A PRESENÇA INEXORÁVEL DAS INJUSTIÇAS NO MUNDO
Há ainda outra limitação na aplicação da justiça envolvendo a proporcionalidade, uma limitação que acerta em cheio a esfera do Direito, é a impossibilidade inexorável de equilibrar os pratos da balança e de se observar a proporcionalidade diante de males extremos, e é nesta impossibilidade que eu quero me deter. Tomando como exemplo o assassinato, as limitações da justiça ficam evidentes, pois não há nada, nenhum mecanismo, nenhuma ação, nenhum sistema jurídico, nenhuma pena, absolutamente nada que possa ser feito para equilibrar os pratos da balança e alcançar a proporcionalidade. Quando um pai ou uma mãe tem que pegar na alça de um caixão para enterrar um filho, não há mais nada que possa ser feito para equilibrar o mal sofrido. Ainda que o assassino seja condenado à prisão perpétua, os pratos da balança não alcançariam o equilíbrio. Mais ainda, mesmo que fosse o assassino condenado à pena de morte, as proporções não seriam igualadas. Quando se fala em penas máximas em torno de trinta anos, a discrepância fica escandalosamente mais injusta. Não há definitivamente nada que possa ser feito para se alcançar justiça em casos onde o mal é tão extremo que extrapola a sua própria capacidade de retribuição.
Talvez resida aí o motivo pelo qual Deus marcou Caim, determinando que ninguém deveria vingar Abel, sob pena de receber um sétuplo castigo. O assassinato de Caim como pena por ter matado o próprio irmão não seria de forma alguma justiça, seria justiçamento. Essa vingança estava reservada para o próprio Deus, dele seria a vingança.
“Minha é a vingança e a recompensa, ao tempo que resvalar o seu pé; porque o dia da sua ruína está próximo, e as coisas que lhes hão de suceder, se apressam a chegar. Porque o Senhor fará justiça ao seu povo, e se compadecerá de seus servos; quando vir que o poder deles se foi, e não há preso nem desamparado. Então dirá: Onde estão os seus deuses? A rocha em quem confiavam, de cujos sacrifícios comiam a gordura, e de cujas libações bebiam o vinho? Levantem-se, e vos ajudem, para que haja para vós esconderijo. Vede agora que eu, eu o sou, e mais nenhum deus há além de mim; eu mato, e eu faço viver; eu firo, e eu saro, e ninguém há que escape da minha mão. Porque levantarei a minha mão aos céus, e direi: Eu vivo para sempre. Se eu afiar a minha espada reluzente, e se a minha mão travar o juízo, retribuirei a vingança sobre os meus adversários, e recompensarei aos que me odeiam. Embriagarei as minhas setas de sangue, e a minha espada comerá carne; do sangue dos mortos e dos prisioneiros, desde a cabeça, haverá vinganças do inimigo. Jubilai, ó nações, o seu povo, porque ele vingará o sangue dos seus servos, e sobre os seus adversários retribuirá a vingança, e terá misericórdia da sua terra e do seu povo.”
Esta é a marca de Caim: a evidência de uma realidade irrecorrível, uma impossibilidade de alcançar a justiça que é intrínseca a este mundo, e a promessa de que de Deus será a vingança e a justiça. Já na marca de Caim há o caráter escatológico da justiça. Como bem pontuou Fílon de Alexandria, a proteção à vida de Caim mostrava que, neste mundo, já a partir dali, os maus sobreviveriam aos bons. Era um sinal claro de que a injustiça seria uma presença constante pelo resto da existência da humanidade. O pai de Abel, Adão, pode ter sentido a mais avassaladora das sedes por justiça, a sede de ter um filho covardemente assassinado sendo vingado. Expulso do Paraíso, Adão teve de aprender desde logo que o mundo no qual viveria fora do Paraíso seria um mundo injusto e que só haveria justiça plena e eficaz quando o próprio Deus interviesse restabelecendo a ordem original das coisas criadas. Caim poderia portar o privilégio de não ser morto neste mundo por nenhum outro homem, mas carregava consigo também a certeza inelutável de que o aguardava a mais terrível das vinganças, de que estava destinado a acertar as contas com o seu próprio Criador, aquele que, não só podia matar o seu corpo, mas podia também condenar a sua alma ao inferno por toda a eternidade. Se fosse possível questionar Caim, sem dúvida ele diria que preferiria mil vezes ter caído em mãos humanas e ter sofrido a vingança de Abel por qualquer um dos seres existentes na terra. Era um terror constante viver sabendo que Deus possuía já arquitetado e planejado uma emboscada vingativa para ele da qual não havia saída. Os descendentes espirituais de Caim carregam essa mesma marca, estão destinados a comparecer diante de um tribunal onde todas as injustiças serão vingadas com penas de morte e eternas.
