, as relações entre eles formam contrastes e são esses contrastes que vão não só potencializar suas percepções pelos sujeitos observadores, como também, e principalmente, vão individualizá-los como objetos, e isso, na exta constituição de seus seres. Tomemos agora não um ponto, mas um homem. O homem existe primeiro como essência, como uma possibilidade de existência contida na possibilidade universal. Quando vem a existir, ele se difere dos outros seres também pela relação entre eles, ou seja, o “eu” se define não só pelo que ele é, mas também pelos “não-eus”, por tudo aquilo que ele não é. É o contraste entre os seres que garantirá a possibilidade de individuação. Assim, cada ser é um ponto individualizado pela relação com os outros pontos. Todos os homens são iguais, mas individualizados pela relação e pelo contraste entre eles.
A percepção por contrastes torna os aspectos estáveis e imutáveis praticamente imperceptíveis. Mais ainda, são os extremos que aguçam e potencializam a percepção um do outro, de tal forma que o termo médio tem a intensidade da percepção minimizada. Em uma escala de zero a dez, um ser que experimenta uma sensação que está em nível zero perceberá o nível dez dessa mesma sensação de forma extremamente intensa, e vice-versa. Já quem está sentindo em nível cinco, sentirá de forma mediana tanto as sensações de nível zero quanto as de nível dez. Quando o termo médio se afasta de sua posição em direção a um dos extremos, mais distante ele ficará do extremo oposto, inelutavelmente. É por isso que a decepção é sempre proporcional à expectativa. Quanto maior o amor doado, maior é o sofrimento que dele advém. Ainda assim, viver e sentir intensamente ainda é a melhor das escolhas, a coragem deve preceder a covardia, sempre. O próprio Deus já deixou o aviso: “Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente! Assim, porque és morno, vomitar-te-ei da minha boca.” (Apocalipse 3: 15, 16). Que não se confunda aqui a “frônese” grega, a prudência a qual Aristóteles tinha como a maior das virtudes. A determinação, a entrega apaixonada, o comprometimento com todas as forças, os sentimentos agudos e intensos, tudo isso não pode se confundir com a negação da prudência, nada disso se trata de imprudência.
Há algumas aplicações práticas para o que Heráclito falava. Por exemplo, um feio deve evitar estar em meio a muitas belezas, do contrário, corre o risco de ter sua fealdade constrangedoramente acentuada. Eu desconheço se acontece de forma premeditada, mas desconfio que não seja pensando em Heráclito que um ope-rador de som, antes de tocar uma música boa, toca antes pelo menos duas ou três músicas ruins; após essa sequência maçante, a música que dantes era apenas boa passa a ser ótima e a animação está garantida. O mesmo acontece na maioria dos filmes; antes de um final arrebatador e de um desfecho emocionante, sempre há um clímax de tensão e quase derrota, há uma parte triste da história, parte essa que acentua os sentimentos de vitória das cenas finais. Na estética, sabe-se que o exagero é desprezado; daí o minimalismo. Faça um bolo com dezenas de morangos a decorá-lo e eles serão ignorados. Faça outro com apenas um morango e inicie uma disputa por ele. Já acontece quando há alguma festa surpresa preparada secretamente para um aniversariante de os envolvidos ignorarem o aniversariante e simularem ter esquecido a data comemorativa; tudo para acentuar o impacto da surpresa. Conheço alguém que antes de pedir uma mulher em casamento passou três dias criando pequenas rusgas e alimentando insegurança na relação para, de repente, colocar-se de joelhos e colocar uma aliança no dedo da pessoa querida, causando um impacto tão avassalador que a mulher ficou completamente desorientada.
As implicações da filosofia de Heráclito são tão abrangentes que, se escritas aqui, dariam a esse artigo páginas extras que extrapolariam em muito o número que foi projetado inicialmente. Para se ter uma ideia, pode-se romper as fronteiras de uma teoria da percepção tratada pelo prisma da luta dos contrários heraclitiana e chegar com ela ao terreno da ontologia. A validade dos contrastes como condição para a percepção alcança as mais elevadas considerações quando aplicadas ao estudo do ser. Aristóteles, uma das mais sagazes mentes que já pisou esta terra, não ignorou o progresso que Heráclito fizera na cultura filosófica quando se dedicou aos problemas referentes aos aspectos estáveis e mutáveis do ser, elaborando uma das mais brilhantes sínteses de toda a história da filosofia, a solução do problema que opunha as filosofias heraclitiana e parmenídica. Admitamos que um ponto é um conceito abstrato perfeito. Quando esse ponto vem à existência na realidade, a única diferença entre ele e os outros pontos é a relação entre eles, ou seja, a partir do momento em que existem dois pontos, as relações entre eles formam contrastes e são esses contrastes que vão não só potencializar suas percepções pelos sujeitos observadores, como também, e principalmente, vão individualizá-los como objetos, e isso, na exta constituição de seus seres. Tomemos agora não um ponto, mas um homem. O homem existe primeiro como essência, como uma possibilidade de existência contida na possibilidade universal. Quando vem a existir, ele se difere dos outros seres também pela relação entre eles, ou seja, o “eu” se define não só pelo que ele é, mas também pelos “não-eus”, por tudo aquilo que ele não é. É o contraste entre os seres que garantirá a possibilidade de individuação. Assim, cada ser é um ponto individualizado pela relação com os outros pontos. Todos os homens são iguais, mas individualizados pela relação e pelo contraste entre eles.
CITAÇÕES:
[1] REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia, Vol. 1: Filosofia Pagã Antiga. Tradução de Ivo Storniolo. Coleção História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 2003. Pág. 52.