O BEM VIVER É A AMAZÔNIA

O BEM VIVER É A AMAZÔNIA

Por: Márcia Wayna Kambeba

VIVER NA AMAZÔNIA

Quero sentir o cheiro do rio

O gosto do peixe assado

E quando ver um vizinho aperreado

Quero sem pressa ajudar.

De longe ver o curumim sorrindo

Sem fome e sem dor

Ver a mãe ter feijão no prato

Para alimentar seus filhos com amor.

E sentir que existe partilha

Perceber a territorialidade do afeto

No vizinho que chega agoniado

Dizendo: Fiquei sem meu lar!

Preciso de um teto.

No ajuri eu percebo

A união que vem da Amazônia

O ritual para preparar o roçado

Na simplicidade, ninguém está apressado.

Segue o ribeirinho, rema canoeiro

Seguem os povos indígenas

Seguem os quilombolas

Nesse tempo derradeiro.

A vida na Amazônia segue o ritmo das águas, das cheias e das marés. Aprendemos a respeitar os encantados, a falar com os bichos, a sentir a hora que vai passar o cardume de tucunarés. Aqui na Amazônia não se perde o costume das rodas de conversas ao redor do fogo em noites de luar. A beber na cuia um bom açaí depois do jantar. Aprendemos a valorizar nossa floresta e nos perceber natureza.

Estamos no século XXI e presenciamos uma destruição em larga escala de uma natureza que sempre nos acolheu, alimentou, fortaleceu. Presenciamos a matança dos animais, a poluição dos rios, desmatamento, a mortandade dos peixes, queimadas de extensas áreas verdes etc. Todo esse impacto tem modificado nosso clima e essa mudança é sentida por todos na aldeia e fora dela. Na roça não conseguimos ficar por muito tempo expostos plantando macaxeira porque o sol arde na pele e maltrata o corpo.

Nossas aldeias sofrem com a falta de caça e de peixes. Antes era só ir ali para pescar e caçar. Hoje a dificuldade aumentou com a caça predatória em demasia. Precisamos frear a máquina da destruição que é movida pelo combustível da ambição, do capitalismo e o viver bem acaba ganhando espaço e nos fazendo esquecer do bem viver. Essa forma de ver e sentir a Amazônia e a natureza de forma geral acaba nos fazendo esquecer que a Amazônia tem saberes que se entrelaçam com as folhas e os cipós, que banzeira nas águas, que se escondem nos igapós onde estão as sombras das árvores, onde os frutos fazem timbum, alimentando os peixes que saltam da boca do pirarucu. Essas belezas vista de cá não as mesmas vistas de lá, sentidas de formas distintas, pelos olhares dos amazônidas.

Nas águas da Amazônia de longe se vê o velho pescando, caniçando a fé no novo tempo que virá. Um olhar que toca profundo a alma e convida a uma territorialidade afetiva e de interdependência com o ambiente, com o lugar. É preciso fortalecer nas crianças e jovens o orgulho do pertencimento, da crença nas encantarias que fortalecem nossa caminhada e que precisam permanecer vivas em nossa infância.

Eu acredito que a Matinta existe porque ainda menina ouvi seu assobio na aldeia que nasci e hoje com meus 41 anos não perdi e nem deixei morrer em mim essa crença, ao contrário, fortaleço a cada narrativa que escuto sobre Matinta.

Nas pesquisas que faço sobre Matinta na nossa atualidade ouvi de um ancião que nas redondezas do sitio dele na cidade que moro Castanhal PA tem um homem que em noite de lua cheia vira Matinta. Um homem? Perguntei com espanto por que até então achava que só mulher virava Matinta. Disse ele: “sim! Um homem. Ele mora perto daqui sozinho e há quem diga ter visto ele virar Matinta eu nunca vi, mas já escutei muitas vezes aqui pelo meu quintal o assovio de Matinta. Acho que seja ele”. E sorriu para mim meio tímido. Eu já estava maravilhada em saber que em pleno século XXI a Matinta se fazia presente e na figura de um homem.

Na cultura dos povos indígenas a Matinta é protetora da Natureza, defende toda biodiversidade do predador que vem com a fome da ganância atacar animais e derrubar árvores. O papel do curupira é de se comunicar com o pajé e avisar sobre tudo que vai acontecer na aldeia seja bom ou ruim. Acontece que estamos perdendo essa beleza de perceber nossos entes com um olhar de irmandade, afetuoso. Logo o Curupira, Matinta, Boto viraram folclore, lenda Amazônica. Procuro manter vivo a ideia que aprendi ainda menina na aldeia de que não são lendas e nem folclore são seres presentes, vivos e que precisam de nossa união no fortalecimento dessa luta. Entender a transmutação do boto não é algo difícil para os povos indígenas porque o pajé em sua ação de cura entra em um processo de transe que leva a transmutação ora em águia, ora em onça, jacaré etc. Ele recebe a força e a visão desses seres.

O bem viver na Amazônia requer essa compreensão de uma filosofia indígena e ao mesmo tempo amazônica que visa fortalecer em todos que se propõe a conhecer o entrelace das mãos e a sintonia com os saberes da natureza. A partilha do bem em forma de alimentos, de proteção, do cuidado com amor e da relação afetiva entre homem e natureza. É possível viver o território do afeto bem como é possível tornar-se um território do afeto e do sagrado onde tudo que existe em nós precisa de um cuidado. Todo saber é sagrado e merece respeito, atenção, escuta. Assim os saberes da natureza precisam de escuta e a cidade está sempre com pressa para chegar a todo lugar e a lugar nenhum e com isso nunca encontra tempo para essa escuta contemplativa. A falta de tempo para a escuta gera um distanciamento e um desamor por não se criar esse território do afeto.

É possível que a próxima geração tenha mais entendimento do que é bem viver e da importância de se ter áreas verdes e manter vivo a biodiversidade pesando não só em si, mas em uma coletividade. Penso que esse ensino possa ser possível de acontecer se bem trabalhado por nós adultos que buscamos encontrar tempo para essa relação de conhecimento, afetividade e aprendizado com a natureza.

Respirar já é um problema, beber água do rio já não se faz como se fazia antes porque muito do que se tem de água potável está poluído, conforto térmico está desaparecendo de nossos centros urbanos pela escassez de árvores nos canteiros. A ideia de uma cidade sustentável está só no imaginário e pouco se vê no concreto. O lixo está por toda parte e andar entre o lixo pouco importa porque sempre tem alguém para limpar o que jogamos nas calçadas e ruas. Qual a nossa responsabilidade com o ambiente? Vamos começar a repensar nossa ação no planeta? Podemos mudar começando por nossa casa, nossa rua, nosso bairro, nossa cidade e aí estaremos preparados para mudar o Brasil. Acredito como indígena, educadora, poeta que o homem pode mudar seu modo de ver, sentir e pensar o ambiente no qual está inserido. Utopia? Quero continuar sonhando.

Márcia Wayna Kambeba
Enviado por Márcia Wayna Kambeba em 24/08/2020
Código do texto: T7044589
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.