“E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz a Caim, e disse: Alcancei do SENHOR um homem. E deu à luz mais a seu irmão Abel; e Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra. E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor. E Abel também trouxe dos primogênitos das suas ovelhas, e da sua gordura; e atentou o Senhor para Abel e para a sua oferta. Mas para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante. E o Senhor disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar. E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou. E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei; sou eu guardador do meu irmão? E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra. Então disse Caim ao Senhor: É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; e serei fugitivo e vagabundo na terra, e será que todo aquele que me achar, me matará. O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse.”
Gênesis 4: 1-15
Os bens fungíveis podem ser restituídos, mas os infungíveis, como a vida, não. A vingança executória do assassino não tem a capacidade de trazer a vítima de volta à vida, aliás, nenhuma medida tem esse poder, e é por isso que o homicídio consiste no maior dos males. A irreversibilidade intrínseca do homicídio é a maior expressão de que a injustiça é uma realidade inelutável deste mundo. Étienne Borne observou com muita agudeza o episódio de Jó, que depois de ter perdido todos os bens e filhos teve, ao final da história, tudo restituído em dobro. O que chama a atenção nessa história bíblica é que Jó ter tido o dobro de filhos que tinha anteriormente é apenas uma restituição numérica, porque os filhos que ele enterrou são insubstituíveis:
“Basta que a maldade tenha vencido uma vez para escandalizar, pois as coisas nunca poderão ser recolocadas exatamente no lugar – como na conclusão do Livro de Jó, consoladora demais para não ser vista como suspeita quando o justo é perseguido, depois de ter sido despido de tudo, reencontra gado abundante e família numerosa com uma perfeita exatidão aritmética, cabeça de gado por cabeça de gado, menina por menina, menino por menino. Desfecho falso ou humor negro, pois o que foi perdido, quando se trata de seres humanos, e não de rebanhos, não se encontra mais e permanece irrecuperável neste mundo. Reparações e reabilitações reduzem a justiça à cerimônia e ao símbolo. Por ter sido inscrito no ser, o mal condena toda lembrança histórica ao remorso; torna-se o problema que desencoraja antecipadamente qualquer solução.”[1]
O reino da injustiça, no entanto, não fica restrito ao reino metafísico das impossibilidades, as injustiças estão estupidamente presentes na realidade até mesmo onde a ação humana poderia atacá-las e destruí-las. A repulsa nesses casos é potencializada justamente porque está ao alcance do homem fazer diferente e este não o faz. No caso de um assassinato, a situação injusta ainda pode piorar? Ah, com toda certeza, sempre pode piorar, ela pode alcançar tons escandalosos e repugnantes. Acontece que a família do assassino goza, no Brasil, do direito a um auxílio reclusão, onde o Estado garante à família do detento um valor em dinheiro para seu sustento enquanto ele estiver preso. O criminoso que pratica um homicídio, por exemplo, tem sobre a vítima uma superioridade circunstancial garantida pelo próprio Estado, se ele tiver sucesso em não deixar pistas nem for preso em flagrante, ele volta para casa triunfante; se, do contrário, ele acabar sendo preso, tudo bem! Sua família estará guarnecida pelo Estado.
O objetivo do auxílio é garantir que a família do criminoso não pague pelo erro do seu provedor, que a pena não se estenda do criminoso à sua prole, e só é pago pela Previdência Social ao detento que trabalhava formalmente à época da prisão ou que, mesmo desempregado, fosse segurado. A justificativa é boa, soa como humanitária e quase desarma quem se opõe à ideia. Mas é aí que entra em questão o fato de que a família da vítima, essa sim, pode pagar pelo erro, não de seu provedor, mas daquele que tirou a vida dele. Nesse caso, não há nenhum problema que o erro do criminoso faça outras famílias pagar por ele; conquanto que não seja a sua própria, todas as demais são desprezíveis. A família da vítima não goza da compaixão do Estado, sua família estará condenada ao desamparo e jogada à própria sorte. O Estado? Ele não demonstrará compaixão pela família da vítima, seus olhos só brilham pela família do assassino, o Estado estará ocupado demais buscando garantir que o detento tenha os seus direitos “garantidos”, direitos como integridade física e moral. Isso mesmo, integridade moral. Não só a manutenção da família do assassino, mas também a estadia do apenado será custeada pelos cofres públicos, cofres que são providos pelos impostos pagos pelas vítimas em potencial, pelas que sobrevivem ao morticínio que já chegou a alcançar um número em torno de setenta mil homicídios por ano. O criminoso que sai de casa para assaltar se despede de sua família sabendo que, se for preso, sua família estará protegida pelo Estado, e ele pelas leis. Sendo assim, preocupar-se com o que será de sua família se ele for preso é uma preocupação que ele não precisa ter.
Acaso há justiça quando duas famílias são amarradas por um mesmo fato e os pratos da balança pendem para um lado? Se o criminoso possuía emprego e por isso faz jus a um benefício estatal à sua prole, não se deveria querer saber também se a vítima não era do mesmo modo uma trabalhadora e se não era ela a provedora do seu lar? Porque só uma família é escolhida como alvo da compaixão do Estado?
Ora, o Estado também não é tão monstruoso assim, é claro que ele pensa na vítima, e é por isso que pode haver a responsabilização civil do criminoso e este ser obrigado a pagar uma “pensão” aos dependentes da vítima. Tudo estaria resolvido e equilibrado não fosse o fato de que a maioria dos homicídios no Brasil não são elucidados pela polícia e ficam impunes. Mais ainda, a esmagadora maioria dos assassinos não são dados ao trabalho e não costumam cumprir com suas responsabilidades, ainda mais quando se trata de cumprir com o pagamento de uma pensão à família de alguém que ele mesmo assassinou. Como fica o cenário então? Quando o assassino não cumpre a determinação judicial que fixou e determinou o pagamento da pensão, ele pode ser alvo de uma ação de “execução de sentença” na tentativa de fazê-lo quitar o saldo devedor sob pena de prisão. No entanto, viver com um mandado de prisão expedido contra si não é o maior dos terrores da bandidagem, e mesmo acabar sendo preso o é menos ainda. Ora, de um lado a família do criminoso “segurado” tem seu benefício garantido pelo Estado; do outro, temos a família da vítima a esperar pela boa vontade do assassino que, uma vez não cumprindo sua obrigação, acaba encarcerado novamente, e uma vez encarcerado, sua família pode fazer jus ao auxílio reclusão enquanto o Estado garante seus direitos como preso. Por fim, a família da vítima continuará a ver navios. Assim, está arquitetado o ciclo eterno que só traz benefícios a um lado, e não é o lado da vítima. Correr o risco de ter sua família desamparada poderia ser um desestímulo para o criminoso, mas não o é; desestímulo sentem aqueles que saem todos os dias pelas ruas se expondo ao risco de serem assassinados pelos motivos mais fúteis e banais que um aprendiz de diabo pode imaginar, são essas presas fáceis e vulneráveis que, verdadeiramente, têm suas famílias em total dependência.
Antes que se contradite o que foi exposto até aqui com alegações de cunho político partidário, digo que o clamor por justiça não é propriedade nem do espectro da direita política nem da esquerda. Aliás, como dizia Ortega Y Gasset, “Ser de esquerda, como ser de direita, é uma das infinitas maneiras que o homem pode eleger para ser um imbecil: ambas são, de fato, formas de hemiplegia moral.”[2] São circunstâncias como essas que fazem da injustiça uma realidade incômoda e alimentam a fome e a sede por justiça, mais ainda, é nessa realidade que reside o fato de a fartura de justiça ser uma fala escatológica.
CITAÇÕES:
[1] BORNE, Étienne. O Problema do Mal: Mito, Razão e Fé – O Itinerário de Uma Investigação. Tradução de Margarita Maria Garcia Lamelo. 1° Ed. São Paulo: É Realizações, 2014. Pág. 37.
[2] ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Tradução de Felipe Denardi. Campinas: Vide Editorial, 2016. Pág. 61. O tradutor da obra citada explica o termo “hemiplegia” em uma nota de rodapé: “Paralisia de uma das metades do corpo, ocorrida na maioria das vezes, em virtude de uma lesão cerebral no hemisfério oposto.”.
Talvez resida aí o motivo pelo qual Deus marcou Caim, determinando que ninguém deveria vingar Abel, sob pena de receber um sétuplo castigo. O assassinato de Caim como pena por ter matado o próprio irmão não seria de forma alguma justiça, seria justiçamento. Essa vingança estava reservada para o próprio Deus, dele seria a vingança.
“Minha é a vingança e a recompensa, ao tempo que resvalar o seu pé; porque o dia da sua ruína está próximo, e as coisas que lhes hão de suceder, se apressam a chegar. Porque o Senhor fará justiça ao seu povo, e se compadecerá de seus servos; quando vir que o poder deles se foi, e não há preso nem desamparado. Então dirá: Onde estão os seus deuses? A rocha em quem confiavam, de cujos sacrifícios comiam a gordura, e de cujas libações bebiam o vinho? Levantem-se, e vos ajudem, para que haja para vós esconderijo. Vede agora que eu, eu o sou, e mais nenhum deus há além de mim; eu mato, e eu faço viver; eu firo, e eu saro, e ninguém há que escape da minha mão. Porque levantarei a minha mão aos céus, e direi: Eu vivo para sempre. Se eu afiar a minha espada reluzente, e se a minha mão travar o juízo, retribuirei a vingança sobre os meus adversários, e recompensarei aos que me odeiam. Embriagarei as minhas setas de sangue, e a minha espada comerá carne; do sangue dos mortos e dos prisioneiros, desde a cabeça, haverá vinganças do inimigo. Jubilai, ó nações, o seu povo, porque ele vingará o sangue dos seus servos, e sobre os seus adversários retribuirá a vingança, e terá misericórdia da sua terra e do seu povo.”
Deuteronômio 32: 35-43
Esta é a marca de Caim: a evidência de uma realidade irrecorrível, uma impossibilidade de alcançar a justiça que é intrínseca a este mundo, e a promessa de que de Deus será a vingança e a justiça. Já na marca de Caim há o caráter escatológico da justiça. Como bem pontuou Fílon de Alexandria, a proteção à vida de Caim mostrava que, neste mundo, já a partir dali, os maus sobreviveriam aos bons. Era um sinal claro de que a injustiça seria uma presença constante pelo resto da existência da humanidade. O pai de Abel, Adão, pode ter sentido a mais avassaladora das sedes por justiça, a sede de ter um filho covardemente assassinado sendo vingado. Expulso do Paraíso, Adão teve de aprender desde logo que o mundo no qual viveria fora do Paraíso seria um mundo injusto e que só haveria justiça plena e eficaz quando o próprio Deus interviesse restabelecendo a ordem original das coisas criadas. Caim poderia portar o privilégio de não ser morto neste mundo por nenhum outro homem, mas carregava consigo também a certeza inelutável de que o aguardava a mais terrível das vinganças, de que estava destinado a acertar as contas com o seu próprio Criador, aquele que, não só podia matar o seu corpo, mas podia também condenar a sua alma ao inferno por toda a eternidade. Se fosse possível questionar Caim, sem dúvida ele diria que preferiria mil vezes ter caído em mãos humanas e ter sofrido a vingança de Abel por qualquer um dos seres existentes na terra. Era um terror constante viver sabendo que Deus possuía já arquitetado e planejado uma emboscada vingativa para ele da qual não havia saída. Os descendentes espirituais de Caim carregam essa mesma marca, estão destinados a comparecer diante de um tribunal onde todas as injustiças serão vingadas com penas de morte e eternas.
“E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz a Caim, e disse: Alcancei do SENHOR um homem. E deu à luz mais a seu irmão Abel; e Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra. E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor. E Abel também trouxe dos primogênitos das suas ovelhas, e da sua gordura; e atentou o Senhor para Abel e para a sua oferta. Mas para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante. E o Senhor disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar. E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou. E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei; sou eu guardador do meu irmão? E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra. Então disse Caim ao Senhor: É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; e serei fugitivo e vagabundo na terra, e será que todo aquele que me achar, me matará. O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse.”
Gênesis 4: 1-15
Os bens fungíveis podem ser restituídos, mas os infungíveis, como a vida, não. A vingança executória do assassino não tem a capacidade de trazer a vítima de volta à vida, aliás, nenhuma medida tem esse poder, e é por isso que o homicídio consiste no maior dos males. A irreversibilidade intrínseca do homicídio é a maior expressão de que a injustiça é uma realidade inelutável deste mundo. Étienne Borne observou com muita agudeza o episódio de Jó, que depois de ter perdido todos os bens e filhos teve, ao final da história, tudo restituído em dobro. O que chama a atenção nessa história bíblica é que Jó ter tido o dobro de filhos que tinha anteriormente é apenas uma restituição numérica, porque os filhos que ele enterrou são insubstituíveis:
“Basta que a maldade tenha vencido uma vez para escandalizar, pois as coisas nunca poderão ser recolocadas exatamente no lugar – como na conclusão do Livro de Jó, consoladora demais para não ser vista como suspeita quando o justo é perseguido, depois de ter sido despido de tudo, reencontra gado abundante e família numerosa com uma perfeita exatidão aritmética, cabeça de gado por cabeça de gado, menina por menina, menino por menino. Desfecho falso ou humor negro, pois o que foi perdido, quando se trata de seres humanos, e não de rebanhos, não se encontra mais e permanece irrecuperável neste mundo. Reparações e reabilitações reduzem a justiça à cerimônia e ao símbolo. Por ter sido inscrito no ser, o mal condena toda lembrança histórica ao remorso; torna-se o problema que desencoraja antecipadamente qualquer solução.”[1]
O reino da injustiça, no entanto, não fica restrito ao reino metafísico das impossibilidades, as injustiças estão estupidamente presentes na realidade até mesmo onde a ação humana poderia atacá-las e destruí-las. A repulsa nesses casos é potencializada justamente porque está ao alcance do homem fazer diferente e este não o faz. No caso de um assassinato, a situação injusta ainda pode piorar? Ah, com toda certeza, sempre pode piorar, ela pode alcançar tons escandalosos e repugnantes. Acontece que a família do assassino goza, no Brasil, do direito a um auxílio reclusão, onde o Estado garante à família do detento um valor em dinheiro para seu sustento enquanto ele estiver preso. O criminoso que pratica um homicídio, por exemplo, tem sobre a vítima uma superioridade circunstancial garantida pelo próprio Estado, se ele tiver sucesso em não deixar pistas nem for preso em flagrante, ele volta para casa triunfante; se, do contrário, ele acabar sendo preso, tudo bem! Sua família estará guarnecida pelo Estado.
O objetivo do auxílio é garantir que a família do criminoso não pague pelo erro do seu provedor, que a pena não se estenda do criminoso à sua prole, e só é pago pela Previdência Social ao detento que trabalhava formalmente à época da prisão ou que, mesmo desempregado, fosse segurado. A justificativa é boa, soa como humanitária e quase desarma quem se opõe à ideia. Mas é aí que entra em questão o fato de que a família da vítima, essa sim, pode pagar pelo erro, não de seu provedor, mas daquele que tirou a vida dele. Nesse caso, não há nenhum problema que o erro do criminoso faça outras famílias pagar por ele; conquanto que não seja a sua própria, todas as demais são desprezíveis. A família da vítima não goza da compaixão do Estado, sua família estará condenada ao desamparo e jogada à própria sorte. O Estado? Ele não demonstrará compaixão pela família da vítima, seus olhos só brilham pela família do assassino, o Estado estará ocupado demais buscando garantir que o detento tenha os seus direitos “garantidos”, direitos como integridade física e moral. Isso mesmo, integridade moral. Não só a manutenção da família do assassino, mas também a estadia do apenado será custeada pelos cofres públicos, cofres que são providos pelos impostos pagos pelas vítimas em potencial, pelas que sobrevivem ao morticínio que já chegou a alcançar um número em torno de setenta mil homicídios por ano. O criminoso que sai de casa para assaltar se despede de sua família sabendo que, se for preso, sua família estará protegida pelo Estado, e ele pelas leis. Sendo assim, preocupar-se com o que será de sua família se ele for preso é uma preocupação que ele não precisa ter.
Acaso há justiça quando duas famílias são amarradas por um mesmo fato e os pratos da balança pendem para um lado? Se o criminoso possuía emprego e por isso faz jus a um benefício estatal à sua prole, não se deveria querer saber também se a vítima não era do mesmo modo uma trabalhadora e se não era ela a provedora do seu lar? Porque só uma família é escolhida como alvo da compaixão do Estado?
Ora, o Estado também não é tão monstruoso assim, é claro que ele pensa na vítima, e é por isso que pode haver a responsabilização civil do criminoso e este ser obrigado a pagar uma “pensão” aos dependentes da vítima. Tudo estaria resolvido e equilibrado não fosse o fato de que a maioria dos homicídios no Brasil não são elucidados pela polícia e ficam impunes. Mais ainda, a esmagadora maioria dos assassinos não são dados ao trabalho e não costumam cumprir com suas responsabilidades, ainda mais quando se trata de cumprir com o pagamento de uma pensão à família de alguém que ele mesmo assassinou. Como fica o cenário então? Quando o assassino não cumpre a determinação judicial que fixou e determinou o pagamento da pensão, ele pode ser alvo de uma ação de “execução de sentença” na tentativa de fazê-lo quitar o saldo devedor sob pena de prisão. No entanto, viver com um mandado de prisão expedido contra si não é o maior dos terrores da bandidagem, e mesmo acabar sendo preso o é menos ainda. Ora, de um lado a família do criminoso “segurado” tem seu benefício garantido pelo Estado; do outro, temos a família da vítima a esperar pela boa vontade do assassino que, uma vez não cumprindo sua obrigação, acaba encarcerado novamente, e uma vez encarcerado, sua família pode fazer jus ao auxílio reclusão enquanto o Estado garante seus direitos como preso. Por fim, a família da vítima continuará a ver navios. Assim, está arquitetado o ciclo eterno que só traz benefícios a um lado, e não é o lado da vítima. Correr o risco de ter sua família desamparada poderia ser um desestímulo para o criminoso, mas não o é; desestímulo sentem aqueles que saem todos os dias pelas ruas se expondo ao risco de serem assassinados pelos motivos mais fúteis e banais que um aprendiz de diabo pode imaginar, são essas presas fáceis e vulneráveis que, verdadeiramente, têm suas famílias em total dependência.
Antes que se contradite o que foi exposto até aqui com alegações de cunho político partidário, digo que o clamor por justiça não é propriedade nem do espectro da direita política nem da esquerda. Aliás, como dizia Ortega Y Gasset, “Ser de esquerda, como ser de direita, é uma das infinitas maneiras que o homem pode eleger para ser um imbecil: ambas são, de fato, formas de hemiplegia moral.”[2] São circunstâncias como essas que fazem da injustiça uma realidade incômoda e alimentam a fome e a sede por justiça, mais ainda, é nessa realidade que reside o fato de a fartura de justiça ser uma fala escatológica.
CITAÇÕES:
[1] BORNE, Étienne. O Problema do Mal: Mito, Razão e Fé – O Itinerário de Uma Investigação. Tradução de Margarita Maria Garcia Lamelo. 1° Ed. São Paulo: É Realizações, 2014. Pág. 37.
[2] ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Tradução de Felipe Denardi. Campinas: Vide Editorial, 2016. Pág. 61. O tradutor da obra citada explica o termo “hemiplegia” em uma nota de rodapé: “Paralisia de uma das metades do corpo, ocorrida na maioria das vezes, em virtude de uma lesão cerebral no hemisfério oposto.”.